Manuel Carvalho da Silva* |
Jornal de Notícias | opinião
Os portugueses têm assistido ao
longo de décadas a políticas de factos consumados, muito em particular no que
diz respeito a opções estruturais da economia e do papel do Estado.
O caminho tem sido o de servir o
poder económico e financeiro nacional e internacional, secundarizando os
interesses do povo e do país. Ao mesmo tempo os cidadãos vêm sendo torturados
em nome do cumprimento das regras "sagradas" da gestão do défice e da
dívida, e das determinações europeias. Os direitos fundamentais à saúde, à
educação ou a uma vida digna são espremidos ou eliminados em nome da saúde
financeira ou quando chocam com as "leis do mercado". Os instrumentos
de tortura são os números manipulados conforme as conveniências. E uma
governação que privilegia a supremacia plena da finança torna-se,
inexoravelmente, em eficaz torturador.
Paira hoje no ar um certo
eleitoralismo na ação do Governo, mas não só. Tomemo-lo como próprio da época
(sem deixarmos de o combater) e foquemo-nos na observação de uma outra questão
mais importante: como e porquê chegamos ao nível de problemas com que nos
deparamos no que diz respeito a desequilíbrios regionais, a dificuldades
estruturais nas mobilidades, a elevados custos da energia e atrofiamentos de
setores estratégicos da economia, a bloqueios do papel e da ação do Estado e da
Administração Pública (AP)? Debrucemo-nos sobre as razões de o trabalho ser mal
remunerado e haver tanto trabalho de baixa qualidade que afasta a juventude do
país.
É por demais evidente que o
enorme poder oferecido aos acionistas da ANA no processo da sua privatização -
conduzido pelo Governo PSD/CDS - bem como as posições de vantagem da VINCI na
exploração da ponte Vasco da Gama, conferem àquela empresa (o Governo
reconhece-o) condições dominantes sobre as escolhas para o futuro aeroporto de
Lisboa. Hoje não falta quem diga que aquela privatização foi escandalosa.
Muitos calaram-se ou apoiaram-na na altura. O Partido Socialista não lhe fez o
combate que devia ter feito e o seu Governo atual não pode, de forma alguma,
dizer que não há nada a fazer, nem sequer esboçar alternativas.
Na ferrovia as medidas agora
anunciadas são prementes, mas continuam bastante insuficientes. Sucessivos
governos destruíram impunemente linhas férreas, retardaram respostas afastando
passageiros, não reestruturaram como deviam as empresas do setor para que elas
pudessem responder às necessidades. O Governo tem de esclarecer mais as suas
decisões e identificar em que linhas está a pensar colocar o reforço de
material circulante que anunciou. E dizer se será um facto consumado a
privatização das ligações ferroviárias mais rentáveis.
O primeiro-ministro diz que é
preciso decidir e agir, recuperar tempo perdido. Espera-se que nos meses
próximos o Governo assim proceda em áreas importantíssimas.
Que introduza os indispensáveis
reequilíbrios na legislação laboral e ajude à revitalização da contratação
coletiva, medidas indispensáveis para modernizar as empresas, melhorar a
qualidade dos salários e do emprego, travar a emigração e atrair trabalhadores
portugueses e estrangeiros qualificados. Que corrija aquilo que está a propor
aos trabalhadores da Administração Pública (AP), pois ao não colocar o valor da
Remuneração Base (635 euros) na primeira posição da Tabela Remuneratória Única
da AP, que garante a proporcionalidade em todas as posições remuneratórias,
está a prejudicar todos os trabalhadores do setor e a desrespeitar a lei. Que
reforce as capacidades de todo o sistema de ensino, a valorização e
dignificação dos professores e que, com as universidades e outros atores, ponha
em marcha políticas que possibilitem um muito maior acesso ao Ensino Superior,
trazendo para ele, também, um grande número de jovens adultos que estão no
mundo do trabalho.
Que se deixe de guerras de
números sobre o investimento na saúde e assuma as imperiosas decisões de
melhorar e aumentar capacidades estruturais, humanas, técnicas e
organizacionais do Sistema Público e defenda o Serviço Nacional de Saúde contra
gulas privadas.
Será nestas áreas que se
confirmará ou infirmará a efetiva coragem do Governo e o merecimento ou não do
apoio dos portugueses.
*Investigador e professor
universitário
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