terça-feira, 27 de novembro de 2018

A guerra dos metais raros

A face oculta da transição energética e da digitalização

José Ferrer [*]

O livro La guerre des métaux rares: La face cachée de la transition énergétique et numérique [1] , de Guillaume Pitron, jornalista francês colaborador de Le Monde Diplomatique, é de leitura fácil e revela uma grande contradição dos nossos dias:

a) Proclama-se, com o aval de numerosos Chefes de Estado e de Governo que, por causa do chamado aquecimento global, temos de abandonar rapidamente os combustíveis fósseis, substituindo-os por tecnologias energéticas verdes, também ditas renováveis ou limpas.

Estas hão-de ser crescentemente conseguidas e bem aproveitadas com o aprofundamento da digitalização nos mais variados campos da economia, mas isto só se consegue actualmente com o indispensável concurso dos chamados metais raros. "A cada aplicação verde o seu metal raro" (p. 36).

b) A contradição reside em que os metais raros são relativamente escassos na crosta terrestre, dando-se a triste circunstância adicional de a sua extracção e refinação serem processos duplamente problemáticos do ponto de vista energético e ambiental.

A inferência é inevitável e G. Pitron não se inibe de a expor: a mutação tecnológica que se pretende impor não resolve a questão ambiental em causa. Esta passa sobretudo pela alteração dos locais de ocorrência da poluição.

Compreender-se-á assim o apelo que o autor insere no epílogo do livro: paremos para pensar, uma vez que a revolução industrial, técnica e social que é preciso realizar há-de passar pela revolução das consciências.

Ou seja, digamos que, para o autor, o ambientalismo ainda não se livrou do seu estádio infantil, já que proclama objectivos, vias e políticas nem sempre coerentes entre si e, portanto, não sustentáveis a vários títulos.

É interessante notar que esta tese fundamental do livro é formulada por um autor que 

i) Aparentemente, aceitou (e parece continuar a aceitar a maioria de) os mandamentos da cartilha ambientalista,
ii) Em particular, não mostra qualquer dúvida acerca da teoria do alegado aquecimento global gerado pela emissão antropogénica dos gases com efeito de estufa,
iii) Parece acreditar em que a questão ambiental irá ter solução no quadro do capitalismo (chega a usar a expressão"capitalisme vert", (p. 17),
iv) A sua França há-de recuperar posições perdidas no cotejo internacional, incluindo na segurança militar.

Assim se perceberá porque sequer tem uma palavra de questionamento sobre a legitimidade de se impor a países economicamente atrasados caminhos diferentes dos seguidos pelos países desenvolvidos, como manda a Agenda Ambiental dominante, vide o Acordo de Paris, de 2015. 

G. Pitron foi construindo a sua tese a partir do que se foi apercebendo acerca das limitações na disponibilidade de metais raros [2] e, em particular, dos metais chamados terras raras (sobretudo lantanídeos).

A exemplo de milhões de pessoas, Pitron não terá estudado a ciência química senão a nível muito elementar [3] . Em particular, jamais terá tido, antes de trabalhar para este livro, a possibilidade de se aproximar da série de problemas que a extracção mineira e as metalurgias colocam do ponto de vista de economia da produção industrial, da poluição [4] e da demanda energética [5] .

Tópicos que, manifestamente, lhe criaram um certo espanto à medida que foi viajando pelo mundo, visitando minas e outras instalações industriais, tendo pesquisado durante "seis anos" sobre o assunto "em doze países" (p. 23). Assim foi descobrindo que, diversamente do que teria antes pensado, aquelas agudas questões são descuradas no discurso ambientalista bem como por parte de dirigentes políticos os mais variados, incluindo da sua aparentemente venerada União Europeia.

Não se pense que G. Pitron se tornou num engenheiro, mas seria injusto não enfatizar o esforço que empreendeu, em relato que pode ser muito útil a quem também tenha a curiosidade sobre muitas das especificidades técnicas e económicas em causa na obtenção, refinação e aplicação dos metais, e suas reciclagens.

O autor não enjeita a utilidade dos metais há muito usados – ferro, ouro, prata, cobre, chumbo, alumínio – mas, justamente, chama a atenção para as "fabulosas propriedades magnéticas e químicas" (p.15) dos metais raros, crescentemente usados desde a década de 70 do século passado. Procura que tenderá ainda a crescer, a verificar-se a intensificação das suas aplicações.

As torres eólicas, os painéis solares, as novas baterias eléctricas, os telemóveis, os computadores (cada vez mais usados em crescentes aplicações), etc, dependem da utilização de metais raros. A lista das afectações é enorme:"Robótica, inteligência artificial, hospital digital, segurança cibernética, biotecnologias médicas, objectos conectados, nanoelectrónica, viaturas sem condutor..." (p. 26). Ou seja, o "mundo novo" de que se tem falado afunda-nos numa"nova dependência, ainda mais forte" do que a de energias fósseis (p.26).

