Ricardo Paes Mamede | Diário de
Notícias | opinião
No dia 15 de setembro
completam-se dez anos desde o colapso do banco Lehman Brothers, a maior
falência privada da história e o evento mais simbólico da grande crise
financeira mundial de 2008-2009.
A turbulência financeira fazia-se sentir desde 2007,
quando se tornou clara a vulnerabilidade de vários bancos americanos e europeus
à queda dos preços do imobiliário que vinha ocorrendo em várias zonas dos EUA.
A queda do gigante bancário americano veio confirmar que se estava perante uma
crise de grandes dimensões, acentuando o pânico entre investidores e
paralisando o sistema monetário internacional.
A crise financeira transformou-se
rapidamente na maior crise económica mundial desde 1930, graças às dificuldades
generalizadas de acesso a liquidez e ao ambiente geral de incerteza. O
comércio mundial estagnou, a produção planetária caiu e o desemprego aumentou em flecha. A generalidade
dos países avançados viu as suas dívidas públicas aumentar para níveis
historicamente elevados, como resultado da forte subida dos custos de
financiamento, da queda abrupta de receitas fiscais, do aumento repentino das
despesas com subsídios de desemprego e dos enormes custos dos resgates a
bancos. Ao mesmo tempo escasseavam os investidores disponíveis para financiar
os défices públicos daí resultantes.
Muitos Estados que contraem
dívida numa moeda que não controlam (como é o caso de Portugal e dos outros
países da zona euro) deixaram de conseguir assegurar os seus compromissos
internos e externos. Após alguma hesitação, as lideranças europeias criaram
fundos de resgate para o efeito, mas fizeram depender o acesso ao financiamento
da adoção de políticas de austeridade, aprofundando a recessão e conduzindo o
continente para uma crise económica e social prolongada, cujos efeitos ainda hoje
se fazem sentir.
A sucessão de acontecimentos após
2008 não teve apenas implicações económicas e sociais. Como noutros momentos da
história, a incapacidade dos poderes públicos para prevenir a instabilidade
financeira e para minimizar os seus efeitos teve consequências políticas
evidentes. A ascensão de movimentos e de líderes populistas e autoritários, e a
desestruturação dos sistemas partidários tradicionais em várias partes do
mundo, são a sua tradução mais óbvia.
Perante os enormes custos
económicos, sociais e políticos da crise da última década, é normal e desejável
que se dedique espaço mediático a discutir as suas causas e como podemos evitar
a sua repetição - o que tem vindo a ser feito por vários jornais
nacionais.
Nos diferentes balanços já publicados
é frequente referir-se como principais fatores determinantes da crise a
desregulação financeira e a política de juros baixos seguida por vários bancos
centrais nos anos anteriores à crise. Estes fatores favoreceram a expansão sem
precedentes do crédito e a proliferação de produtos financeiros complexos,
muitas vezes adquiridos sem uma compreensão clara dos riscos envolvidos.
As explicações referidas são
válidas, sem dúvida. No entanto, confrontam-se com um facto que não podemos
ignorar: a crise de 2008 não foi um evento isolado; é antes o momento mais
visível de uma fase histórica longa, marcada por uma instabilidade recorrente e
cada vez mais intensa.
De acordo com um estudo publicado
pelo FMI, entre 1970 e 2011 ocorreram 147 crises bancárias, 218 crises cambiais
e 66 crises de dívida soberana.Mais de uma década antes da grande crise de 2008
já o mundo havia assistido a grandes perturbações financeiras, como ilustram a
crise mexicana de 1994-95, a
crise asiática de 1997-98 ou a crise russa de 1998, só para referir os casos
mais relevantes. Estas décadas de instabilidade contrastam com o período que
vai do pós-guerra ao início dos anos setenta, em que as crises financeiras
estiveram praticamente ausentes.
"Entre 1970 e 2011 ocorreram
147 crises bancárias, 218 crises cambiais e 66 crises de dívida soberana."
O que distingue o sistema
económico mundial contemporâneo daquele que o precedeu vai muito além da
(des)regulação dos sistemas financeiros. Vivemos numa era caracterizada pela
privatização de vastas áreas da atividade do Estado (incluindo as áreas
sociais), pela desregulação das relações laborais e pela liberalização das
trocas internacionais, em particular dos movimentos de capitais. Estas
"reformas" traduziram-se na acumulação de desequilíbrios macroeconómicos
internacionais, em que o aumento das dívidas externas de uns países contrasta
com o avolumar de grandes excedentes de outros. Combinadas com as mudanças
tecnológicas entretanto ocorridas, aquelas mudanças institucionais
traduziram-se também na estagnação dos salários de grande parte dos
trabalhadores das principais economias, acompanhada por um aumento exponencial
no número e proporção de milionários à escala mundial.
A estagnação dos rendimentos de
trabalho desincentiva o investimento na economia real, o que se traduz num
crescimento económico anémico. Escasseando as oportunidades para investimento
produtivo, os super-ricos e os países com excedentes externos acabam por
aplicar as suas poupanças em atividades cada vez mais especulativas (imobiliário,
ações, matérias-primas, etc.), que quase não criam emprego e geram grande
instabilidade.
As mudanças introduzidas nos
sistemas bancários na última década - maior supervisão, maiores exigências de
capital, etc. - são globalmente bem-vindas. Mas estão muito longe de conseguir
prevenir o efeito desestabilizador que o regime económico em que vivemos exerce
sobre as economias, sobre as sociedades e sobre as democracias.
O mundo precisa de transformações
muito mais vastas. Uma década depois está quase tudo por fazer.
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