terça-feira, 27 de agosto de 2019

Brasil | “Não são as Forças Armadas, estúpido”


Sete medidas certeiras que o Brasil poderia adotar para defender a Amazônia, se o governo não fizesse apenas teatro. E uma questão intrincada: como enfrentar, além de um presidente primitivo, o projeto que se esconde por trás dele?

Antonio Martins | Outras Palavras | Imagem: Cristopher R. W. Nevinson,  Returning to the Trenches (1914)

Mais uma vez, os militares teriam contido o delírio do governo Bolsonaro. Na quinta-feira, especula hoje o Valor, em texto bem apurado e verossímil, os ministros Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, interromperam o surto que levava o Palácio do Planalto a negar o forte aumento das queimadas na Amazônia. Uma reunião ministerial de emergência definiu que era preciso mudar o discurso, para salvar as aparências. Vinte e quatro horas depois, o ex-capitão reconhecia, em rede nacional de TV, que o problema é real. Contudo, anunciava resposta controversa: em vez de medidas estruturais em defesa da floresta, nova ampliação dos atributos das Forças Armadas, em operação aparatosa de “garantia da lei e da ordem” (GLO).

Apesar de precária ao extremo, a fala teve algum efeito midiático, por dois motivos. Os meios de comunicação tradicionais comportam-se, diante de Bolsonaro, como o grande poder econômico. Embora incomodem-se com o comportamento protofascista do presidente e possam, em certas circunstâncias, alfinetá-lo, não estão dispostos a corroer seu poder: veem nele o único personagem hoje capaz de realizar seu programa de contrarreformas. Segundo, e igualmente importante: o Estado e a sociedade brasileira têm, a seu dispor, um leque de políticas plenamente capaz de frear os incêndios, reduzir a devastação da Amazônia de modo drástico e alcançar, em algum tempo, o desmatamento zero. Contudo, elas contrariam não apenas a truculência e as patetadas do presidente mas, também, o desmanche dos serviços públicos, propugnado pelo projeto neoliberal hoje hegemônico. Por isso, quase não há debate sobre tais políticas na velha mídia. Resgatá-las é um primeiro passo para enxergar que há – também em relação à Amazônia e ao Ambiente – outro país possível. Eis algumas delas:


1. Recompor o Orçamento do Ministério do Meio Ambiente


A devastação da Amazônia não é nem inevitável, nem constante. Ela avança ou reflui em função das políticas de proteção à floresta. Entre 2004 e 2012, lembra o economista Ricardo Abramovay, o esforço brasileiro de combate às queimadas foi considerado, pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC-ONU) como a contribuição mais relevante, em todo o planeta, à luta contra o aquecimento global.

Foi o resultado de um leque de aprendizados e esforços, alguns dos quais estão descritos nos itens a seguir. Custou relativamente pouco. Em 2013, depois de crescer por quatro anos seguidos, o orçamento do ministério do Meio Ambiente (MMA) chegou ao máximo: R$ 5,05 bilhões – 30% menos do que lucrou, só no primeiro trimestre de 2019, o maior banco privado nacional.

Em seguida, porém, começa o desmonte. O MMA perde recursos no final do governo Dilma, permanece enfraquecido sob Temer e chega ao fundo do poço com Bolsonaro. A partir de recursos já minguados, o ministério da Economia aplica, em maio, um novo corte de R$ 187 milhões. A redução afeta todos os programas de defesa ambiental – e repercute especialmente no Ibama. A saída é simples e viável. Recompor os níveis de 2013 custaria o equivalente a apenas três dias de pagamento da dívida pública. Mas um dos objetivos centrais do pensamento neoliberal é preciso limitar ao máximo o gasto social do Estado. A Amazônia é vítima desta concepção – tanto quanto da estupidez do presidente.


2. Reverter o desmonte do Ibama

A redução à metade do orçamento atingiu fortemente todos os programas do MMA. Segundo dados do Sistema Integrado de Orçamento e Planejamento (SIOP), obtidos pelo PSOL, a Fiscalização Ambiental e Combate a Incêndios Florestais perdeu 38% dos recursos e a implementação da Política Nacional sobre Mudança de Clima, 95%.

