Martinho Júnior, Luanda
Aqueles que um dia sonharam com
uma Angola independente, com uma Angola libertada, olham com aqueles olhos que,
desde a saga da revolução dos escravos no Haiti, perscrutam o futuro e nos
interrogam, nos interrogam por dentro de nós mesmos, quando nossa ignorância e
as nossas falências os faz remexer desde as telúricas entranhas da Terra, ou
desde o abismo do Atlântico, para onde foram atirados tantos e tantos escravos
ignotos!...
Que vamos fazer quando esses
olhos nos acompanham, seguindo resolutamente nossos passos, nossos actos e
estão tão presentes por dentro dos corações ardentes que animam nossas próprias
vidas?...
1- Angola em paz, desde o 4 de
Abril de 2002, uma paz toda ela por se construir a partir duma ausência de
tiros que ficou como uma dádiva e uma oportunidade, tão substantiva quanto os
povos de África tanto carecem e merecem!
A paz em Angola, para todos os
povos africanos, é já um transbordante exemplo que ninguém pode descartar, por
muito inábeis e sofridos que sejam os homens, por muitos traumas que ainda haja
que vencer, por muitas dores que um universo desequilibrado, assimétrico e
injusto faz recair sobre aqueles que compõem a cauda dos Índices de
Desenvolvimento Humano, conforme os relatórios anuais da ONU…
A paz numa ultraperiferia
económica, é algo de incontornável que garante a luta que se tem
obrigatoriamente de travar para finalmente se vencer o subdesenvolvimento que
se arrasta dum passado milenar…
Mesmo com os termos duma terapia
neoliberal que as fragilidades humanas dos angolanos não souberam, nem
conseguiram evitar, a paz está aí e a presente luta contra a corrupção é um
dado novo adquirido, que se espalha entre a folhagem dos fenómenos, quando
esses fenómenos, tantas vezes negativos, subversivos, perniciosos, tanto têm de
ser combatidos, dialeticamente combatidos a partir de sua própria raiz causal!
A paz permite mesmo assim um
balanço desassombrado, reflexivo, num país pujante, num país novo que nem 50
anos perfez, num país arrancado às trevas da opressão escravocrata, colonial e
do último sinal de crueldade que foi o “apartheid”, com todas as suas
terríveis sequelas que integraram o choque neoliberal dos anos 90 do século XX
em África!
Em Angola lembramos a saga do
movimento de libertação em África, por que é a partir dessa saga que temos de
percorrer os caminhos do presente e do futuro, para mim, apenas um antigo
combatente partícipe, num quadro imperativo de lógica com sentido de vida, duma
paz em construção e dum amor que desafia na devassa dos tempos!
2- A paz em Angola começou por
ser uma ausência de tiros, mas com passos seguros já é algo mais que um exemplo
para todos os povos da Terra: houve desarmamento geral e uma contínua operação
de desminagem, num território que, a par do Cambodja, foi um dos mais minados
territórios do planeta!
Os resultados desse caminho de
desarmamento e desminagem actuam na psicologia de todo o povo angolano, em todo
o território nacional, algo que também transparece quando se comemoram algumas
das maiores batalhas que se travaram pela libertação de toda a África Austral,
na sequência da trilha de Argel ao Cabo da Boa Esperança!
Vive-se ainda na euforia dessa
reviravolta tão legítima que dá sequência incontornável ao transatlântico
movimento de libertação!...
A psicologia do medo, constante e
persistente, do medo fomentador de tantos traumas, dissipa-se a cada passo e
confere abrangência, particularmente nas grandes cidades, onde há cada vez
maior liberdade de expressão.
Aqueles estados que permitem a
disseminação de armas pela sua população, deveriam aprender com Angola, que a
luta pela paz, passa inexoravelmente pelo desarmamento massivo e pela
desminagem extensiva, um trabalho consequente que deve estender-se por décadas,
em especial num continente em que só poucos países produzem armas e a maior
parte delas são importadas pelas mais ínvias rotas, por traficantes da morte,
fundamentalistas da guerra, sem escrúpulos, sem ética e sem moral!
Os Estados Unidos, instrumentalizados
pela hegemonia unipolar, onde o “loby” da energia e do armamento se
tornou de tal modo preponderante que a sua própria sociedade vive em
contraditórios que constituem uma autêntica guerra civil não declarada, de
intensidade e de geometria variável, tem a oportunidade de aprender no livro
aberto da paz em Angola!
Em Angola o acto de amor em paz,
da dignidade em paz, expressa-se desde logo pelos resultados magnânimos do
desarmamento e da desminagem, uma das primeiras grandes vitórias colectivas,
abre as portas da civilização para o futuro e fecha as bárbaras portas que
pouco a pouco deixam de estar húmidas de sangue e de lágrimas…
Do chão e das mãos dos homens,
foram arrancadas as armas e essa vitória deve ser comemorada não só a 4 de
Abril: deve ser comemorada todos os dias em que o amor recria novas gerações,
que em paz estarão efectivamente aptas a construir o futuro, uma riqueza
inesgotável que transborda pela humanidade que urge resgatar, definitivamente
resgatar, marcando a civilização que cada vez mais faz desvanecer a barbárie!
