O historiador e professor
universitário está preocupado com a contaminação das ideias de extrema-direita
na sociedade
Um dos autores do livro “Espectro
dos Populismos - Ensaios Políticos e Historiográficos”, editado recentemente
pela Tinta da China, Manuel Loff dedica-se a estudar o fascismo do século XX.
Historiador e professor universitário, alerta que nos dias que correm o
fascismo não avança sob as mesmas vestes de outrora, usando antigas narrativas
mas diferentes instrumentos. “O fascismo do século XXI evita o golpe militar, a
rutura da ordem constitucional, opta pela transição autoritária”.
No livro os autores recusam
sempre a existência de um populismo, afirmando existirem vários, mas quais são
as diferenças?
O populismo é muito mal usado,
muito mal aplicado. E com a mesma falta de rigor como se usa ‘terrorismo’ ou
‘totalitarismo’. Nele pode caber de tudo e tem-se popularizado a ideia de que
existe um populismo de esquerda e outro de direita. À escala europeia, discordo
da ideia dos dois populismos. Entendo que, no passado, o conceito foi
concebido, desenhado e aplicado com rigor e de forma correta a fenómenos que são
considerados populismos de esquerda e que têm uma relativa unidade entre si,
como o varguismo no Brasil depois da ditadura de 1945; o peronismo na
Argentina; no final dos anos 60, o regime de Velasco Alvarado no Peru. Na
Europa, de toda a época contemporânea, a ideia de um populismo de esquerda
parece-me inaplicável. O populismo emerge sempre à direita, entre aqueles que
recusam a distinção esquerda/direita, que evitam posicionar-se no ponto de
vista da discussão entre a prioridade dada pela igualdade social ou à da
liberdade económica. A realidade europeia diz-nos isto. Um dos líderes
políticos mais tipicamente populistas da direita foi Cavaco Silva com toda a
sua retórica do antipolítico, da desconfiança dos intelectuais e promoção da
ideia de uma liderança forte que quer trabalhar contra os entraves do regime
democrático do Estado de Direito.
Como caracteriza o Podemos
espanhol, que inspirou ou tem inspirado grande parte da esquerda europeia?
Não o vejo de forma alguma como
organização populista.
Uma das características do
populismo é a divisão da sociedade em dois campos antagónicos, os de baixo e os
de cima, ou, no caso da extrema-direita, os nacionais contra os estrangeiros e
elites. O Podemos usa muito a “casta” contra o povo.
Usava mais do que usa agora. A
ideia de ver a sociedade socialmente polarizada não é nem invenção nem
exclusivo dos populismos. A esquerda faz exatamente a mesma coisa e fê-lo
historicamente, da mesma forma como a direita o faz.
A tradição marxista divide a
sociedade em classes, enquanto o sujeito do populismo apenas se encontra na
narrativa e não nas relações materiais da sociedade.
Não sou partidário da tese de
[Ernesto] Laclau e não me revejo na forma como descreve a realidade. Por mais
que Laclau, Chantal Mouffe e outras pessoas se tenham impressionado com estas
teses, acho que desajudaram claramente à construção de movimentos sociais com
consistência suficiente para perdurarem no tempo e produzirem efeitos políticos
que podem não passar pela vitória política a breve prazo, mas que podem e devem
reunir condições práticas. Qualquer divisão da sociedade, mesmo que use o povo
contra a casta, o que está é a reutilizar termos que o velho Marx já usava no
passado e que evidentemente tem a ver com os explorados e a classe dominante.
Não acho, honestamente, que tenha emergido uma alternativa social que
ideologicamente se aproxime da esquerda e possa ser caracterizada como
populismo de esquerda. O populismo, como retórica argumentativa e ideológica de
relação entre grupos políticos e sociedade, é um outro nome para aquilo que é
em geral as manifestações da extrema-direita e da direita mais reacionária
depois da derrota histórica do fascismo, que é hoje um cadáver muito
vivo.
