domingo, 30 de setembro de 2018

Portugal | Demografia e miserabilismo


Manuel Carvalho da Silva | Jornal de Notícias | opinião

A sociedade portuguesa vai tomando consciência de que a questão demográfica é um grande problema que condiciona o nosso desenvolvimento. Mas o tema está longe de assumir o impacto que merece nas agendas social e política. Vamos fazer de conta que a perda de população, total e ativa, e o seu envelhecimento acelerado são uma inevitabilidade? Vamos subjugar-nos às duras e cada vez mais pesadas consequências que daí resultarão, ou encaramos o problema e procuramos respostas sérias e sustentáveis?

As políticas de valorização da natalidade são importantes e até se podem encontrar formas de os mais velhos serem "ativos" por mais tempo, principalmente se os caminhos encontrados valorizarem o seu trabalho e lhes propiciarem um viver em melhores condições. Entretanto, medidas possíveis nestas duas áreas não se efetivam de forma avulsa e, além disso, demoram muito tempo a dar resultados e constituem apenas uma pequena parte das políticas a implementar.

Nos últimos tempos também se começou a discutir a estagnação dos salários, tema que tem uma conexão profunda com a questão demográfica. Parece evidente esta constatação: a estagnação dos salários alarga o fosso remuneratório entre Portugal e os países que são destino da emigração portuguesa. Essa estagnação e a persistência na imposição de salários muito baixos aos jovens convidam os trabalhadores portugueses ao expatriamento e afugentam de Portugal trabalhadores de outras nacionalidades, com consequências pesadas no declínio demográfico do país. Diz-se que há agora uma vaga importante de imigrantes detentores de capital, que vêm aproveitar as oportunidades de negócio que Portugal lhes oferece. Não nos iludamos, isso é apenas um nicho que não resolve o problema e até o pode agravar.

Quando nos empenhamos numa reflexão mais profunda sobre como poderemos atacar com êxito o problema demográfico, rapidamente nos deparamos com um conjunto de desafios, muitas vezes com a mesma raiz, e profundamente ligados à matriz de desenvolvimento que se queira perspetivar para a sociedade portuguesa e para o país.

Para estancar a emigração é preciso fazer subir a média salarial associada a uma melhoria progressiva da qualidade do emprego. Esses objetivos exigem crescimento do salário mínimo nacional e uma negociação coletiva dinâmica, nos setores privado e público, que melhore de forma articulada a generalidade dos salários, que identifique e valorize profissões, que reconstrua carreiras profissionais, que reponha direitos laborais e reduza desigualdades nas remunerações. Quer no plano nacional, quer no europeu, a destruição da contratação coletiva associada ao enfraquecimento de instituições de mediação laboral - dos sindicatos em particular - e à gestão unilateral das mudanças que se estão a operar no mundo do trabalho constituem a grande causa da estagnação salarial. Entretanto, se não formos capazes de dinamizar atividades industriais e setores de produção de bens e serviços que tragam mais valor acrescentado à economia portuguesa, não alcançaremos soluções sustentadas.

Muitas vezes, responsáveis políticos apresentam-nos as melhorias pontuais do abono de família e de apoios sociais, ou a criação de pacotes fiscais ligeiramente vantajosos, como a solução para fixar os jovens, quando, ao mesmo tempo, prosseguem políticas laborais de horários longos e proliferação de precariedades que não permitem aos trabalhadores estruturarem projetos de vida nem organizar família. É preciso acabar com estas contradições e tratar de forma séria as políticas de educação, de mobilidades, de habitação, de gestão do território.

As profundas transformações económicas, sociais e culturais alcançadas com a conquista e consolidação da democracia, levaram os portugueses a romper com as expressões mais fortes do miserabilismo. Contudo, continuamos condescendentes com a pobreza, com o "roubo legal" e com o sofrimento no trabalho. Toleramos demasiado as baixas retribuições e o desrespeito pelas leis do trabalho, não fazemos a denúncia e o combate necessários ao assédio moral que aniquila a dignidade no trabalho. Há que inverter estas atitudes se queremos resolver o problema demográfico.

* Investigador e professor universitário

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