Sete medidas certeiras que o
Brasil poderia adotar para defender a Amazônia, se o governo não fizesse apenas
teatro. E uma questão intrincada: como enfrentar, além de um presidente
primitivo, o projeto que se esconde por trás dele?
Antonio Martins | Outras Palavras | Imagem: Cristopher
R. W. Nevinson, Returning to the Trenches (1914)
Mais uma vez, os militares teriam
contido o delírio do governo Bolsonaro. Na quinta-feira, especula hoje
o Valor, em texto bem apurado e verossímil, os ministros Fernando
Azevedo e Silva, da Defesa, e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança
Institucional, interromperam o surto que levava o Palácio do Planalto a negar o
forte aumento das queimadas na Amazônia. Uma reunião ministerial de
emergência definiu que era preciso mudar o discurso, para salvar as
aparências. Vinte e quatro horas depois, o ex-capitão reconhecia, em rede
nacional de TV, que o problema é real. Contudo, anunciava resposta controversa:
em vez de medidas estruturais em defesa da floresta, nova ampliação dos atributos
das Forças Armadas, em operação aparatosa
de “garantia da lei e da ordem” (GLO).
Apesar de precária ao extremo, a
fala teve algum efeito midiático, por dois motivos. Os meios de comunicação
tradicionais comportam-se, diante de Bolsonaro, como o grande poder econômico.
Embora incomodem-se com o comportamento protofascista do presidente e possam,
em certas circunstâncias, alfinetá-lo, não estão dispostos a corroer seu poder:
veem nele o único personagem hoje capaz de realizar seu programa de
contrarreformas. Segundo, e igualmente importante: o Estado e a sociedade
brasileira têm, a seu dispor, um leque de políticas plenamente capaz de frear
os incêndios, reduzir a devastação da Amazônia de modo drástico e alcançar, em
algum tempo, o desmatamento zero. Contudo, elas contrariam não apenas a
truculência e as patetadas do presidente mas, também, o desmanche dos
serviços públicos, propugnado pelo projeto neoliberal hoje hegemônico. Por
isso, quase não há debate sobre tais políticas na velha mídia. Resgatá-las é um
primeiro passo para enxergar que há – também em relação à Amazônia e ao
Ambiente – outro país possível. Eis algumas delas:
1. Recompor o Orçamento do
Ministério do Meio Ambiente
A devastação da Amazônia não é
nem inevitável, nem constante. Ela avança ou reflui em função das políticas de
proteção à floresta. Entre 2004 e 2012, lembra o economista Ricardo Abramovay,
o esforço brasileiro de combate às queimadas foi considerado, pelo Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC-ONU) como a contribuição
mais relevante, em todo o planeta, à luta contra o aquecimento global.
Foi o resultado de um leque de
aprendizados e esforços, alguns dos quais estão descritos nos itens a seguir.
Custou relativamente pouco. Em 2013, depois de crescer por quatro anos
seguidos, o orçamento do ministério do Meio Ambiente (MMA) chegou ao máximo: R$
5,05 bilhões – 30% menos do que lucrou,
só no primeiro trimestre de 2019, o maior banco privado nacional.
Em seguida, porém, começa o
desmonte. O MMA perde recursos no final do governo Dilma, permanece
enfraquecido sob Temer e chega ao fundo do poço com Bolsonaro. A partir de
recursos já minguados, o ministério da Economia aplica, em maio, um novo
corte de R$ 187 milhões. A redução afeta todos os programas de defesa
ambiental – e repercute especialmente no Ibama. A saída é simples e viável.
Recompor os níveis de 2013 custaria o equivalente a apenas três dias de
pagamento da dívida pública. Mas um dos objetivos centrais do pensamento
neoliberal é preciso limitar ao máximo o gasto social do Estado. A Amazônia é
vítima desta concepção – tanto quanto da estupidez do presidente.
2. Reverter o desmonte do Ibama
A redução à metade do orçamento
atingiu fortemente todos os programas do MMA. Segundo dados do Sistema
Integrado de Orçamento e Planejamento (SIOP), obtidos pelo PSOL, a Fiscalização
Ambiental e Combate a Incêndios Florestais perdeu 38% dos recursos e a
implementação da Política Nacional sobre Mudança de Clima, 95%.
Mas o dano não foi apenas
financeiro. Aos cem dias do governo, um estudo do Greenpeace detalhou dezenas
de medidas que, tomadas por atos rotineiros – simples “canetadas” do
presidente, sem consulta alguma à sociedade ou ao Congresso – afetavam a
proteção ao ambiente. São medidas provisórias, decretos, simples portarias.
Extinguem órgãos fiscalizadores. Facilitam questionar e anular multas.
Favorecem responsáveis por crimes socioambientais (a Vale, por exemplo).
Desmontam ou descaracterizam conselhos. Relaxam medidas de controle (sobre os
agrotóxicos, por exemplo). Desestruturam, em especial, os dois órgãos cruciais
para aplicação das medidas protetivas à natureza: O Instituto Chico Mendes
(ICMBio) e o Ibama.