A Chantal Mouffe publicou agora
um livro (“For a Left Populism, Verso Books”) a defender uma estratégia
populista para a esquerda. Considera que o populismo pode ser útil e uma opção
para a esquerda?
Não conheço o livro. Li coisas
mais antigas dela e sei que o publicou. Caso concreto do Podemos: desde o
momento em que surge até 2015 tem como proposta ser um movimento político e
social, a partir da mobilização das camadas populares e, sobretudo, daqueles
que nos últimos 30 anos estão mais afastados da participação política, evitando
falar de esquerda. Posicionou-se em temas centrais do debate político e social
ao usar conceitos e categorias não identificados na sociedade como de esquerda.
Parece-me que não teve os efeitos que se pensava: produziu uma grande dose de
ambiguidade e dificultou a articulação entre o Podemos e vários outros atores
na sociedade espanhola. Fez com que houvesse, sobretudo a partir de 2016, uma
viragem do discurso e, talvez, a estratégia de mobilização do Podemos,
tornando-o num ator mais consistente.
Agora, a direita atira à esquerda
a ofensa de ser populista e, no caso português, diz que não há partido
populista de extrema-direita por já existir o PCP e o BE. Um argumento que
serve sobretudo a uma direita que diz: “tudo quanto ataque o consenso de
Washington, de Copenhaga e da definição do que é a democracia centrada nos
valores e nas práticas do capitalismo, é populismo”. Quando se teoriza à
esquerda em torno da necessidade de um novo ator político populista está-se a
partir de uma profunda desilusão com o percurso político e a capacidade mobilizadora
da esquerda. Desde Thatcher e Reagan que se deu uma viragem à direita muito
forte, da qual ainda não saímos. Bem pelo contrário, está a agravar-se com a
extrema-direita.
Porque é que ainda não vimos a
emergência de forças populistas, seja à esquerda ou à direita, em Portugal?
Houve muitas microexperiências, a
tentarem imitar mais do ponto de vista organizativo do que ideológico, o
fenómeno do Podemos. Deram origem a muitas coisas de que o próprio LIVRE é
representante, mas não tiveram qualquer representação eleitoral particular e
capacidade para abrir um espaço num momento particularmente fértil, o da
reemergência dos movimentos sociais, da resistência contra a austeridade e da
devastação social nos anos da troika. Porque é que a extrema-direita não
aparece? O fim da ditadura inibiu os partidos da direita de assumirem, pelo
menos abertamente, uma grande parte da sua herança. Mas não existem valores,
pessoas, indivíduos, posturas e análises que são típicas da extrema-direita em
Portugal? Claro que existem. Estão dentro dos partidos da direita clássica.
Cavaco Silva é uma belíssima representação daquilo que é o populismo, do ponto
de vista do enunciado e discurso ideológico do cavaquismo enquanto governo. O
cavaquismo foi em grande parte uma recuperação de muitos dos valores sociais,
de organização da sociedade do próprio salazarismo. Há - houve sempre, continua
a haver - muito neosalazarismo dentro do discurso das direitas portuguesas, que
têm um grau muito significativo de pragmatismo - e assistimos a isso na
organização do sistema de partidos à direita -, ao não criar autonomamente
organizações de extrema-direita que reivindiquem um determinado discurso sobre
a nação, sobre o caráter intrinsecamente colonial da nação portuguesa. Toda a
discussão em torno do Museu das Descobertas revela bem como uma mentalidade
neocolonial permanece e não é exclusiva de uma pequeníssima extrema-direita.
Está presente em toda a direita clássica e no que até se poderia chamar um
certo liberalismo elitista, que, muitas vezes, se revê no PS e que no discurso
reproduz quase ipsis verbis aquilo que qualquer ideólogo salazarista diria. A
extrema-direita existe em Portugal e evoca, como fazem os populismos, uma
espécie de figura mítica: o povo português.
Se a extrema-direita está dentro
do PSD e CDS, como diz, este novo movimento do André Ventura é uma tentativa de
emancipação?
