Manuel Carvalho da Silva | Jornal
de Notícias | opinião
É surpreendente que sociedades
carregadas de injustiças e desigualdades, polarizadas em guetos, se tornem
perigosas? Sociedades onde uma ínfima minoria é muita rica e manipula todos os
poderes, uma grande parte é extremamente pobre e não tem voz, e no meio fica um
enorme massa de seres humanos a deslizar para o lado da privação e da
desesperança são sociedades em
perigo. Neste contexto, será surpresa surgirem messias
providenciais que, prometendo autoridade e segurança, encontram um público
disponível para os apoiar e até para lhes propiciar vitórias eleitorais? Não,
não é. Está a acontecer hoje o que já aconteceu no passado.
Não é preciso recorrer a
eufemismos para designar este tipo de processos políticos. Anda meio mundo a
falar do fenómeno do populismo e dos seus perigos, quando o que está na nossa
frente são mesmo expressões do fascismo. A diferença na sua manifestação
decorre das novas condições das sociedades, das formas de relacionamento, de
comunicar, de agir que, aliás, até lhe potenciam camuflagens.
Deparamo-nos com expressões de
fascismo como ele sempre foi. O que melhor o carateriza é velho: criminalização
de opiniões críticas; opressão de classe; sobre-exploração do trabalho;
submissão das mulheres; discriminação de minorias; afirmação do racismo e da
xenofobia; ataque à cultura e a uma educação plural; desacreditação de livres
representações coletivas que expressam os diversos interesses da sociedade;
promoção de animosidades e ódios para abrir campo a um unanimismo ditatorial a
que toda a estrutura e organização do Estado se devem submeter, porque
pretensamente interpreta o interesse nacional; instrumentalização dos tribunais
e dos sistemas de justiça; e, progressivamente, descaraterização e suspensão
dos mecanismos democráticos de eleição e representação.
Nas últimas décadas têm-se vindo
a gerar e a naturalizar instabilidades, precariedades e inseguranças em vez de
se lhes dar combate e de assegurar o seu controlo. Até a maior parte das
abordagens sobre os avanços científicos e tecnológicos é apresentada quase só
nas variáveis que sustentam visões apocalíticas do futuro, exatamente para
submeter os seres humanos. Ampliaram-se as disfunções e roturas nas relações
entre as pessoas, as gerações, as comunidades e os povos. As apropriações
indevidas da riqueza e a maior expressão do roubo a que hoje assistimos
tornaram-se "legais".
A impotência perante as
injustiças revolta as pessoas e atira-as para reações primárias que se tornam
alimento do fascismo. Não é essa massa de indivíduos que é fascista ou vê o
fascismo como solução. O que se passa é que a falta de segurança numa imensidão
de situações - desde as precariedades no trabalho à insegurança pública - gera
medos que isolam e acantonam as pessoas, diminuindo-lhes os ângulos de visão e
de apreciação objetiva sobre o que se passa na sociedade. Qualquer cidadão, por
mais esclarecido que possa ser, já experimentou esses sentimentos e bloqueios.
Temos hoje na Europa e noutros continentes
dinâmicas fascistas e uma enorme condescendência perante o seu desenvolvimento.
Muita boa gente atribui aos fascistas o "direito democrático" de
livremente se explicarem, exprimirem e propagandearem, como se a democracia
pudesse suportar tudo.
Em poucos dias, o novo presidente
do Brasil e a sua equipa mostram-nos como é perigosa essa
"tolerância". O que eles expressam não são meros tiques de
autoritarismo ou excessos conservadores, é sim um programa fascista que
estilhaça o quadro de valores e de simbologias que o Brasil conquistou e
ofereceu ao Mundo após a ditadura, é a pretensão de proibir a livre expressão
de ideias a que chamam "ideologia", de cilindrar os direitos dos
trabalhadores e o próprio direito do trabalho, de pôr polícias a atirar para
matar, supostamente bandidos, na prática tudo o que mexa em contracorrente.
Demorará algum tempo até que a
maioria do povo brasileiro se dê conta da verdadeira natureza do bicho.
Esperemos que não seja, desta vez, o tempo de toda uma geração, como aconteceu
no passado.
Temos a responsabilidade de agir
para evitar que a besta se instale no Brasil, no nosso país ou em qualquer
outro.
*Investigador e professor
universitário
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