sábado, 5 de maio de 2018

SÓCRATES | A mosca atrás da orelha


Domingos de Andrade | Jornal de Notícias | opinião

O processo judicial estalou quando António Costa chegava a secretário-geral do PS. A detenção de José Sócrates agitou o país em vésperas do congresso que aclamou o então candidato a primeiro-ministro e tornou-se um incómodo constante. Um incómodo gerido, durante três anos e meio, com o silêncio e um único argumento: à justiça o que é da justiça, à política o que é da política. Cada gesto foi de tal modo pesado ao pormenor que até a única visita de Costa à cadeia foi feita a 31 de dezembro de 2014, com o país em pausa e as atenções mediáticas descidas para o nível mínimo.

A inversão estratégica é tão evidente e súbita que chega a ser desconcertante. O coro de vozes socialistas abriu caminho à declaração marcante de Carlos César, presidente do partido e próximo de Sócrates. Para logo de seguida o primeiro-ministro, a partir do Canadá, dar a estocada que faltava. O processo Sócrates saía subitamente da esfera judicial, para se tornar político. Não admira que Sócrates tenha reagido politicamente, fazendo o que tem feito nos últimos anos, usando mais um pretexto para se considerar crucificado na praça pública. Mostrando também, com o anúncio da saída do partido, o isolamento em que se encontra.

O que explica esta súbita mudança estratégica? O zumbido incómodo da mosca atrás da orelha subiu de tom quando a Sócrates se juntou Manuel Pinho. As suspeitas sobre o antigo ministro da Economia trouxeram à luz um dado mais decisivo do que qualquer outro: o de que assumiu a pasta já com a promessa de reforma paga pelo BES. Juntando às investigações judiciais em curso a investigação política anunciada com a comissão de inquérito, ganhou dimensão a tese de que a corrupção não terá sido o problema de um homem, mas de uma governação.

Com o tema cavalgado por Rui Rio e o risco de contaminação do próximo congresso socialista, mais uma vez, António Costa decide sacudir de uma vez a mosca atrás da orelha. Esvaziar o assunto e distanciar-se de qualquer vestígio do primeiro-ministro de quem foi o número 2.

Estrategicamente faz todo o sentido, claro. Costa fez tudo bem. Organizado. Meticuloso. Rápido. Fulminante. Tem feito tudo bem. Já tinha amarrado Rio a acordos. Dá algumas compensações sociais ao Bloco e ao PCP. Secou agora a oposição interna e externa, a da Esquerda e a da Direita. Permite ao PS renascer. E ganha um peso inimaginável no início da sessão legislativa para chegar à maioria absoluta em 2019.

Isto, se as eleições antecipadas não forem provocadas já em outubro, sem que os parceiros de Parlamento tenham sequer tempo para se aperceberem. Isto, se a mosca não voltar a colar-se ao seu ouvido com o curso dos processos judiciais. É que é arriscado o permanente jogo de cintura entre o orgulho com o trabalho que o José Sócrates primeiro-ministro fez pelo país, e a vergonha pelos crimes com que eventualmente o José Sócrates arguido manchou a democracia portuguesa.

*Diretor-executivo do JN

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