Sim, e até incluiria, com o pouco
que sabemos, a Aliança de Santana Lopes. O caso do Ventura é muito mais
patético do que, evidentemente, o do Santana Lopes, cuja ameaça de criar um
partido é uma coisa antiga e, portanto, um pouco mais consistente. O Ventura
deve ter sido vereador de Loures por um dia ou dois, mas Santana Lopes foi
primeiro-ministro. Não é bem a mesma coisa. Em ambos os casos, existe essa
tentativa e sabemos que quando seria minimamente viável do ponto de vista
histórico, que foi o pós-Revolução e 25 de novembro em 1975, fracassou. Para
além de organizações como o MIRN, pela independência e renovação nacional,
associado ao Kaúlza de Arriaga, e aquilo que tentou ser uma frente de
extrema-direita que se designou Frente Nacional nas eleições de 1980. Nada
disso vingou. É a esse pragmatismo que me refiro. Durante anos, a
extrema-direita não vingou em
França. Por uma evolução própria da sociedade francesa, e por
desgaste e incapacidade da direita clássica em continuar a representar uma
grande parte da sociedade, a extrema-direita consolidou-se do ponto de vista
eleitoral. Em Portugal, não há essa tradição. Auguro os piores resultados, quer
para o Aliança, quer evidentemente para o Ventura. Foi sempre assim no passado.
Estes não são os primeiros partidos dissidentes da direita. Quem dá dinheiro e
tem paciência para militar nos partidos à direita é pragmático. E sabe que só
há dois partidos consolidados em que é viável fazer luta política. O Ventura
pode ser uma tentativa nesse sentido. É um puro produto de canais como a CMTV,
a pura espuma dos dias, e é uma destas figuras dentro de qualquer sociedade
atual que se limita a importar modelos estrangeiros e a pensar “é por aqui que
posso ganhar espaço político”. Concentrou-se na etnia cigana, deverá fazer
seguramente campanhas em torno de afrodescendentes, qualquer coisa dessa
natureza, e, quando começar a falar da definição do que é ser português, vai
voltar aos velhos mitos racistas do salazarismo.
Pensava-se que a Alemanha era
imune ao fascismo pelo seu legado histórico, mas não o é. Tem medo que o
populismo avance na Alemanha?
Claro que sim. Em vez de se usar
o termo populismo, é a velha extrema-direita alemã a recuperar um espaço que
foi perdendo. Foi dito nos média que é a primeira vez desde 1949 que a
extrema-direita chegou ao parlamento. Não é verdade. Na Alemanha Ocidental, a
extrema-direita governou em coligação com a CDU de Konrad Adenauer,
democrata-cristão hoje descrito como uma espécie de grande pai da integração
europeia. Adenauer não teve problema nenhum em governar por oito anos, entre
1949 e 1957, com a extrema-direita. A tese que enunciou é muito comum e
tende-se a esquecer que a extrema-direita se reorganizou rápida e
pragmaticamente. Não podia voltar ao poder nos mesmos moldes. É totalmente
a-histórico julgar-se que o fascismo vai reaparecer com as mesmas vestes, estética
e instrumentos dos anos 30. A
AfD não é o primeiro. Já estiveram no parlamento federal e, na década de 60,
partidos fascistas entraram nos regionais. Tendemo-nos a esquecer que em 1968,
descrito como uma vaga ou maré jovem de viragem à esquerda, houve uma forte
mobilização de extrema-direita. No caso português, deu origem a figuras como
Lucas Pires ou Jaime Nogueira Pinto. Em 1968, todos eles estavam na
universidade e todos eram neofascistas.
Tenho receio, mas não é, como se
comprova com o caso italiano do regresso da Liga ao governo, o regresso ao
poder. A extrema-direita sempre esteve no poder. As três eleições que
Berlusconi ganhou, ganhou-as sempre com a extrema-direita. Não há novidade
nenhuma na extrema-direita chegar ao poder em Itália. O que me
preocupa é precisamente isso. A extrema-direita já esteve dentro do governo ou
na área do poder, ou seja, governos da direita clássica dependem de votos da
extrema-direita no parlamento há 20/25 anos. Estou convencido que a AfD tão
cedo não ganha umas eleições e governa sozinha ou lidera uma coligação. O
problema é a contaminação, mais do que evidente, da batalha ideológica que a
extrema-direita tem feito e ganho com os programas eleitorais aos governos da
chamada direita democrática. O fascismo do século XXI evita o golpe militar, a
rutura do sistema constitucional; opta pela via da transição autoritária.
