quinta-feira, 20 de junho de 2019

A crise do Brexit e o capitalismo impotente


Como a globalização sem regras dissolveu os laços sociais mesmo num dos países mais ricos do mundo. Retratos do impasse: elites divididas, esquerda sem alternativas. A aposta dos super-ricos no caos e a brecha para derrotá-los

Paul Mason | Outras Palavras | Tradução: Marianna Braghini

Uma mulher assedia skatistas brasileiros em uma rua de Londres, exigindo que parem de falar “brasileiro”. O embate, emblemático por sua estupidez, viralizou no Twitter. Os principais diretores de grandes supermercados, além do McDonalds e da KFC, alertaram sobre as interrupções no abastecimento, caso aconteça um Brexit sem acordo. Em janeiro, o governo admitiu que tem planos de contingenciamento de introduzir a lei marcial para evitar “mortes em caso de escassez de comida e medicamentos”. Em seguida, o parlamento britânico votou por algo que não pode colocar em prática: conservadores, membros do Partido Unionista do Ulster e alguns opositores à imigração da ala direita do Partido Trabalhista combinaram de exigir que a União Europeia faça mudanças no acordo que o governo britânico havia fechado em novembro passado. Os líderes da UE imediatamente enfatizaram que nenhuma renegociação de última hora é possível.

Se um poder hostil tivesse feito o roteiro do Brexit, é assim que teria escrito o ato final. Infelizmente, foi o povo britânico que o escreveu por si mesmo (1).

Como chegamos a esse auge da irrealidade? Porque a classe política do Reino Unido se fragmentou sobre diversos pontos que são fundamentais demais para serem contidos pelo sistema partidário e porque muito da cola ideológica que manteve unida a sociedade britânica por duas gerações já não gruda mais.

Para o Partido Conservador, a relação com a Europa tem sido de psicose crônica. Ele rachou o gabinete de Margaret Thatcher nos anos 1980, desestabilizou o governo de John Major em 1990, manteve o partido fora do governo por 13 anos, ruiu o posto de David Cameron quando primeiro-ministro e agora destruiu a credibilidade de quase todos os políticos associados à administração de May [a primeira-ministra britânica renunciou ao cargo em 24 de maio, deixando-o efetivamente em 7 de junho. O Partido Conservador ainda não elegeu um substituto].


As fontes do euroceticismo mudaram ao longo do tempo. No início de 1970, ainda havia uma nostalgia dos dias de império. Na época do discurso de Margaret Thatcher em Bruges, em setembro de 1982 (2), tornou-se um projeto para restringir o impulso franco-germânico rumo a uma união política, enquanto mantinha a então CEE (Comunidade Econômica Europeia) como um mercado liberalizado no qual a classe de empresários britânicos poderia conduzir uma “corrida descendente” dos salários baixos.

Trinta anos depois, a própria classe de empresários mudou de forma. A globalização da manufatura, com a financeirização do mundo, produziu elites empresariais distintas na Grã-Bretanha: uma classe administrativa supervisionando plantas locais de empresas cotadas no mercado da bolsa de valores, tais como a Nissan, Honda, Airbus e a BAE Systems; e uma classe de gestores de dinheiro, advogados comerciais e desenvolvedores de propriedade que representam os interesses das finanças globais e (informalmente) do poder oligárquico corrupto.

Durante a crise do neoliberalismo, o segundo grupo era quem tomava as decisões, não somente dentro do Partido Conservador, mas através e por meio de toda a mídia. Essa relação teve como símbolo o salário anual de £250 mil (R$1,2 milhões) que eram pagos pelos donos do Telegraph, jornal anti-UE, a Boris Johnson, antes de ele se tornar secretário de assuntos estrangeiros de May, para escrever uma coluna por semana. Depois de 2008, os homens do dinheiro começaram a conceber o futuro da Grã-Bretanha para ser, principalmente, fornecedora de negócios, tecnologia e serviços financeiros para mercados emergentes, como a China e Índia, e como a administradora financeira do mundo. O projeto de união com a Europa, cada vez mais próxima, não era necessária para este futuro.

Doutrina do “alcance global”

Contudo, o conservadorismo britânico nunca é simplesmente a soma das intenções da elite. Ele também incorpora as ideias formadas nos bares dos clubes de golfe suburbanos, nos salões de chá dos resorts praianos cheios de aposentados. Desde meados dos anos 2000, o sentimentos se tornaram hostis às regulações restritivas da Europa, impostas sobre um capitalismo de baixos salários, baixa regulação e intensamente hostil à imigração.

