As fake news e as novelas das
supostas ingerências externas em actos eleitorais são o pretexto para a criação
de corpos transnacionais de polícia eleitoral e o reforço do neoliberalismo
como fascismo social.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
A par da convergência dos
populismos e neofascismos para as muitas campanhas eleitorais que aí vêm no
plano internacional, está também em campo uma variante aglutinadora que
contribui para replicar, mais coisa menos coisa, as eleições presidenciais
norte-americanas de 2016. Incluindo aquilo a que o mainstream parece
reduzir a política de hoje: as fake news e as novelas das supostas
ingerências externas em actos eleitorais. Tudo a funcionar como nevoeiro para
disfarçar o grande objectivo em jogo: reforçar o neoliberalismo como fascismo
social – com mais ou menos fascismo político.
Chama-se Comissão Transatlântica
para a Integridade Eleitoral, funciona no âmbito de uma denominada Aliança para
as Democracias, com sede em Copenhaga e, entre muitas outras coisas, afirma
dedicar-se a combater as informações falsas e as interferências externas em
eleições; para isso, parte do princípio de que nenhum dos lados do Atlântico
está verdadeiramente preparado para os riscos que ameaçam os cerca de 20 actos
eleitorais que se realizam até 2020. Entre as notáveis e recomendáveis figuras
que desempenham estas missões estão membros das administrações Bush e Obama, um
ex-secretário geral da NATO e um organizador de esquadrões da morte na América
Latina, além de José María Aznar e Tony Blair.
A Comissão Transatlântica para a
Integridade Eleitoral diz que nasceu para acabar com a desinformação e as
interferências estrangeiras em actos eleitorais norte-americanos,
latino-americanos e europeus. Junta políticos no activo, ex-presidentes,
vice-presidentes e vários ministros de vários países, jornalistas, apresentadores
e editores de alto gabarito, algumas fundações, homens de negócios e também
figuras de proa de impérios tecnológicos globais como o Facebook e a Microsoft,
além de instituições indubitavelmente sintonizadas pela CIA, como o Conselho do
Atlântico.
Esta comissão define-se a si
mesma como «bi-partidária», entendendo-se por isso não apenas a formatação
política norte-americana mas também o tradicional «arco da governação» do
regime globalista neoliberal, isto é, os sociais-democratas liberais e a direita
da área do Partido Republicano/Partido Popular Europeu.
O seu objectivo central está
plasmado na panóplia de discursos e declarações proferidos e aprovadas na
primeira «Cimeira das Democracias», realizada em 22 de Junho de 2018 em
Copenhaga: combater tudo o que perturbe «o livre desenvolvimento das
democracias em todo o mundo e a instauração de mercados livres». A cimeira
nasceu das iniciativas do ex-secretário geral da NATO Anders Fogh Rasmussen e
do vice-presidente de Obama, Joseph Biden. As notas finais do encontro foram
redigidas por Tony Blair, acusado no seu país de ter mentido para provocar a
invasão do Iraque; e que já discursara anteriormente, tal como o ex-chefe do
governo espanhol, o neofranquista José María Aznar, que participou na encenação
da mesma mentira feita em Março de 2003 na Cimeira das Lages, nos Açores.
Combater a interferência
interferindo
Monitorar os riscos eleitorais
que vão sendo detectados, de modo a ajudar os países a identificar as
vulnerabilidades que facilitam as ingerências eleitorais externas, é uma das
linhas de acção da Comissão Transatlântica, que promete disponibilizar soluções
tecnológicas «contra a desinformação» e ferramentas baseadas em inteligência
artificial que sejam «destrutivas em relação a conteúdos falsos», além de
reduzirem as possibilidades de intromissão externa.
Segundo os apuramentos feitos
pela Cimeira das Democracias, na sequência de actividades de monitorização, 80%
das intromissões externas em eleições são de origem russa, como ficou provado,
segundo a Comissão Transatlântica, nas eleições presidenciais norte-americanas
de 2016, nos Balcãs e também no México, em 2018.
Embora não haja qualquer alusão
ao que se passou no Brasil de Bolsonaro, sabe a Comissão Transatlântica que as
eleições mexicanas ganhas pelo progressista e anti-neoliberal Lopez Obrador
foram alvo de ingerências do Irão, da Venezuela e, claro, da Rússia.
E sabe ainda que, nos Balcãs,
casos graves envolvendo igualmente Moscovo foram detectados no referendo sobre
a mudança de nome na Antiga República Jugoslava da Macedónia e que abriu a
porta às futuras integrações do território na União Europeia e na NATO.
Ora o que também está
absolutamente comprovado – mas fora do âmbito de acção da Comissão
Transatlântica – é que tanto o referendo macedónio como as recentes eleições
gerais da Bósnia-Herzegovina decorreram sob comando directo dos embaixadores
dos Estados Unidos e dos representantes locais da União Europeia, passando
inclusivamente pela compra de votos de deputados para obtenção, por via parlamentar,
do que não foi possível pelo caminho referendário. Terão sido estas acções
inseridas já no âmbito da «monitorização» montada pela Comissão Transatlântica?