Em 2015, tivemos a maior vaga de
imigração para a Europa desde 1945, mas depois diminuiu significativamente. A
extrema-direita continua a usar a narrativa da ameaça da imigração e a CSU na
Alemanha quer políticas mais duras em relação aos migrantes. Não estará o
centro a adotar as políticas da extrema-direita e a legitimá-las?
Claro que sim. Houve uma grande
vaga migratória em 2015, mas não tem comparação nenhuma, em proporção, com
aquela que foi para o Líbano. O número de sírios no Líbano supera em dez ou 20
vezes o número de sírios que fugiram para a Europa. Mas é verdade que a Europa,
e dentro da Europa, particularmente a Alemanha, percecionou 2015 como uma vaga
migratória, que depois se estancou e poderia ter perdido esse impacto. A
extrema-direita conseguiu aproveitar aquilo que foi a descrição, até em termos
visuais, de uma invasão - massas comunais de desgraçados a caminharem milhares
de quilómetros e a serem barrados numa primeira fronteira na Macedónia, depois
em outra na Sérvia, outra na Hungria e outra na Áustria. Com essa perceção, que
impressionou muitos europeus - numa das situações económicas mais graves que o
conjunto da economia europeia sofreu desde 1929 - permitiu à extrema-direita
retomar a sua mais velha teoria sobre as ameaças e os perigos para o Ocidente,
para a cristandade. Uma descrição taticamente neomedieval que o nacionalismo
romântico também já tinha. Criou a imaginação de uma Europa ameaçada por uma
espécie de anticruzada que vem do leste - vem sempre do leste. A velha tese da
extrema-direita é as nações terem, como no mapa político, uma cor unívoca, e de
que com a migração a identidade nacional está ameaçada. Essa narrativa, de que
vêm estrangeiros de outros continentes, cores de pele e religiões desvirtuar o
corpo da nação, misturar e contaminar o sangue nacional é a mais velha das
narrativas da extrema-direita. Não houve uma invasão da Europa, é uma narrativa
totalmente exagerada.
Essa narrativa da extrema-direita
parece ter tido algum impacto na esquerda alemã. A Sahra Wagenknecht avançou
com um movimento de esquerda antimigração e afirma que o está a fazer para
combater a extrema-direita.
É uma narrativa que os média têm
feito do novo movimento dela. Não sei se é anti-migração ou se está a fazer uma
interpretação sobre a situação em que o mercado de trabalho capitalista coloca
os migrantes: a sua vida é tão precária em termos laborais e legais que
tenderão a aceitar condições de trabalho que levarão à precarização do trabalho
de todos os outros.
Uma das propostas de Wagenknecht
é intensificar o controlo das fronteiras. É um bocado na linha de Horst
Seehofer, ministro do Interior alemão e líder da CSU da Baviera.
Esta interpretação de natureza
social - da forma como o mercado de trabalho capitalista incorpora e se
aproveita da mão-de-obra migrante -, subscrevo-a. Mas não subscrevo, e até
entendo ser uma traição aos princípios de esquerda, entrar na paranoia
securitária. Isso é que é grave. A paranoia securitária não é apenas da
extrema-direita, é em grande parte do conjunto da sociedade. Se é uma
manifestação de populismo de esquerda ou não - e tenho muitas dúvidas sobre o
conceito -, não sei, mas deixou-se contaminar. Muitas pessoas da base
social da esquerda deixaram-se, em muitos casos, contaminar pelo terror, pelo
medo e relativo pânico da imigração. Na paranóia securitária vive Macron, o
herói da resistência liberal contra o populismo de extrema-direita. A França,
onde hoje não se aplicam várias cláusulas dos direitos humanos e onde se
banalizou o estado de emergência que vigorou entre 2015 e 2017, há normas
legais dirigidas em grande parte contra suspeitos de terrorismo e em muitos
casos a imigrantes ilegais, implicando coisas que nem houve na ditadura
salazarista. Ao abrigo das leis antiterroristas, a polícia pode deter por seis
dias um suspeito sem o apresentar a tribunal ou lhe permitir aceder a um
advogado. No primeiro ano em que o Estado de emergência vigorou em França, a
polícia proibiu 95% das 600 manifestações convocadas por sindicatos e coletivos
contra a reforma de trabalho que o governo de François Hollande queria fazer.