Uma matéria de Ana Carolina
Amaral, na Folha de S.Paulo detalha,
em particular, os ataques a estes órgãos. De seus 27 superintendentes, 21 foram
exonerados pelo ministro Ricardo Salles em fevereiro. Em abril, depois de
ameaçar dirigentes do ICMBio, ele trocou toda sua direção por militares. Em
maio, determinou que o Ibama anunciasse antecipadamente os locais onde fará
suas fiscalizações, reduzindo-as a pantomimas.
Reverter qualquer uma destas
dezenas de decisões teria efeitos muito mais concretos que a decretar a GLO. No
momento estes atos simples estão bloqueados pela precariedade do debate
nacional sobre o tema.
3. Criar condições para a volta
do Fundo Amazônia
A retirada da Noruega e da
Alemanha do Fundo Amazônia, há algumas semanas, foi tratada por Bolsonaro como
uma desfeita. O presidente tentou, além disso, fazer crer que o fundo era uma
tentativa de intervenção externa em assuntos brasileiros – e que havia algo
positivo em seu esvaziamento. Esta narrativa agride os fatos.
O Fundo Amazônia foi uma criação
do Brasil, anunciada em 2007, numa reunião em Bali (Indonésia) preparatória
para a Conferência de Paris sobre o Clima. Num momento em que o país tinha
protagonismo nas negociações climáticas internacionais, e em que seu esforço
para reduzir as queimadas na Amazônia era reconhecido, funcionou como um apoio
financeiro complementar aos investimentos de preservação já feitos pelo país.
Já assegurou recursos de US$ 3,4 bilhões, direcionados a 103 projetos de
monitoramento, prevenção e combate ao desmatamento e administrados por órgãos
federais, governos estaduais, universidades e sociedade civil.
Noruega e Alemanha retiraram-se
do Fundo devido a seu completo desvirtuamento. Em maio, o ministro Ricardo
Salles afirmou que uma das destinações dos recursos seria “compensar”
financeiramente proprietários rurais que tivessem invadido áreas de preservação
– e que cobrassem “indenizações”. À mesma época, o próprio Sales anunciou que
interviria no Cofa – o Comitê Orientador no fundo. Hoje tripartite – governo
federal, Estados e sociedade civil – o órgão seria inflado por indicações do
governo Bolsonaro. Diante de sua total descaracterização, Noruega e Alemanha
descomprometeram-se.
O Fundo Amazônia é uma pequena
mostra do que deveriam ser os mecanismos globais de transferência de riqueza,
para resolver questões que transcendem as esferas nacionais. Problemas
contemporâneos como as pandemias, as crises financeiras e em especial as
mudanças climáticas não podem ser resolvidos no âmbito de cada país. Num mundo
desigual, é justo que haja redistribuição de riquezas para enfrentar tais
desafios. Os recursos do Fundo são relativamente reduzidos, diante do próprio
orçamento brasileiro. Mas podem ser cruciais, enquanto há, na sociedade,
correlação de força para uma vasta reforma tributária que multiplique a ação do
MMA. Ou mesmo para revogar a Emenda Constitucional 95, que congelou por vinte
anos o gasto social.
4. Volta das multas e outras
sanções aos desmatadores
Uma contradição flagrante marca a
repressão ao desmatamento, em 2019. Houve aumento
de 82% nas queimadas. Porém, a quantidade de multas aplicadas pelo Ibama é
a mais
baixa, desde 1995. Além disso, surgiram sinais de que, estimulados pela
certeza de cobertura governamental, fazendeiros agiram em quadrilha para
executar atividades criminosas, como o chamado “dia
do fogo”.
A redução das sanções, que cria
sensação de impunidade e estimula as queimadas, não é casual. Desde o início do
governo, tanto o presidente da República quanto Ricardo Salles fizeram, em
seguidas declarações, alusão a uma suposta “indústria de multas”, que
precisaria ser freada. Pior: o presidente ordenou que
deixassem de ser cumpridas disposições como o artigo 111, do decreto 6514, de
2008, que prevê a destruição de todas as máquinas e equipamentos usados em
atividades ilegais contra o meio ambiente. E, em ato simbólico de enorme
significado, o Ibama exonerou o
servidor que multou, em 2002, o então deputado Jair Bolsonaro, por pesca
proibida.
Multar os devastadores é
instrumentos essencial para preservar a floresta. Avanços tecnológicos recentes
permitem tonar ainda mais eficaz esta política. Graças ao Cadastro Ambiental
Rural, criado em 2012, e a um monitoramento por satélites muito mais detalhado,
já é possível identificar as propriedades rurais em que se fazem as queimadas e
multá-las “da mesma forma que os radares multam motoristas infratores”, afirma o
engenheiro florestal Tasso Azevedo, criador do projeto MapBiomas.
Que crédito merece um presidente
que fala em “mobilizar as Forças Armadas” depois de desmoralizar este
dispositivo preventivo poderosíssimo?