Nada obsta, tanto mais que um dos objectivos expresso por esta é estar «um
passo à frente dos acontecimentos», onde cabe perfeitamente o princípio de
combater a interferência interferindo por antecipação.
Convergência no fascismo
ucraniano
«Trabalhar com empresas
tecnológicas na criação de ferramentas inovadoras para combater a desinformação
e os conteúdos falsos» é um dos mandamentos de topo da Comissão Transatlântica
para a Integridade Territorial, no âmbito da Aliança das Democracias.
Por isso, na lista de nomes
sonantes que dão corpo a estas novas instituições supranacionais é possível encontrar,
a par de famosos leitores de telepontos na ABC e na CNN e
da editora do Bild, o expoente dos tablóides europeus, um dos mais
graduados directores da Microsoft na Europa, John Frank, e também Richard
Allan, vice-presidente da divisão de Soluções Políticas Globais do Facebook.
Tendo já sido detectadas actividades desta catedral das redes sociais pouco
compatíveis com a liberdade de expressão, a democracia e o equilíbrio
eleitoral, não será difícil prever agora uma dinâmica reforçada no combate às
chamadas fake news, tendo no horizonte as eleições até 2020, a começar pelas
europeias de Maio próximo. Chegados a este ponto fica a faltar saber como vão
as novas ferramentas distinguir entre conteúdos falsos ou aqueles que apenas
contradizem democraticamente quem as manipula. Os famosos algoritmos estarão
fiavelmente ensinados para distinguir o que é verdadeiro do que é falso ou é
apenas contraditório?
Sabemos que a extrema-direita e o
neofascismo, arrebanhados atrás da figura carismática de Steve Bannon, o homem
que fez de Trump presidente dos Estados Unidos e de Bolsonaro presidente do
Brasil, trabalham activamente nas estratégias para próximas eleições na Europa
e Américas.
A Comissão Transatlântica, dentro
da Aliança das Democracias, surge igualmente a marcar terreno na área do
neoliberalismo, parecendo contrapor o globalismo do chamado «Partido de Davos»
– o classicismo neoliberal que tem prevalecido – a uma ortodoxia do regime que
vai beber às suas raízes em Pinochet e ao fascismo chileno.
Mas se este pode ser confundido
com a figura de Steve Bannon, não é difícil encontrar almas gémeas na Comissão
Transatlântica como Michael Churtoff, secretário para a segurança interna na
administração de George W. Bush e, sobretudo, o inigualável John Negroponte, há
muito defendendo a democracia com Reagan, Bush pai e filho, Clinton, Obama,
Trump e até como embaixador na ONU. Esteve na saga dos «combatentes da
liberdade» apoiando terroristas como os da Unita, somozistas na Nicarágua,
Mujahidines e al-Qaida, sem esquecer os métodos de falsificação de eleições,
designadamente nas Honduras, de que houve novo exemplo bem recentemente. O
mesmo Negroponte que não hesitou em coordenar a formação e actuação de
esquadrões da morte na América Latina, enquanto embaixador dos Estados Unidos,
quando a sua «democracia» estava supostamente em perigo, mesmo que fosse
através de eleições livres e democráticas. Agora reencontramo-lo
disponibilizando inesgotáveis recursos à Comissão Transatlântica para a
Integridade Eleitoral, sendo legítimo supor que a sua cartilha democrática, tão
testada e aplicada, apenas se reforçou, não se alterou.
Pelo que não é surpresa observar
as hostes de Bannon e Biden, Rasmussen e Negroponte – erigidas em polícias
eleitorais – convergindo na figura de Porochenko nesta nova fase para reforço
da institucionalização do fascismo ucraniano, nas eleições presidenciais de
Março.
Será talvez difícil apurar qual
das polícias, ou se foram ambas, recorreu à ferramenta nada inovadora da
provocação no Estreito de Kerch, no passado dia 25 de Novembro, que permitiu ao
presidente Porochenko declarar a lei marcial para se posicionar como favorito
inquestionável. Ele que não passava dos 8% antes do conveniente «incidente».
Não tenhamos dúvidas, porém, de que as próximas eleições ucranianas,
decorrentes de um estado de excepção e organizados por metade de um país que
impõe o terror militar fascista a outra metade, encaixa tanto no figurino
«democrático» do «Partido dos Populistas» de Steve Bannon como no do «Partido
de Davos» de Blair, Aznar, Biden e Negroponte, mais esquadrão da morte, menos
esquadrão da morte. Donde não nos será difícil ter uma ideia dos critérios que
vão seleccionar a informação expurgada de toda a desinformação e falsidade a
servir aos eleitores envolvidos na escolha de duas dezenas de governos,
parlamentos e presidentes em pouco mais de 12 meses.
Para estes corpos transnacionais
de polícia eleitoral, com as suas divergências, que não são de fundo – longe
disso – o que vai jogar-se é somente a manutenção do sistema de exploração
garantido pelo capitalismo selvagem, o neoliberalismo económico, o fascismo
social. Mais ou menos fascismo político, isso depende apenas do doseamento de
meios para obter o mesmo fim.
Na verdade, estes campos são
fáceis de identificar. Assim as pessoas queiram vê-los e combatê-los.
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