Não se pode comparar o fascismo
da década 30 aos movimentos fascistas de hoje, mas quais são as principais
diferenças? Fernando Rosas refere que o fascismo era um movimento de massas
organicamente estruturado, enquanto hoje tende a focar-se nas redes sociais e a
ter partidos de fachada.
Desapareceram praticamente todos
os partidos de massas. Seria um bocado absurdo esperar que o neofascismo dos
nossos dias tivesse partidos de massas. A mobilização política do neofascismo -
e o Rosas tem toda a razão - é, em grande parte, através das redes sociais.
Continuo a ser partidário da tese de que o meio é a mensagem. Não é
simplesmente veículo de mensagem. Não é um discurso reacionário sobre as redes
sociais, é perceber qual o papel e a enorme ligeireza que têm. A mobilização
nas redes sociais não é a mesma coisa que uma assembleia de militantes e ativista
tem. Houve determinados momentos que foram de grande presença. As pessoas
encontravam-se e faziam assembleias regulares à escala de bairro. Mas foram
substituídas - e aí a extrema-direita não é diferente da esquerda - pelas redes
sociais, com os ativistas a entenderem que as redes sociais substituem a
prestação presencial. Agora, a capacidade que os movimentos de massas tinham no
passado de fazer opinião, no caso da extrema-direita replica-se, aumentou,
multiplicou-se, via redes sociais. Em segundo lugar, os neofascistas
perceberam, como já o fizeram no passado, que podem contar com um liberalismo
autoritário, com a ajuda de regimes constitucionais de aparência
liberal-democrática; podem contar com a capacidade efetiva do poder e, em
concreto, do braço policial e dos serviços de informação. O objetivo da
extrema-direita é penetrar nesses instrumentos e sabemos que o está a fazer.
Não é a primeira vez. Está a entrar no espaço material do poder depois de ter
contaminado o discurso ideológico à sua esquerda, o da direita clássica, e sem
precisar de encenar a tomada violenta do poder ou a eliminação sistemática dos
seus adversários políticos.
O objetivo do fascismo é
domesticar a classe trabalhadora e para o fazer precisa de destruir as suas
organizações de classe.
Para domesticar as organizações
de classe e sindicatos não precisa [da violência]. O neoliberalismo já o
faz.
Mas a eliminação física dos
opositores contra o fascismo está descartada?
Não, não, de forma alguma.
Se Hitler e Mussolini criaram
milícias, Bolsonaro não o está a fazer, mas o seu movimento inorgânico está e
há cada vez mais ataques isolados.
A violência não desapareceu. Não
há fascismo sem violência e a violência é intrínseca ao fascismo. Essa
violência não tem de ser - por se organizar de forma orgânica - sob a forma da
atuação de policias politicas. Mas não nos esqueçamos que um governo que não é
tipicamente fascista, como o de [Michel] Temer [presidente do Brasil em
exercício], ocupou militarmente o Rio de Janeiro. Bolsonaro já o prometeu e
estou convencido que o fará. Existem milícias informais e não sei se têm
qualquer ligação efetiva ao partido de Bolsonaro, o PSL. Não foi necessário
haver um governo Bolsonaro para que tenha acontecido a militarização da
sociedade, com a ocupação do espaço público, que é uma das manifestações
públicas do fascismo. Quem implementou o mais longo estado de emergência em
França com militares armados de metralhadora em todos os espaços públicos? Foi
um governo socialista, liderado pelo coveiro do PS francês, Manuel Valls.