Mas o dano não foi apenas financeiro. Aos cem dias do governo, um estudo do Greenpeace detalhou dezenas de medidas que, tomadas por atos rotineiros – simples “canetadas” do presidente, sem consulta alguma à sociedade ou ao Congresso – afetavam a proteção ao ambiente. São medidas provisórias, decretos, simples portarias. Extinguem órgãos fiscalizadores. Facilitam questionar e anular multas. Favorecem responsáveis por crimes socioambientais (a Vale, por exemplo). Desmontam ou descaracterizam conselhos. Relaxam medidas de controle (sobre os agrotóxicos, por exemplo). Desestruturam, em especial, os dois órgãos cruciais para aplicação das medidas protetivas à natureza: O Instituto Chico Mendes (ICMBio) e o Ibama.

Uma matéria de Ana Carolina Amaral, na Folha de S.Paulo detalha, em particular, os ataques a estes órgãos. De seus 27 superintendentes, 21 foram exonerados pelo ministro Ricardo Salles em fevereiro. Em abril, depois de ameaçar dirigentes do ICMBio, ele trocou toda sua direção por militares. Em maio, determinou que o Ibama anunciasse antecipadamente os locais onde fará suas fiscalizações, reduzindo-as a pantomimas.

Reverter qualquer uma destas dezenas de decisões teria efeitos muito mais concretos que a decretar a GLO. No momento estes atos simples estão bloqueados pela precariedade do debate nacional sobre o tema.


3. Criar condições para a volta do Fundo Amazônia

A retirada da Noruega e da Alemanha do Fundo Amazônia, há algumas semanas, foi tratada por Bolsonaro como uma desfeita. O presidente tentou, além disso, fazer crer que o fundo era uma tentativa de intervenção externa em assuntos brasileiros – e que havia algo positivo em seu esvaziamento. Esta narrativa agride os fatos.

O Fundo Amazônia foi uma criação do Brasil, anunciada em 2007, numa reunião em Bali (Indonésia) preparatória para a Conferência de Paris sobre o Clima. Num momento em que o país tinha protagonismo nas negociações climáticas internacionais, e em que seu esforço para reduzir as queimadas na Amazônia era reconhecido, funcionou como um apoio financeiro complementar aos investimentos de preservação já feitos pelo país. Já assegurou recursos de US$ 3,4 bilhões, direcionados a 103 projetos de  monitoramento, prevenção e combate ao desmatamento e administrados por órgãos federais, governos estaduais, universidades e sociedade civil.

Noruega e Alemanha retiraram-se do Fundo devido a seu completo desvirtuamento. Em maio, o ministro Ricardo Salles afirmou que uma das destinações dos recursos seria “compensar” financeiramente proprietários rurais que tivessem invadido áreas de preservação – e que cobrassem “indenizações”. À mesma época, o próprio Sales anunciou que interviria no Cofa – o Comitê Orientador no fundo. Hoje tripartite – governo federal, Estados e sociedade civil – o órgão seria inflado por indicações do governo Bolsonaro. Diante de sua total descaracterização, Noruega e Alemanha descomprometeram-se.

O Fundo Amazônia é uma pequena mostra do que deveriam ser os mecanismos globais de transferência de riqueza, para resolver questões que transcendem as esferas nacionais. Problemas contemporâneos como as pandemias, as crises financeiras e em especial as mudanças climáticas não podem ser resolvidos no âmbito de cada país. Num mundo desigual, é justo que haja redistribuição de riquezas para enfrentar tais desafios. Os recursos do Fundo são relativamente reduzidos, diante do próprio orçamento brasileiro. Mas podem ser cruciais, enquanto há, na sociedade, correlação de força para uma vasta reforma tributária que multiplique a ação do MMA. Ou mesmo para revogar a Emenda Constitucional 95, que congelou por vinte anos o gasto social.


4. Volta das multas e outras sanções aos desmatadores

Uma contradição flagrante marca a repressão ao desmatamento, em 2019. Houve aumento de 82% nas queimadas. Porém, a quantidade de multas aplicadas pelo Ibama é a mais baixa, desde 1995. Além disso, surgiram sinais de que, estimulados pela certeza de cobertura governamental, fazendeiros agiram em quadrilha para executar atividades criminosas, como o chamado “dia do fogo”.