Apenas um mito subjacente poderia unir os golfistas, motoristas de van das cidades pequenas e os caras do hedge fund residentes de Dubai: o mito do império. Depois que os Conservadores tomaram o poder em 2010, o lugar para se estudar a evolução deste mito foi a política de defesa.

De súbito, e quase sem votação, os Conservadores introduziram a doutrina do “alcance global” no mesmo ano: além de todos seus comprometimentos com a OTAN, a Grã-Bretanha construiria uma “divisão de guerra otimizada para operações de combate de alta intensidade” (4). Os estrategistas militares ficaram obstinados com a ideia de que, sendo a Grã-Bretanha um país importante, seu setor de defesa deveria começar com uma presença naval no Estreito de Singapura.

Como a austeridade empobreceu as Forças Armadas, comentaristas presumiram que o alcance global era um conceito político. Seu real significado foi revelado assim que o programa político da direita Conservadora emergiu no referendo do Brexit, com o European Research Group(ERG) liderado por Jacob Rees-Mogg.

Uma fração da elite orientada para as finanças globais — incluindo a administração do dinheiro de oligarcas por meio de uma rede de instituições offshore — pretende, metaforicamente, abandonar a real economia britânica, juntamente com seus laços na Europa, e apagar a memória muscular institucional gerada por meio de décadas de operação enquanto membro da UE. Ela quer que as Forças Armadas britânicas policiem o mundo, mas não de forma a impor termos comerciais favoráveis em países pobres, como no século XIX. Em sua visão, a Grã-Bretanha se tornaria o fiador da globalização no abstrato e, também, sua corporificação.

Uma forma da fantasia é o “CANZUK” – uma recuperação de um império colonial branco e cristão, que incluia as antigas colônias britânicas do Canadá, Nova Zelândia e Austrália. De uma outra forma, a Grã-Bretanha se torna uma versão ampliada de Singapura. Para uma facção apoiadora de Trump na direita, a Grã-Bretanha seria uma gloriosa pista de pouso para os EUA em um jogo amplo de rivalidade de grandes poderes. Nada disso faz sentido, mas tudo pode ser empurrado para a população, via imprensa de direita, como uma nova ideologia imperialista.

Como resultado, fantasias neoimperialistas encheram a imaginação de eleitores de mente conservadora. Em uma consulta realizada em janeiro, 31% das pessoas se disseram favoráveis a um Brexit sem acordo, caso o proposto por May fracassasse no parlamento: entre eleitores conservadores essa taxa subia para 57%. Apenas cerca de 17 dos 317 membros do parlamento conservadores estavam prontos para votar por uma moção atrasando o Artigo 50, para evitar uma saída catastrófica.

Se já houvesse um partido liberal de centro sério, capaz de limitar o dano, aqueles envolvidos em negócios baseados na Grã-Bretanha seriam atraídos em massa. Como não há, a única alternativa é Jeremy Corbyn, do Partido Trabalhista.

O dilema Trabalhista

A oposição à associação com a UE tem uma longa história no Partido Trabalhista. A estratégia econômica alternativa da esquerda Trabalhista, nos anos 1980, envolvia controle de capitais, tarifas e abandono da CEE. Mas isso não é o ponto principal do que está por trás da oposição morna de Corbyn ao Brexit. Na verdade, é a autoridade moral do voto pelo Brexit das classes trabalhadoras a área que os Trabalhistas precisam ganhar para aumentar seu poder. Os defensores do Partido Trabalhista, incluindo eu, tentaram usar argumentos internacionalistas logo de entrada, durante a campanha de 2016, e o percebemos inefetivos. O que persuadiu grandes números de apoiadores do Brexit a votar no Trabalhista nas eleições gerais de 2017 foi a garantia que Corbyn iria honrar o resultado do referendo.

Esta estratégia de satisfazer eleitores em prol da saída da UE, e tentar seguir em frente, se deparou com um grande problema em novembro de 2018, quando ficou claro que não havia forma possível de um Brexit que fosse aceitável por todos os seus apoiadores. Se os conservadores não conseguissem fazer o Brexit acontecer, qualquer acordo que passasse pelo parlamento teria que depender de votos de rebeldes membros do parlamento do Partido Trabalhista.

Subitamente, parte dos parlamentares do partido Trabalhista se puseram em total oposição aos desejos de sua associação e eleitorado; isso abriu uma crise de direção para o próprio Corbyn. Nunca se tratou de uma ideologia única, mas uma aliança entre a antiga esquerda estatista e a geração mais nova, orientada por movimentos de justiça social.