3- A paz trouxe a oportunidade
para outras batalhas num universo tão conturbado, onde 1% procuram dominar
todos os demais, manipulando com todos os meios à sua disposição, meios que
foram criados a partir da Revolução Industrial e há bem pucos anos, a partir
das Novas Tecnologias!
As opções que a paz nos trouxe,
colocam-se sempre no que deve reverter para a civilização e o que deve
desvanecer em relação à barbárie: quer no que se realizar no que diz respeito
ao homem, quer no que se realizar no imenso que se deve respeitar em relação à
Mãe Terra…
Um dos principais desafios é
vencer as assimetrias dum país dimensionado a partir dos olhos dos que há
séculos chegaram por mar e injectaram a barbárie que povo algum merece!
Esse imenso desafio, que integra
o pacote de outros desafios que se nos deparam na longa luta contra o
subdesenvolvimento, obriga à nova opção que tenho proposto com intensidade, em
prol duma lógica com sentido de vida que equacione os relacionamentos
antropológicos do homem com seu espaço vital, particularmente no que à água
interior diz respeito.
Essa busca de equilíbrio rompe com
as culturas cujos olhos pertencem aos que chegaram por mar e abre-se para uma
geoestratégia para um desenvolvimento sustentável, num quadro que pertence já à
era duma cultura de inteligência patriótica, tirando especial partido da
angolana rosa-dos-rios, que tem como seu fulcro o centro geodésico, o centro
geográfico do quadrado que é o próprio território nacional.
Lutar contra o subdesenvolvimento
numa geoestratégia para um desenvolvimento sustentável nesses termos, é algo
que permite dimensionar um futuro que tudo tem a ver com a cultura da vida, a
muito longo prazo, para os séculos vindouros, pelo que é uma larga avenida para
se mobilizarem os jovens da presente e das futuras gerações.
Os cuidados em relação à região
central das grandes nascentes e em relação aos complexos ambientes dessa
região, nem em embrião estão e há que vencer os atavismos das mentalidades
arquitectadas pelo passado e pelo presente de tão inquinada globalização, mas
da minha parte, que costumo assumir que estou a colocar as minhas pernas no
futuro, essa opção de paz consolida-se face a face às correntes de usura
elitista que conferem à água interior de Angola a dimensão que propicia lucro,
particularmente para os grandes interesses mineiros do cartel dos diamantes,
descurando o que diz intrínseco respeito à vida e à sua dimensão de
sustentabilidade para todo o espaço nacional.
Desse modo faço uso da liberdade
de expressão tão dificilmente alcançada e do dialético contraditório que as
ideias de vanguarda implicam quando chocam por vezes de frente com uma
mentalidade de assimilação que se tem vindo a arrastar durante tantos séculos!
4- Em Angola urge alcançar
consciência crítica dos fenómenos globais contemporâneos, por que a plataforma
da mentalidade do presente, formatada de assimilação em assimilação pelas
próprias elites, amarra-se à globalização capitalista que continua a impor a
hegemonia unipolar e pretende não deixar espaço para outras culturas e outros
povos!
Alcançar capacidades de
integração sabendo articular, é um desafio que provocará sacudir essas
mentalidades e um projecto como o da geoestratégia para um desenvolvimento
sustentável dando sequência ao movimento de libertação em África, poderá
aglutinar imensas energias que só a juventude pode, com seu altruísmo, com sua
generosidade, com a sua solidariedade, activar!
Começar por controlar todas as
principais nascentes do circuito fulcral que é a região central (das grandes
nascentes), a fim de garantir um ambiente que não seja vulnerabilizado nos
padrões de sua estabilidade, multiplicando parques naturais, reservas e acções
de estudo em todas as disciplinas que se aplicam à natureza e ao homem(em
função da antropologia cultural alargada que proponho), é tudo o que comporá a
via duma cultura de inteligência patriótica que em paz urge, em benefício das
presentes gerações e a muito longo prazo!
São imensos os desafios da paz,
mas para que haja construção da paz, para que haja justiça social, equilíbrio
humano e ambiental, para que o amor se espraie incontornável, geração após
geração, há que fazer um imenso trabalho de mobilização de recursos e de meios,
de organizações e instituições, abrangendo muito particularmente a juventude e
a atenção para com ela, a fim de fazer a ignição duma geoestratégia de
desenvolvimento sustentável capaz de conferir outra garantia è vida e à
felicidade de todo o povo angolano e dos povos da África Austral, Central, dos
Grandes Lagos e do Golfo da Guiné, numa corrente de transmissão que conduzirá
ao renascimento de todo o continente africano!
Martinho Júnior - Luanda, 4 de
Abril de 2019
Imagens: em Angola a desminagem e
o desarmamento são duas das vitórias da paz.
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