domingo, 7 de abril de 2019

Angola | UMA PAZ ÁVIDA DE FUTURO


Martinho Júnior, Luanda 

Aqueles que um dia sonharam com uma Angola independente, com uma Angola libertada, olham com aqueles olhos que, desde a saga da revolução dos escravos no Haiti, perscrutam o futuro e nos interrogam, nos interrogam por dentro de nós mesmos, quando nossa ignorância e as nossas falências os faz remexer desde as telúricas entranhas da Terra, ou desde o abismo do Atlântico, para onde foram atirados tantos e tantos escravos ignotos!...

Que vamos fazer quando esses olhos nos acompanham, seguindo resolutamente nossos passos, nossos actos e estão tão presentes por dentro dos corações ardentes que animam nossas próprias vidas?...


1- Angola em paz, desde o 4 de Abril de 2002, uma paz toda ela por se construir a partir duma ausência de tiros que ficou como uma dádiva e uma oportunidade, tão substantiva quanto os povos de África tanto carecem e merecem!

A paz em Angola, para todos os povos africanos, é já um transbordante exemplo que ninguém pode descartar, por muito inábeis e sofridos que sejam os homens, por muitos traumas que ainda haja que vencer, por muitas dores que um universo desequilibrado, assimétrico e injusto faz recair sobre aqueles que compõem a cauda dos Índices de Desenvolvimento Humano, conforme os relatórios anuais da ONU…

A paz numa ultraperiferia económica, é algo de incontornável que garante a luta que se tem obrigatoriamente de travar para finalmente se vencer o subdesenvolvimento que se arrasta dum passado milenar…

Mesmo com os termos duma terapia neoliberal que as fragilidades humanas dos angolanos não souberam, nem conseguiram evitar, a paz está aí e a presente luta contra a corrupção é um dado novo adquirido, que se espalha entre a folhagem dos fenómenos, quando esses fenómenos, tantas vezes negativos, subversivos, perniciosos, tanto têm de ser combatidos, dialeticamente combatidos a partir de sua própria raiz causal!


A paz permite mesmo assim um balanço desassombrado, reflexivo, num país pujante, num país novo que nem 50 anos perfez, num país arrancado às trevas da opressão escravocrata, colonial e do último sinal de crueldade que foi o “apartheid”, com todas as suas terríveis sequelas que integraram o choque neoliberal dos anos 90 do século XX em África!

Em Angola lembramos a saga do movimento de libertação em África, por que é a partir dessa saga que temos de percorrer os caminhos do presente e do futuro, para mim, apenas um antigo combatente partícipe, num quadro imperativo de lógica com sentido de vida, duma paz em construção e dum amor que desafia na devassa dos tempos!


2- A paz em Angola começou por ser uma ausência de tiros, mas com passos seguros já é algo mais que um exemplo para todos os povos da Terra: houve desarmamento geral e uma contínua operação de desminagem, num território que, a par do Cambodja, foi um dos mais minados territórios do planeta!

Os resultados desse caminho de desarmamento e desminagem actuam na psicologia de todo o povo angolano, em todo o território nacional, algo que também transparece quando se comemoram algumas das maiores batalhas que se travaram pela libertação de toda a África Austral, na sequência da trilha de Argel ao Cabo da Boa Esperança!

Vive-se ainda na euforia dessa reviravolta tão legítima que dá sequência incontornável ao transatlântico movimento de libertação!...

A psicologia do medo, constante e persistente, do medo fomentador de tantos traumas, dissipa-se a cada passo e confere abrangência, particularmente nas grandes cidades, onde há cada vez maior liberdade de expressão.

Aqueles estados que permitem a disseminação de armas pela sua população, deveriam aprender com Angola, que a luta pela paz, passa inexoravelmente pelo desarmamento massivo e pela desminagem extensiva, um trabalho consequente que deve estender-se por décadas, em especial num continente em que só poucos países produzem armas e a maior parte delas são importadas pelas mais ínvias rotas, por traficantes da morte, fundamentalistas da guerra, sem escrúpulos, sem ética e sem moral!

Os Estados Unidos, instrumentalizados pela hegemonia unipolar, onde o “loby” da energia e do armamento se tornou de tal modo preponderante que a sua própria sociedade vive em contraditórios que constituem uma autêntica guerra civil não declarada, de intensidade e de geometria variável, tem a oportunidade de aprender no livro aberto da paz em Angola!

Em Angola o acto de amor em paz, da dignidade em paz, expressa-se desde logo pelos resultados magnânimos do desarmamento e da desminagem, uma das primeiras grandes vitórias colectivas, abre as portas da civilização para o futuro e fecha as bárbaras portas que pouco a pouco deixam de estar húmidas de sangue e de lágrimas…

Do chão e das mãos dos homens, foram arrancadas as armas e essa vitória deve ser comemorada não só a 4 de Abril: deve ser comemorada todos os dias em que o amor recria novas gerações, que em paz estarão efectivamente aptas a construir o futuro, uma riqueza inesgotável que transborda pela humanidade que urge resgatar, definitivamente resgatar, marcando a civilização que cada vez mais faz desvanecer a barbárie!


