Miguel Guedes | Jornal de Notícias
| opinião
A retórica dos fogos ganhou este
ano um novo apontamento vigoroso, o supremo valor da propriedade face à
protecção da vida humana. É inquestionável que a defesa das casas, bens e
haveres é obrigação de todos e, naturalmente, incumbência maior de todas as
forças no terreno. Não se pode, de resto, ignorar ou diminuir o conhecimento de
pessoas, anónimas, que saberão acrescentar algo mais ao plano estrutural de
combate aos fogos e à organização dos meios no terreno. Se tempo houvesse. Terá
havido excessos. Mas independentemente do desastre de Pedrógão e da falta de
confiança dos cidadãos na capacidade do Estado, é espantoso ver tantas pessoas
a valorizar mais a vida humana em feto (contra a interrupção voluntária da
gravidez) ou a vida desumana em sofrimento atroz (contra a eutanásia), do que a
vida de quem teima, por natural desespero, em ficar sozinha em casa a defender
a sua propriedade para, possivelmente, nela morrer. A falta de confiança neste
Estado não o extingue pelo fogo.
Os especialistas em incêndios
viveram uma relação de amor e ódio com o indomável fogo de Monchique. Afinidade
com a cotação do bitaite a subir, dias a fio, ao nível das altas temperaturas e
com o estigma da comparação com o passado recente de Pedrógão, como se dente
por dente fosse lume por lume, como se dois fogos houvesse que se sintetizassem
num só, à vista desarmada, por apropriação de identidade ou fogo de vista. É
chocante a nossa incapacidade em fazer frente ao que todos os anos parece ser
inevitável, hectares e hectares de terra ardida sob os olhares-faísca de gente
desesperada ou em pânico, uma imensa tristeza que se abate e galopa como certa,
inferno de luz, na sua direcção. Tudo o que sabemos porque temos memória. Mas
não podemos escurecer à sua luz: a memória de Pedrógão não nos autoriza ao
descaramento de olhar para Monchique lendo sucessos ou insucessos pelos números
do desastre, à comparação. Continuamos a olhar para trás para não ver o que
está à ilharga.
António Costa congratulou-se pelo
facto de ninguém ter morrido em Monchique mas esteve mal ao puxar pela
comparação gratuita com Pedrógão. Friendly-fire. A ponte Morandi em Génova foi
construída com betão leve nos anos 60 e vinha com um prazo: durabilidade máxima
de 30 anos. Contavam-se cerca de 20 pontes como esta em todo o Mundo. Todas
elas foram demolidas e reconstruídas. Todas, excepto a que ontem caiu,
vitimando dezenas de pessoas. O caso único, a única comparação que faz sentido.
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
*Músico e jurista
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