Obstetra de 85 anos é o primeiro
suposto envolvido a se sentar no banco dos réus. Prática iniciada sob o regime
fascista resultou na adoção de milhares de crianças sem consentimento dos pais
biológicos.
Um tribunal espanhol iniciou
nesta terça-feira (26/06) o julgamento de um homem de 85 anos que foi acusado
de sequestrar um bebê em 1969 e entregá-lo a outra mulher. Esse é o primeiro
julgamento relacionado ao caso dos bebés roubados durante o regime franquista
(1939-1975), quando milhares de crianças foram tiradas de seus pais e entregues
para outras famílias, uma prática semelhante à ocorrida durante a ditadura na
Argentina.
Eduardo Vela, que trabalhou
como obstetra na clínica San Ramón, em Madri, é acusado pela funcionária
ferroviária Inés Madrigal, de 49 anos, de tê-la separado de sua mãe biológica e
falsificar sua certidão de nascimento, em junho de 1969.
A promotoria pede 11 anos de
prisão para o médico, que foi interrogado por meia hora na audiência inicial. A
segunda audiência será realizada na quarta-feira, e não há data prevista para a
divulgação da sentença.
Segundo a acusação, em junho de
1969, o médico "presenteou" uma mulher chamada Inés Pérez com uma
menina. Ela acabou sendo registrada como filha biológica da mulher. A menina em
questão, Inés Madrigal, disse que, com 18 anos, ficou sabendo que era adotada,
em uma conversa com a mãe.
Mais tarde, em 2010, lendo na
imprensa um artigo sobre "os bebês roubados" no regime franquista,
descobriu que a clínica onde nasceu era um dos centros de tráfico de crianças
nos anos 1960 e 1970.
Rede clandestina
Essa rede clandestina de adoções,
iniciada depois da Guerra Civil espanhola (1936-1939), envolveu milhares de
crianças, segundo associações que militam para que todos os casos sejam
solucionados. A prática continuou mesmo após a morte do ditador, perdurando até
pelo menos 1987.
Em 2008, o juiz Baltasar Garzón
apontou que pelo menos 30 mil crianças tinham sido roubadas de casais
considerados "politicamente suspeitos" pelo regime de Franco.
Inicialmente, o governo
franquista incentivava a prática com o objetivo de punir adversários na guerra
civil. Em muitos casos as crianças acabavam sendo adotadas
clandestinamente por casais estéreis ou ligados ao regime.
No entanto, logo a rede
clandestina passou a se expandir pela falta de legislação para adoções e por
razoes econômicas, passando a incluir crianças nascidas fora do casamento, ou
membros de famílias pobres ou muito numerosas.
Em muitos casos, médicos e
administradores de maternidades – incluindo padres e freiras – que alimentavam
a rede afirmavam para as mães biológicas que os bebês haviam morrido logo após
o parto.
Em 2011, o ativista Antonio
Barroso veio a público contar que havia sido comprado pelos seus pais de um
padre quando era bebê. Ele acabou fundando a Associação Nacional das Vítimas de
Adoção Irregular (Anadir, na sigla em espanhol).
Barroso estima que pelo menos 15%
das adoções que ocorreram na Espanha entre 1965 e 1990 foram ilegais, com as
crianças sendo retiradas dos pais biológicos sem consentimento.
O julgamento
Vela é o primeiro suspeito de roubos
de bebês na Espanha a sentar-se no banco dos réus. As acusações que pesam sobre
ele são de detenção ilegal, falsificação de documento público, adoção ilegal e
suposição de parto.
Segundo a mãe adotiva de Inés
Madrigal, já falecida, Vela pediu que ela simulasse uma gravidez e, depois, do
nascimento, somente o consultasse caso a menina ficasse doente para que ninguém
tomasse conhecimento do caso.
Ante o juiz de instrução, Vela
reconheceu, em 2013, ter assinado sem ler o expediente médico indicando que
assistiu ao parto. Mas nesta terça, ante o tribunal, alegou não se lembrar de
nada e não reconheceu sua assinatura. "Isso não é meu, não me
recordo", afirmou.
Segundo ativistas, ao menos 2 mil
denúncias de fatos similares foram apresentadas aos tribunais, sem que nenhuma
chegasse ao final. Os casos foram arquivados por falta de provas ou, segundo os
tribunais, porque os fatos prescreveram.
Uma prática semelhante à ocorrida
na Espanha aconteceu na Argentina, durante a ditadura militar de 1976 a 1983.
Cerca de 500 recém-nascidos foram tirados de mulheres presas pelo regime e
entregues a famílias de militares ou de civis simpatizantes do regime. Dois
ex-chefes da Junta Militar, Jorge Videla e Reynaldo Bignone, foram condenados
em 2012 pelos roubos de crianças.
JPS/rtr/afp/efe | em Deutsche
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