3- A paz trouxe a oportunidade para outras batalhas num universo tão conturbado, onde 1% procuram dominar todos os demais, manipulando com todos os meios à sua disposição, meios que foram criados a partir da Revolução Industrial e há bem pucos anos, a partir das Novas Tecnologias!

As opções que a paz nos trouxe, colocam-se sempre no que deve reverter para a civilização e o que deve desvanecer em relação à barbárie: quer no que se realizar no que diz respeito ao homem, quer no que se realizar no imenso que se deve respeitar em relação à Mãe Terra…

Um dos principais desafios é vencer as assimetrias dum país dimensionado a partir dos olhos dos que há séculos chegaram por mar e injectaram a barbárie que povo algum merece!

Esse imenso desafio, que integra o pacote de outros desafios que se nos deparam na longa luta contra o subdesenvolvimento, obriga à nova opção que tenho proposto com intensidade, em prol duma lógica com sentido de vida que equacione os relacionamentos antropológicos do homem com seu espaço vital, particularmente no que à água interior diz respeito.

Essa busca de equilíbrio rompe com as culturas cujos olhos pertencem aos que chegaram por mar e abre-se para uma geoestratégia para um desenvolvimento sustentável, num quadro que pertence já à era duma cultura de inteligência patriótica, tirando especial partido da angolana rosa-dos-rios, que tem como seu fulcro o centro geodésico, o centro geográfico do quadrado que é o próprio território nacional.

Lutar contra o subdesenvolvimento numa geoestratégia para um desenvolvimento sustentável nesses termos, é algo que permite dimensionar um futuro que tudo tem a ver com a cultura da vida, a muito longo prazo, para os séculos vindouros, pelo que é uma larga avenida para se mobilizarem os jovens da presente e das futuras gerações.

Os cuidados em relação à região central das grandes nascentes e em relação aos complexos ambientes dessa região, nem em embrião estão e há que vencer os atavismos das mentalidades arquitectadas pelo passado e pelo presente de tão inquinada globalização, mas da minha parte, que costumo assumir que estou a colocar as minhas pernas no futuro, essa opção de paz consolida-se face a face às correntes de usura elitista que conferem à água interior de Angola a dimensão que propicia lucro, particularmente para os grandes interesses mineiros do cartel dos diamantes, descurando o que diz intrínseco respeito à vida e à sua dimensão de sustentabilidade para todo o espaço nacional.

Desse modo faço uso da liberdade de expressão tão dificilmente alcançada e do dialético contraditório que as ideias de vanguarda implicam quando chocam por vezes de frente com uma mentalidade de assimilação que se tem vindo a arrastar durante tantos séculos!


4- Em Angola urge alcançar consciência crítica dos fenómenos globais contemporâneos, por que a plataforma da mentalidade do presente, formatada de assimilação em assimilação pelas próprias elites, amarra-se à globalização capitalista que continua a impor a hegemonia unipolar e pretende não deixar espaço para outras culturas e outros povos!

Alcançar capacidades de integração sabendo articular, é um desafio que provocará sacudir essas mentalidades e um projecto como o da geoestratégia para um desenvolvimento sustentável dando sequência ao movimento de libertação em África, poderá aglutinar imensas energias que só a juventude pode, com seu altruísmo, com sua generosidade, com a sua solidariedade, activar!

Começar por controlar todas as principais nascentes do circuito fulcral que é a região central (das grandes nascentes), a fim de garantir um ambiente que não seja vulnerabilizado nos padrões de sua estabilidade, multiplicando parques naturais, reservas e acções de estudo em todas as disciplinas que se aplicam à natureza e ao homem(em função da antropologia cultural alargada que proponho), é tudo o que comporá a via duma cultura de inteligência patriótica que em paz urge, em benefício das presentes gerações e a muito longo prazo!

São imensos os desafios da paz, mas para que haja construção da paz, para que haja justiça social, equilíbrio humano e ambiental, para que o amor se espraie incontornável, geração após geração, há que fazer um imenso trabalho de mobilização de recursos e de meios, de organizações e instituições, abrangendo muito particularmente a juventude e a atenção para com ela, a fim de fazer a ignição duma geoestratégia de desenvolvimento sustentável capaz de conferir outra garantia è vida e à felicidade de todo o povo angolano e dos povos da África Austral, Central, dos Grandes Lagos e do Golfo da Guiné, numa corrente de transmissão que conduzirá ao renascimento de todo o continente africano!

Martinho Júnior - Luanda, 4 de Abril de 2019

Imagens: em Angola a desminagem e o desarmamento são duas das vitórias da paz.

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