Uma análise de opinião pública, encomendada por sindicatos comerciais do grupo de advogados Hope not Hate (“Esperança, não ódio”, em tradução livre), mostrou que, de maneira geral, o eleitorado se inclinou contra o Brexit, com 55% das pessoas agora dizendo que querem permanecer na UE. A análise alega que se o Trabalhista fosse concorrer em uma eleição precipitada, prometendo adotar o Brexit, ele perderia assentos, não ganharia, sendo que ele precisa de pelo menos 31 novas cadeiras, mesmo para formar um governo minoritário.

De acordo com esta pesquisa, ele perderia cinco dos sete assentos na Escócia, onde a classe trabalhadora é fortemente pró-UE, e até 14 assentos em Londres e no sudeste, onde eleitores trabalhistas que tiveram educação formal, jovens e com uma visão mais global poderiam rechaçar Corbyn e ir para os LibDems ou os Verdes. Por outro lado, mesmo que Trabalhistas apoiassem o Brexit, não ganhariam assentos nas áreas apoiadoras do Brexit, nas quais as políticas de nacionalismo e xenofobia inglesas estão superando preocupações tradicionais com empregos, salários e serviços públicos.

O problema para os Trabalhistas é que na Inglaterra e no País de Gales, o Brexit tinha sido (para pegar emprestado um termo econômico) “precificado” na política. Se supunha que a primeira-ministra Theresa May entregaria o Brexit, o Partido Trabalhista votaria contra a sua proposta e a política bipartidária, como de costume, seria retomada. Quando isso começou a parecer impossível, Corbyn enfrentou exigências competitivas.

Entre os membros do Partido Trabalhista, de acordo com essa mesma pesquisa, 87% são favoráveis à permanência na UE, ao passo que 65% daqueles que votaram em Trabalhistas na última eleição querem permanecer. Em setembro de 2018, os membros comprometeram o partido opondo-se ao acordo Brexit de May, lutando, em vez disso, para uma união aduaneira e pelo alinhamento com o mercado único, provocando uma eleição geral e, se isso falhasse, apoiando um segundo referendo. Mas, no final de dezembro, em face da posição oficial do partido e apesar da evidência das consultas, tanto os parlamentares trabalhistas de esquerda quanto os do centro começaram a se rebelar contra essa estratégia.

Membros individuais da equipe parlamentar de Corbyn, incluindo a porta-voz da educação Angela Rayner e o presidente do partido, Ian Lavery, expressaram preocupações acerca de um segundo referendo, alegando que isso poderia ser visto como uma traição ao primeiro. Esse fato encorajou aqueles à direita tradicionalista do partido a ponderar uma votação por uma versão do acordo de May.

À medida em que a crise se intensificou, em dezembro do ano passado, as divisões sobre a questão do segundo referendo se tornaram tão fortes dentro do círculo interno de Corbyn, que os ministros-sombra de ambos os lados da disputa ameaçaram renunciar. Corbyn deveria estar surfando alto na desordem de Theresa May, mas sua popularidade despencou. Pouco antes do Natal, sua taxa de aprovação caiu para uma baixa histórica de 19% (4).

Isso explica por que sete deputados trabalhistas votaram com os conservadores de May, em janeiro, iludidos com uma estratégia de renegociação, e quatorze deles se rebelaram contra a linha partidária, ao adiar o artigo 50, ajudando a cancelar os votos de dezessete rebeldes pró-UE no lado Conservador.

Brexit agora como único assunto

Para entender para onde vai agora a Grã-Bretanha, é preciso compreender quão visceral é a paixão plebeia que foi instigada pelo fracasso do parlamento — nos bares, nos portões das escolas e nos programas de rádio, cada vez mais impulsivos.

Apenas em novembro de 2018 o Brexit se tornou a questão-chave para o eleitorado. A percepção de que o acordo de May estava condenado empurrou a questão, de 30% que designava esse o principal problema, para 65%, em curva ascendente (5). Na semana em que May perdeu a votação de seu acordo original no parlamento (15 de janeiro), esse número subiu para 86%: os britânicos só falavam sobre o Brexit (6). Nesse momento, o público tomou conhecimento de que, após anos de discussão, o Brexit estava finalmente prestes a acontecer, e o governo poderia se dividir de forma irremediável enquanto ainda no cargo; um clima antipolítico, que não favorecia nenhum dos partidos, parecia estar crescendo.