Ninguém se lembraria de acusar Valls ou Hollande de serem fascistas. A
banalização de sistemas de vigilância - atenção, legais -; a existência de
Estados de emergência; a abertura de exceções à aplicação de direitos humanos e
convenções internacionais; a ocupação militar do Rio de Janeiro, no caso do
Brasil, não foi feita por governos fascistas. Quando Bolsonaro pegar nesses
instrumentos e os estender, argumentará que os outros o fizeram.
Nos anos pós-crise
económico-financeira a esquerda ganhou força, mas há dois ou três anos perdeu-a
e surgiu a extrema-direita. Em que é que a esquerda está a falhar, se o está?
Não estou completamente de
acordo. Pode dizer-se que tem estancado. O que tem acontecido à esquerda é a
implosão evidente da social-democracia depois de ter adotado, a partir de 1980,
as perspetivas liberais da economia e abandonado a sua vontade e prioridade de
representar as classes populares a que o Estado Social tinha melhorado as
condições de vida. A implosão da social-democracia resulta essencialmente da
sua traição ideológica, de ter abandonado o legado ideológico que dizia
reivindicar desde o século XIX, e passado de armas e bagagens para o campo do
liberalismo económico.
Um dos riscos que corríamos em
Portugal com a entrada, muito reduzida, na área do poder do BE e PCP era que se
reproduzisse aquilo que tinha acontecido no caso do Syriza. Já tinha acontecido
no passado em países com fortes partidos comunistas, em França e Itália. Sempre
que organizações da esquerda, que continuam a reivindicar-se do marxismo,
ascendem ao poder e compactuam e transgridem na política económica em nome de
uma estratégia de quase frente popular - sem o dizerem -, para salvar o mínimo
e a democracia contra a devastação social ou a ameaça fascista, sofrem
gravíssimos riscos de perda de representatividade.
Isso não tem acontecido com a
geringonça? Mesmo com o Bloco e o PCP a aceitarem a austeridade, mesmo que
encapotada.
O caso português é surpreendente.
Os estudos de opinião dizem que não há perda de representação, a realidade
social também o diz, nomeadamente a capacidade de representação do
descontentamento social, isto partindo do princípio que muitas das greves
organizadas em Portugal no último ano têm ativistas do PCP e BE. Mas, ao
contrário do que aconteceu em França, Itália ou Grécia, não foram para o poder.
Não entraram, mas o défice tem
descido significativamente e a Comissão Europeia aplaude. Não há aqui uma
austeridade encapotada que vai contra todo o discurso do BE e PCP?
É evidente que há. Creio que se
tem percebido em Portugal que a política austeritária de tipo liberal é uma das
linhas vermelhas. O orçamento da defesa vai subir. Nesse sentido, o que se
percebe - e a esquerda e as classes populares continuam a perceber - é a
utilidade do voto. Os partidos à esquerda não participam diretamente no
governo, mas influenciam-no a partir de fora, sem perderem autonomia política
relativamente ao poder.
O que caracteriza uma frente
popular é a defesa da democracia liberal e a perda da independência política.
Compara a geringonça a uma frente popular.
É uma frente popular sem o ser.
Não acho que numa frente popular haja perda de autonomia política, não acho. Há
prioritização absoluta de uma coligação negativa de resistentes. As frentes
populares da década de 30 foram isso, uma prioritização da resistência.
A prioridade da resistência da
geringonça tem sido o retorno dos rendimentos e a defesa dos serviços públicos,
se bem que…
E uma alteração na legislação do
trabalho, onde os socialistas têm sido até agora intransigentes, como a
precarização do trabalho. Desde o início que todos sabemos quais são as linhas
vermelhas dos PS: não se toca nas relações externas, na política europeia e nas
relações de trabalho. Se me pergunta, não é muito? É muitíssimo. Qual era a
alternativa? Deixar a direita governar? Nesse sentido, se a direita continuasse
a governar, numa espécie de quanto pior melhor, valeria a pena deixá-la
acentuar as contradições do PS, fazê-lo implodir ainda mais e ter as condições
para ter uma maioria social do BE e PCP?