Há razões para lhes chamar raros: enquanto tem sido fácil encontrar minérios de ferro com teores metálicos da ordem de 60% (ou seja, 1,67kg de minério contém 1kg de ferro), o autor sublinha, por exemplo, serem precisas "oito toneladas e meia (cerca de 8500kg) de minério para produzir um quilograma de vanádio ... e mil e duzentas toneladas (cerca de 1 200 000 kg) por um infeliz quilograma dum metal ainda mais raro, o lutécio (terra rara)" (p.16).

O autor debruça-se sobre o balanço ecológico de vários sectores (painéis solares, veículos eléctricos, redes eléctricas "inteligentes"), sobre as tremendas dificuldades ainda existentes na reciclagem de metais raros, para concluir que as tecnologias verdes, em geral, não são mais vantajosas do que as tradicionais em termos ambientais e energéticos. Até o são menos em certos aspectos (pp. 57-85), embora nesse balanço inclua a emissão de dióxido de carbono, como se este não fosse o gás da vida.

Mas G. Pitron não se interessa apenas por esse tipo de questões. Pelo contrário, não esconde o seu grande incómodo quando observa o papel ímpar que cabe à República Popular da China (que recorrentemente trata por "Império do Meio") na questão dos metais raros, em particular quanto às terras raras. Cinco capítulos do livro são, em especial, dedicados a esta problemática, incluindo uma particular atenção à questão dos mísseis inteligentes, área em que "o Ocidente" se encontra vulnerável.

Observação que contrasta com a perspectiva que terá antes partilhado de que a adopção das energias renováveis e da digitalização permitiria reforçar a "soberania energética" dos Estados membros da União Europeia ao tornar esta"menos dependente dos hidrocarbonetos russos, qatares e sauditas" (p.20).

Pitron enfatiza o facto de a China estar a tirar crescente partido de dispor da maior parte das reservas e de vir subindo na cadeia de valor da utilização das terras raras. Para a mesma potência, os ímanes de terras raras são muito mais pequenos que os ímanes de ferrite, lembra (p. 144).

Alarma-o facto, confronta-o com os correlativos erros estratégicos que tanto a França como os EUA cometeram quando permitiram o encerramento de unidades industriais do sector, em alerta que lhe parecerá importante para apelar a um repensar da guerra pelos metais raros que se desenha no mundo.

O autor enfatiza as questões económica e industrial, a ecológica, mas também a de segurança militar e geopolítica com este afunilamento que as chamadas novas tecnologias verdes encerram com a dependência da China.

Os "... equipamentos mais sofisticados dos exércitos ocidentais (robôs, armas cibernéticas, aviões de combate, como o caça americano... F35)" também dependem , "em parte, da boa vontade da China". Daí a previsão de "uma guerra entre os EUA e a China no mar da China meridional" (p.25).

Aqui chegado, o autor, sem se afastar da confusão corrente entre ambiente e clima, distancia-se não obstante do ambientalismo no que respeita a esta produção material. Lembra que em França se passou já do lamentável "NIMBY" [6] ao incrível "BANANA" [7] , propondo, por isso, a abertura de minas e a produção em França e no Ocidente.

Nesta linha, embora em nota de rodapé (p. 23), o autor comenta que o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas não contém uma única vez as palavras "metais", "minérios" e "matérias-primas". Eloquente, sem dúvida.

A obra de G. Pitron, como já se terá entendido, não esgota todas as questões fulcrais dos problemas, e das suas diversas facetas, que se colocam – em particular, quanto à energia. Não esquecer que já se esgotaram muitas reservas dos combustíveis fósseis (a UE não se esquece disso, embora passe o tempo a falar do dióxido de carbono). Entretanto, o livro ilustra muitos dos problemas que o ambientalismo em voga desconhece ou minimiza. 

[1] Guillaume Pitron, La guerre des métaux rares: La face cachée de la transition energétique et numérique , Éditions Les Liens Qui Libèrent, 2018, 295 p., ISBN 9791020905741.
[2] Além das terras raras, como metais raros o autor cita os metais pesados (ou de densidade muito superior à densidade da água): vanádio, germânio, grupo da platina – ruténio, ródio, paládio, ósmio, irídio e platina –, tungsténio, antimónio, rénio e, como metal leve, o berílio (p.16). Inclui erradamente também o espato-flúor, que é um mineral de flúor, um não metal, importante para a separação de isótopos de urânio.
[3] Ver nota de rodapé anterior.
[4] Inerente, por exemplo, à utilização de reagentes ácidos indispensáveis em certos processos metalúrgicos, mas venenosos para os humanos e muitas outras formas de vida.
[5] Não se pense que estas actividades se têm mantido indiferentes à inovação tecnológica, pelo contrário. A natureza das ligações químicas, por exemplo, impõe limites inultrapassáveis no consumo energético. Isso se verifica quando destruímos certas ligações químicas a fim de isolarmos um dado metal presente na natureza sob a forma de um composto químico.
[6] NIMBY: Not In My BackYard.
[7] BANANA: Build Absolutely Nothing Anywhere Near Anything.

Ver também: 
  pt.wikipedia.org/wiki/Terra-rara 

[*] Engenheiro químico. 

Esta resenha encontra-se em http://resistir.info/ 

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