Tinha curiosidade no discurso de
João Miguel Tavares, presidente das comemorações do 10 de Junho de 2019. Tinha
vontade, mais do que esperança, de ser surpreendido. Em várias ocasiões da
minha já longa vida vi pessoas vulgares superarem-se quando colocadas em
situações difíceis. Serem mais do que eles.
Carlos de Matos
Gomes * | Jornal Tornado | opinião
Na minha geração e como símbolo
do que quero expor, o Fernando
Salgueiro Maia, que se transformou diante dos nossos olhos no Terreiro do
Paço e no Largo Carmo no “homem do leme” do poema de um génio, Fernando Pessoa,
que enfrentou o Mostrengo. O 10 de Junho tem como patrono um génio que escreveu
uma epopeia dos portugueses.
O discurso de João Miguel Tavares
correspondeu ao que esperava dele, em vez de génio e grandeza, ele exaltou o
português da mini do snack bar da cidade, aquele português
que sucedeu sem percalços ao português de Salazar do copo de três na tasca da
aldeia. O mesmo português do respeitinho, servil, de chapéu na mão, um tanto
alarve.
O Portugal e o portugueses do
discurso de JMT foram os glosados por Alexandre O’Nill no poema «Portugal», os
da:
“desancada varina,
(d)o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
(d)a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato! “
João Miguel Tavares proferiu uma
arenga retirada da letra do fado Uma Casa Portuguesa:
“Numa casa portuguesa fica bem
pão e vinho sobre a mesa. A alegria da pobreza está nesta grande riqueza
de dar, e ficar contente. Quatro paredes caiadas, um cheirinho a alecrim, um
cacho de uvas doiradas, duas rosas num jardim, um São José de azulejo…”
A Amália Rodrigues tinha muito
melhor voz do que João Miguel Tavares na saga familiar, respeitável é claro,
que entoou com voz fúnebre na descrição feita na sua terra natal do seu
percurso. A do jovem filho de funcionários numa cidade do interior que chega
onde ele chegou. Só deve existir vergonha na pobreza de espírito, digo eu. Que
foi a que ele exibiu, para contrapor ao Camões.
Acontece que a arenga de JMT
explorou os sentimentos mais baixos das turbas: a resignação, o servilismo
hipócrita e a recusa de cada português assumir as suas responsabilidades.
Populismo do mais reles. A demagogia do discurso assentou em dois pilares
clássicos, já utilizados por Salazar na definição da sua família na capa do
livro da 3ª Classe da Escola Primária: os portugueses querem uma vidazinha, uma
casinha, os filhos educados, pão e vinho sobre a mesa, um emprego no
Estado, uma semana no Algarve, referiu o tribuno, numa concessão pós-moderna.
Mais, os portugueses devem abster-se de assumir responsabilidades políticas – a
política é uma porca e os políticos uns malandros da pior espécie, disse ele
por outras palavras. Só não esclareceu que somos nós, os portugueses, a
escolhê-los e a elegê-los, porque isso nos responsabiliza e o discurso da JMT é
o da irresponsabilidade. Se os portugueses soubessem o que custa mandar
preferiam obedecer, já Salazar sentenciou.
João Miguel Tavares lembrou que é
o primeiro presidente das comemorações do 10 de Junho nascido na liberdade do
pós-25 de Abril. Referiu que frequentou a escola primária pública, o liceu
público e a universidade pública. Pelo seu discurso se conclui que o ensino, de
qualquer natureza, não altera a natureza. Não fornece nem carácter, nem
coragem. O ensino não dá grandeza a quem a não tem.
No Portugal de Salazar o vinho
dava de comer a um milhão de Portugueses. No Portugal apresentado por João
Miguel Tavares, são as mini que alimentam os seus portugueses e umas
maledicências com tremoços.
Quer isto dizer que alguns temas
da letra do fado que João Miguel Tavares proferiu em Portalegre, da corrupção à
irresponsabilidade, não são candentes e não devem ser enfrentadas e punidas?
Não, em absoluto. Quer apenas dizer que neste dia, ainda mais do que nos
outros, devemos apelar ao que melhor temos, aos nossos melhores, que devemos
ser individualmente mais exigentes em vez de nos lamuriarmos e de clamarmos por
salvadores que nos conduzam como um rebanho. Nem uma palavra sobre o que julgo
ser grande problema da democracia portuguesa: o sistema judicial em roda livre
e coberto de privilégios.
O discurso deste 10 de Junho foi
um discurso salazarista, com meio século de atraso, que podia ter sido
proferido por um antigo graduado da Mocidade Portuguesa. Felizmente Portugal
tem muito melhor que este JMT. Infelizmente são estes demagogos sem história
que sobem às tribunas da opinião pública. Não é por acaso… e é perigoso…
* Militar, investigador de
história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz
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