5. Restaurar a autoridade do INPE
sobre o monitoramento de queimadas
Uma série de três reportagens do
jornalista Raimundo Pereira expõe, em detalhes (1 2 3),
o bizarro ataque do governo Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE) e ao Sistema Deter, que monitora há anos as queimadas na
Amazônia. O fato mais notório é a demissão do cientista Ricardo Galvão, que
presidia o instituto até julho.
O que incomodou o presidente foi
a revelação de que, a partir de junho, os incêndios na floresta haviam assumido
proporção inédita, devido à série de fatos reportada acima. Bolsonaro pediu que
as informações sobre desmatamento (que são públicas) fossem levadas a sua
consideração, antes de divulgadas. Depois, quando ficou claro o ridículo da
proposta, questionou a precisão do monitoramento do INPE, exonerou Galvão e
tomou as primeiras providências para que o órgão público seja substituído por
uma empresa privada. Em matéria em O Eco, a jornalista Cristiana
Prizibisczki demonstra que
o edital para contratá-la é dirigido para levar à escolha da empresa
norte-americana Planet.
Em entrevista à jornalista Petria
Chaves, neste domingo, o economista Ricardo Abramovay explica:
a eventual mudança desperdiçaria um esforço brasileiro singular. Ao longo do
tempo, o INPE desenvolveu técnicas para converter os dados brutos e
incompreensíveis oferecidos pelos satélites em informações cada vez mais
precisas sobre as queimadas, seu volume, sua localização precisa. Como visto no
item acima, este conhecimento é uma ferramenta poderosa para dissuadir os
incêndios, ameaçando de punição quem os pratica.
6. Revogar a MP da Liberdade
Econômica
Conhecida como “Medida Provisória
da Liberdade Econômica”, a MP 881/2009 foi vista pela mídia como
“modernizadora” e “desburocratizante”. Seu sentido é outro. Em seus princípios,
ela tenta restringir a regulação da Economia pelo Estado e sociedade. Em suas
medidas concretas, elimina uma série de direitos sociais e ambientais. O fim do
descanso dos trabalhadores aos domingos, que o Senado evitou ao final, é apenas
um deles.
No capítulo ambiental, a MP prevê
(artigo 3º), a dispensa de qualquer tipo de licença ambiental para “atividades
econômicas de baixo risco” – deixando para o Executivo a tarefa de definir o
que são. Também estabelece que certas autorizações ambientais sejam concedidas
por decurso de prazo — ou seja, se o órgão responsável não cumprir o prazo
estipulado a licença será concedida automaticamente. Num cenário de desmonte
dos serviços públicos, é fácil prever as consequências. “Aos governos que não
interessar uma boa gestão ambiental, bastará sucatear os órgãos para acelerar
as autorizações”, lembra Adriana
Ramos, especialista em políticas públicas do Instituto Socioambiental (ISA).
A MP 881, que tramitou sem nenhum
debate público, é um novo favor às grandes corporações e um ataque direto aos
direitos sociais e ambientais. Uma nova política em favor da Amazônia e das
maiorias incluirá sua revogação.
7. Defender os recursos
necessários para a dignidade das Forças Armadas
Suprema ironia: o governo que
pensa ser possível controlar os incêndios na Amazônia com emprego das Forças
Armadas é o mesmo que está dizimando a capacidade de mobilização do Exército,
Marinha e Aeronáutica. A notícia foi
dada em 17 de agosto, quando a política de “ajuste fiscal” imposta pelo
ministro Paulo Guedes derrubou a previsão do PIB e deflagrou mais cortes no
Orçamento. Estima-se agora que 25 mil, dos 80 mil recrutas hoje mobilizados em
todo o país, voltarão para casa em outubro; que haverá expediente reduzido para
os que permanecerem; e que estes poderão ser dispensados à hora do almoço, já
que não haverá recursos sequer para pagar suas refeições.
A defesa da Amazônia exige
medidas preventivas, que foram negligenciadas sistematicamente pelo governo
Bolsonaro e cuja responsabilidade não é das Forças Armadas. Secundariamente,
porém – e como paliativo, para combater incêndios já deflagrados –, seu esforço
é relevante e muito bem-vindo. Afastar os militares da Segurança Pública, para
a qual não estão preparados; identificar ações estratégicas que podem
desempenhar em tempos de paz (da proteção às áreas indígenas e aos biomas
brasileiros à construção de obras de infraestrutura) é decisivo tanto para
preservar a democracia quanto para pensar um novo projeto de país.
Por isso vale defender, com
ênfase, os recursos necessários para a ação das Forças Armadas; e livrá-las da
humilhação a que são submetidas pelos cortes decretados por Paulo Guedes e
sancionados por seu chefe.
Por isso, qualquer política
futura voltada a preservar a Amazônia precisa incluir uma medida simples: a
restauração da autoridade do INPE sobre as queimadas; a preservação de suas
conquistas tecnológicas e, como gesto simbólico de grande relevância, a
recondução de Ricardo Galvão a seu posto.
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