Em uma comunidade de classe trabalhadora, se o Brexit é uma questão menor, a extrema direita tem muito pouca vantagem para definir a agenda. Se 86% consideram a questão prioritária e acreditam que os políticos dominantes erraram, há uma grande abertura para a direita. O medo provocado por esse fato tem sido um dos principais condutores de compromisso com o Brexit entre deputados trabalhistas da direita e da esquerda.

Embora a esquerda esteja ativa e visível nas comunidades da classe trabalhadora onde o sentimento pró-Brexit é alto, ela não tem apetite nem recursos para uma luta face a face com um movimento de extrema-direita. Como um ativista da região inglesa de Midlands me disse, “as pessoas entram no Partido Trabalhista para impedir o fechamento de sua maternidade local, para não serem perseguidas pelas ruas por fascistas usando chapéus da MAGA, alegando que são traidores”.

É desta forma que o medo implícito de uma rebelião de extrema-direita começou sutilmente a moldar as ações de ambos os principais partidos, e está sendo tratada por alguns à direita como ameaça, embora ainda não seja uma realidade e, com sorte, pode não acontecer.

A esquerda numa encruzilhada

[…]
Por trás de todas as hashtags, a raiva e as manobras parlamentares está a crise existencial de uma classe dominante. A Grã-Bretanha é governada por uma elite de super-ricos com pouco interesse material em operações no Reino Unido. Se necessário, farão aliança com pessoas de comunidades pobres, brancas e pouco qualificadas para romper a ordem multilateral.

Essa “aliança entre elite e ralé”, que Hannah Arendt reconheceu como base material do fascismo (7), não precisa necessariamente se tornar fascista. Basta derrotar e desmoralizar as forças do globalismo e do liberalismo social, impondo uma década de incerteza. O que essa aliança quer é melhor descrito como um “thatcherismo em um só país”, uma forma de neoliberalismo nacionalista. Se bem-sucedida, na próxima década, haverá um amargo rompimento do Reino Unido, no qual a Escócia buscaria um segundo referendo de independência, enquanto ressurgentes nacionalistas ingleses lutam em guerras retóricas com a UE, a partir das quais adotará suas regras.

A esquerda está em uma encruzilhada. O corbynismo sempre foi uma aliança de dois principais grupos sociais: a juventude urbana, escolarizada, conectada, e os sobreviventes das lutas de classes dos anos 1980. Como um desses sobreviventes, sei que incluem muitos dos que lutaram para fazer o partido se comprometer com um segundo referendo, e com a permanência. Mas sua ligação orgânica com as comunidades escravizadas pelo nacionalismo inglês os cegou para o perigo que o projeto Corbyn enfrenta. O perigo, esclarecido pela pesquisa da Hope Not Hate, é que um novo partido de centro surja, comprometido com a volta à UE, e que uma parte dos eleitores trabalhistas siga-o. E que Corbyn parecerá “apenas outro político” que triangulou entre seus próprios princípios e os preconceitos dos eleitores.

A tragédia é que os Trabalhistas começaram com uma estratégia clara, endossada de forma unânime por seus membros, por meio de uma votação em conferência. Mas no crucial dia de 29 de janeiro, o grupo parlamentar do Partido Trabalhista incluía — não pela primeira vez na história — muito poucos com a coragem de defender o que os membros desejavam.

E ainda é possível que o impasse parlamentar produza um segundo referendo; 60% dos eleitores dizem que, nesse caso, seriam a favor; e 55% dizem que votariam pela permanência. Esse resultado destruiria o projeto dos neothatcheristas para sempre, e é por isso que eles estão arriscando o colapso econômico para evitá-lo. São estas as apostas.

Notas:
(1) Ver Paul Mason, ‘UK: lost, divided, and alone’ and ‘Bad news from Newport’, Le Monde diplomatique, English edition, Julho de 2016 e Outubro de 2018.
(2) Ver How Thatcher’s Bruges speech put Britain on the road to Brexit’, Financial Times, 31 de Agosto de 2018.
(3) ‘A Secure and Prosperous United Kingdom’, National Security Strategy and Strategic Defence and Security Review 2015, Londres, Novembro de 2015.
(4) Wikipedia Leadership Approval Opinion Polling, atualiada em 27 de Janeiro de 2019.
(5) Ver Paul Mason, ‘A Country in a critical situation’, New Statesman, Londres, 21 de Novembro de 2018.
(6) Populus poll, Janeiro 2019.
(7) Ver Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, Schocken Books, 1951.
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