quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Uma década depois está quase tudo por fazer


Ricardo Paes Mamede | Diário de Notícias | opinião

No dia 15 de setembro completam-se dez anos desde o colapso do banco Lehman Brothers, a maior falência privada da história e o evento mais simbólico da grande crise financeira mundial de 2008-2009. A turbulência financeira fazia-se sentir desde 2007, quando se tornou clara a vulnerabilidade de vários bancos americanos e europeus à queda dos preços do imobiliário que vinha ocorrendo em várias zonas dos EUA. A queda do gigante bancário americano veio confirmar que se estava perante uma crise de grandes dimensões, acentuando o pânico entre investidores e paralisando o sistema monetário internacional.

A crise financeira transformou-se rapidamente na maior crise económica mundial desde 1930, graças às dificuldades generalizadas de acesso a liquidez e ao ambiente geral de incerteza. O comércio mundial estagnou, a produção planetária caiu e o desemprego aumentou em flecha. A generalidade dos países avançados viu as suas dívidas públicas aumentar para níveis historicamente elevados, como resultado da forte subida dos custos de financiamento, da queda abrupta de receitas fiscais, do aumento repentino das despesas com subsídios de desemprego e dos enormes custos dos resgates a bancos. Ao mesmo tempo escasseavam os investidores disponíveis para financiar os défices públicos daí resultantes.

Muitos Estados que contraem dívida numa moeda que não controlam (como é o caso de Portugal e dos outros países da zona euro) deixaram de conseguir assegurar os seus compromissos internos e externos. Após alguma hesitação, as lideranças europeias criaram fundos de resgate para o efeito, mas fizeram depender o acesso ao financiamento da adoção de políticas de austeridade, aprofundando a recessão e conduzindo o continente para uma crise económica e social prolongada, cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir.

A sucessão de acontecimentos após 2008 não teve apenas implicações económicas e sociais. Como noutros momentos da história, a incapacidade dos poderes públicos para prevenir a instabilidade financeira e para minimizar os seus efeitos teve consequências políticas evidentes. A ascensão de movimentos e de líderes populistas e autoritários, e a desestruturação dos sistemas partidários tradicionais em várias partes do mundo, são a sua tradução mais óbvia.

Perante os enormes custos económicos, sociais e políticos da crise da última década, é normal e desejável que se dedique espaço mediático a discutir as suas causas e como podemos evitar a sua repetição - o que tem vindo a ser feito por vários jornais nacionais.

Nos diferentes balanços já publicados é frequente referir-se como principais fatores determinantes da crise a desregulação financeira e a política de juros baixos seguida por vários bancos centrais nos anos anteriores à crise. Estes fatores favoreceram a expansão sem precedentes do crédito e a proliferação de produtos financeiros complexos, muitas vezes adquiridos sem uma compreensão clara dos riscos envolvidos.

As explicações referidas são válidas, sem dúvida. No entanto, confrontam-se com um facto que não podemos ignorar: a crise de 2008 não foi um evento isolado; é antes o momento mais visível de uma fase histórica longa, marcada por uma instabilidade recorrente e cada vez mais intensa.

De acordo com um estudo publicado pelo FMI, entre 1970 e 2011 ocorreram 147 crises bancárias, 218 crises cambiais e 66 crises de dívida soberana.Mais de uma década antes da grande crise de 2008 já o mundo havia assistido a grandes perturbações financeiras, como ilustram a crise mexicana de 1994-95, a crise asiática de 1997-98 ou a crise russa de 1998, só para referir os casos mais relevantes. Estas décadas de instabilidade contrastam com o período que vai do pós-guerra ao início dos anos setenta, em que as crises financeiras estiveram praticamente ausentes.

"Entre 1970 e 2011 ocorreram 147 crises bancárias, 218 crises cambiais e 66 crises de dívida soberana."

O que distingue o sistema económico mundial contemporâneo daquele que o precedeu vai muito além da (des)regulação dos sistemas financeiros. Vivemos numa era caracterizada pela privatização de vastas áreas da atividade do Estado (incluindo as áreas sociais), pela desregulação das relações laborais e pela liberalização das trocas internacionais, em particular dos movimentos de capitais. Estas "reformas" traduziram-se na acumulação de desequilíbrios macroeconómicos internacionais, em que o aumento das dívidas externas de uns países contrasta com o avolumar de grandes excedentes de outros. Combinadas com as mudanças tecnológicas entretanto ocorridas, aquelas mudanças institucionais traduziram-se também na estagnação dos salários de grande parte dos trabalhadores das principais economias, acompanhada por um aumento exponencial no número e proporção de milionários à escala mundial.

A estagnação dos rendimentos de trabalho desincentiva o investimento na economia real, o que se traduz num crescimento económico anémico. Escasseando as oportunidades para investimento produtivo, os super-ricos e os países com excedentes externos acabam por aplicar as suas poupanças em atividades cada vez mais especulativas (imobiliário, ações, matérias-primas, etc.), que quase não criam emprego e geram grande instabilidade.

As mudanças introduzidas nos sistemas bancários na última década - maior supervisão, maiores exigências de capital, etc. - são globalmente bem-vindas. Mas estão muito longe de conseguir prevenir o efeito desestabilizador que o regime económico em que vivemos exerce sobre as economias, sobre as sociedades e sobre as democracias.

O mundo precisa de transformações muito mais vastas. Uma década depois está quase tudo por fazer.

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