sexta-feira, 10 de maio de 2019

Dos casos políticos às liberdades civis, UE deixa amplo leque de acusações a Macau


A Comissão Europeia divulgou ontem o relatório sobre Macau relativo a 2018, fazendo vários reparos à situação política e social do território. O tráfico humano e a auto-censura nos media chineses são focos de preocupação, bem como a condenação do deputado Sulu Sou e o despedimento dos assessores jurídicos Paulo Cardinal e Paulo Taipa.

A condenação do deputado Sulu Sou, o despedimento dos assessores jurídicos Paulo Cardinal e Paulo Taipa e o impedimento de entrada de convidados do Festival Literário de Macau são casos que preocupam a Comissão Europeia. No seu mais recente relatório sobre a RAEM, ontem divulgado, a instituição detecta problemas como o tráfico humano, que “permanece uma preocupação”, e a auto-censura nos meios de comunicação chineses. O Governo é encorajado a cumprir com as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no que diz respeito à lei sindical, e recebeu ainda críticas pelo pacote legislativo sobre segurança nacional. A resposta do Executivo não tardou, criticando o relatório que “ignora factos, tece comentários irresponsáveis e levianos sobre a RAEM”.

A não renovação dos contratos dos assessores jurídicos da Assembleia Legislativa (AL) Paulo Cardinal e Paulo Taipa não passou despercebida à Comissão Europeia. No seu último relatório sobre a RAEM, a instituição observa que, ainda que ambos tivessem contratos a termo, “a súbita decisão levantou preocupações na sociedade civil de um aumento de esforços para afastar experiência portuguesa e estrangeira em favor da chinesa”. No mesmo sentido, a União Europeia (UE) recorda as alterações à Lei de Bases da Organização Judiciária, que atribuíram a competência de julgar casos de segurança nacional apenas a magistrados chineses. “A definição de segurança nacional é vasta e pode, por isso, ser usada para excluir juízes estrangeiros de muitos casos”, lê-se no relatório. Em conjugação com outras políticas de reforço da segurança nacional, a Comissão Europeia entende que esta tendência “pôs a política da RAEM em linha com as opiniões do continente”.



A condenação do democrata Sulu Sou e do activista Scott Chiang, em Maio do ano passado, é também uma fonte de preocupação para a UE, que nota que, se o deputado tivesse sido condenado a 30 dias de prisão ou mais, teria perdido o mandato, “o que teria enfraquecido ainda mais uma já diminuta oposição”. No entanto, para a instituição, a decisão do tribunal “enfatiza a independência do sistema judiciário”, por oposição ao Ministério Público, cujas acusações foram criticadas por serem politicamente motivadas. Ambos os activistas foram condenados a 120 dias de multa pelo crime de reunião e manifestação ilegal, mas estavam acusados de desobediência qualificada.

O documento menciona o cancelamento da vinda dos escritores Jung Chang, Suki Kim e James Church, depois de o Festival Literário de Macau ter sido “informalmente notificado” de que a sua entrada no território não estava garantida. Para a Comissão Europeia, este incidente deve ser analisado no contexto da sequência de proibições de entrada na RAEM de jornalistas e políticos durante 2017. “Apesar de as autoridades de imigração de Macau terem o poder de recusar a entrada no território da RAEM, a falta de transparência destes casos sugere uma tendência preocupante em direcção à censura política”, refere o relatório.

No capítulo das liberdades civis, a Comissão Europeia reconhece que estas estão protegidas pela Lei Básica, mas lamenta que a oposição política seja “fraca” e a sociedade civil não seja “muito vocal”. Em ano de eleições, a EU encoraja o Governo a promover um maior envolvimento do público na escolha do Chefe do Executivo e também dos deputados à Assembleia Legislativa. No entender da instituição, “isto iria aumentar a sua legitimidade e apoio do público e fortalecer a governação”.

DISCRIMINAÇÃO CONTRA COMUNIDADE LGBT É “PARTICULARMENTE” GRAVE

Para a Comissão Europeia, “o tráfico humano permanece uma preocupação”. A instituição aponta que Macau já dispõe de uma lei contra o tráfico humano, “mas a aplicação da lei deve ser mais rigorosa”. “O número de acusações e condenações por tráfico permanece baixo apesar de um elevado número de queixas”, lê-se no documento. No que diz respeito aos direitos humanos, o cenário traçado também não é favorável, com a instituição a apontar que, apesar das recomendações emitidas pelas Nações Unidas em 2015, Macau continua sem estabelecer um organismo independente de direitos humanos.

A UE volta a insistir no problema da discriminação com base na orientação sexual e identidade de género, preocupações estas que são “particularmente graves” no emprego, educação e cuidados de saúde. O relatório observa que as relações entre pessoas do mesmo sexo continuam sem ser incluídas na Lei de prevenção e combate à violência doméstica.

A auto-censura, em particular nos meios de comunicação chineses quando o assunto é a China, permanece como uma preocupação para a UE. “Os media de Macau continuaram a expressar um vasto leque de pontos de vista, apesar de preocupações sobre o aumento da auto-censura”, lê-se no documento, que sublinha também o obstáculo à liberdade de imprensa que é a dificuldade em aceder a fontes e obter informações das autoridades.

O Governo é encorajado a cumprir com as convenções da OIT, particularmente no que diz respeito à liberdade sindical e negociação colectiva. A UE contrapõe ainda a taxa de pobreza, que o Executivo diz ser de 2,3% da população, mas que, segundo associações da sociedade civil, quase que chega aos 10%.  

No relatório, a Comissão Europeia realça os bons resultados económicos alcançados pela RAEM, grandemente impulsionados pela indústria do jogo, mas deixa um reparo: “O objectivo de diversificação da economia está longe de ser alcançado”. Dados mencionados no documento dão conta que 2017 foi um “ano decepcionante” para a diversificação económica, uma vez que apenas 6,8% das receitas dos casinos vieram de fontes não-jogo, contra os 7,4% de 2016.

GOVERNO DEFENDE-SE: “POPULAÇÃO DE MACAU GOZA DE AMPLOS DIREITOS E LIBERDADES”

A resposta do Executivo chegou ontem ao final da tarde sob a forma de um comunicado do gabinete do porta-voz do Governo. Para as autoridades, o relatório “ignora factos e tece comentários irresponsáveis e levianos sobre a RAEM”. “O Governo manifesta a sua forte oposição e que não deve haver ingerência da União Europeia nos assuntos da Região Administrativa Especial de Macau e que se abstenha de falsas declarações e acções inadequadas sobre a política interna da República Popular da China”, refere a nota.

O Governo defende que o regime de região administrativa especial “funciona com eficácia” e que a RAEM “mantém-se próspera e estável, tendo registado imensos avanços em todos os campos”. “A população de Macau goza de amplos direitos e liberdades plenamente garantidos na Constituição e na Lei Básica, realidade testemunhada por todas as pessoas”, lê-se no comunicado.

Catarina Vila Nova | Ponto Final | Foto: Eduardo Martins

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