A História mostra que não é pelas
condições se degradarem que surgem alternativas. Acha que BE e PCP entraram na
geringonça sem estratégia?
Não acho.
Ou com uma estratégia errada?
Não acho, honestamente. Não acho
que estas coisas se façam com uma estratégia a quatro anos. Também acho que nem
o BE nem o PCP sabiam quanto tempo isto ia durar. Mas sabiam - e aprenderam com
outros à escala internacional - que com as atuais condições sociais, na
contração brutal dos direitos de rendimento e exasperação social à escala
internacional (e que no caso português não havia memória desde meados dos anos
80), produziram não forças de esquerda, mas o reforço da extrema-direita. Essa
esquerda que se reincidira do marxismo resolveu já no século XIX o problema
sobre se devia ou não participar no governo. Esta é uma das formas de
participar no sistema político e de descongelar o voto na sociedade portuguesa,
porque 15 a
20% votam à esquerda do PS. Depois de anos de contestação e mobilização, e com
a vaga de emigração, era necessário dar um sentido e utilidade a esse voto.
Perdendo essa utilidade, para que se elege? Esse ceticismo, a descrença no
sistema político, não é exclusivo do populismo de extrema-direita. A democracia
da abstenção em que hoje vivemos manifesta-se muito bem nos meios
populares.
As estatísticas têm mostrado que
muitos dos eleitores que votam na extrema-direita faziam-no na esquerda
socialista, na social-democrata ou até comunista, como em França ou Itália.
Porquê? A esquerda falhou?
Não estou de acordo. Não é
estatisticamente verdade que sejam os mesmos eleitores que tenham votado nos
socialistas ou comunistas os que hoje votam Frente Nacional em França. A
extrema-direita aparece com votação elevada em zonas onde a participação
eleitoral se derreteu como manteiga ao sol. Falamos de bairros onde a
participação está nos 35%, 40%, 50%. Onde é que a esquerda falhou? Há uma velha
discussão se a esquerda percebeu que iria ser vítima da alteração nas relações
de trabalho, na sua precarização e participação sindical, associativa e
política, tornando obsoleta e antiga a participação política orgânica. A
esquerda demorou muito tempo e foi improvisando. O Bloco de Esquerda, criado em
1999, muito antes do 15 de Maio espanhol e do Podemos, surgiu da mesma forma.
Já reparou que durante muitos anos o Bloco não falava de partido? “O Bloco não
é um partido, é um movimento”. Hoje não tem tanta dificuldade em se definir
como partido. O Francisco Louçã falava de uma esquerda moderna e depois das
eleições de 2002, desgraçadas para toda a esquerda, o Bloco foi abandonando
essa terminologia radical-democrática.
Acha então que o BE já não é tão
radical como no passado?
Pelo contrário, acho-o muito mais
radical do que era. Por isso é que saiu quem saiu do partido. Pela esquerda,
saiu Gil Garcia e Raquel Varela; são migalhas. Quem saiu do BE, e que os média
evidentemente valorizaram, foi Rui Tavares, Ana Drago, Joana Amaral Dias.
Pessoas que fizeram o percurso que nós sabemos. Rui Tavares é o campeão do
europeísmo de esquerda em
Portugal. Acha que mais do que esquerda/direita, a diferença
está entre europeísta e antieuropeísta, engrenando na tese de que quem está
fora do consenso de Copenhaga está fora da democracia. Não duvido que são
pessoas que se reivindicam da esquerda, mas quem saiu achou que o partido
estava demasiado parecido com o PCP, acharam que era demasiado do campo do
social. Sou dos que acha que o Bloco virou à esquerda.
Ricardo Cabral Fernandes | jornal i | Foto: Mafalda Gomes
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