A redução das sanções, que cria sensação de impunidade e estimula as queimadas, não é casual. Desde o início do governo, tanto o presidente da República quanto Ricardo Salles fizeram, em seguidas declarações, alusão a uma suposta “indústria de multas”, que precisaria ser freada. Pior: o presidente ordenou que deixassem de ser cumpridas disposições como o artigo 111, do decreto 6514, de 2008, que prevê a destruição de todas as máquinas e equipamentos usados em atividades ilegais contra o meio ambiente. E, em ato simbólico de enorme significado, o Ibama exonerou o servidor que multou, em 2002, o então deputado Jair Bolsonaro, por pesca proibida.

Multar os devastadores é instrumentos essencial para preservar a floresta. Avanços tecnológicos recentes permitem tonar ainda mais eficaz esta política. Graças ao Cadastro Ambiental Rural, criado em 2012, e a um monitoramento por satélites muito mais detalhado, já é possível identificar as propriedades rurais em que se fazem as queimadas e multá-las “da mesma forma que os radares multam motoristas infratores”, afirma o engenheiro florestal Tasso Azevedo, criador do projeto MapBiomas.

Que crédito merece um presidente que fala em “mobilizar as Forças Armadas” depois de desmoralizar este dispositivo preventivo poderosíssimo?

5. Restaurar a autoridade do INPE sobre o monitoramento de queimadas

Uma série de três reportagens do jornalista Raimundo Pereira expõe, em detalhes (1 2 3), o bizarro ataque do governo Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e ao Sistema Deter, que monitora há anos as queimadas na Amazônia. O fato mais notório é a demissão do cientista Ricardo Galvão, que presidia o instituto até julho.

O que incomodou o presidente foi a revelação de que, a partir de junho, os incêndios na floresta haviam assumido proporção inédita, devido à série de fatos reportada acima. Bolsonaro pediu que as informações sobre desmatamento (que são públicas) fossem levadas a sua consideração, antes de divulgadas. Depois, quando ficou claro o ridículo da proposta, questionou a precisão do monitoramento do INPE, exonerou Galvão e tomou as primeiras providências para que o órgão público seja substituído por uma empresa privada. Em matéria em O Eco, a jornalista Cristiana Prizibisczki demonstra que o edital para contratá-la é dirigido para levar à escolha da empresa norte-americana Planet.

Em entrevista à jornalista Petria Chaves, neste domingo, o economista Ricardo Abramovay explica: a eventual mudança desperdiçaria um esforço brasileiro singular. Ao longo do tempo, o INPE desenvolveu técnicas para converter os dados brutos e incompreensíveis oferecidos pelos satélites em informações cada vez mais precisas sobre as queimadas, seu volume, sua localização precisa. Como visto no item acima, este conhecimento é uma ferramenta poderosa para dissuadir os incêndios, ameaçando de punição quem os pratica.

6. Revogar a MP da Liberdade Econômica

Conhecida como “Medida Provisória da Liberdade Econômica”, a MP 881/2009 foi vista pela mídia como “modernizadora” e “desburocratizante”. Seu sentido é outro. Em seus princípios, ela tenta restringir a regulação da Economia pelo Estado e sociedade. Em suas medidas concretas, elimina uma série de direitos sociais e ambientais. O fim do descanso dos trabalhadores aos domingos, que o Senado evitou ao final, é apenas um deles.

No capítulo ambiental, a MP prevê (artigo 3º), a dispensa de qualquer tipo de licença ambiental para “atividades econômicas de baixo risco” – deixando para o Executivo a tarefa de definir o que são. Também estabelece que certas autorizações ambientais sejam concedidas por decurso de prazo — ou seja, se o órgão responsável não cumprir o prazo estipulado a licença será concedida automaticamente. Num cenário de desmonte dos serviços públicos, é fácil prever as consequências. “Aos governos que não interessar uma boa gestão ambiental, bastará sucatear os órgãos para acelerar as autorizações”, lembra Adriana Ramos, especialista em políticas públicas do Instituto Socioambiental (ISA).

A MP 881, que tramitou sem nenhum debate público, é um novo favor às grandes corporações e um ataque direto aos direitos sociais e ambientais. Uma nova política em favor da Amazônia e das maiorias incluirá sua revogação.


7. Defender os recursos necessários para a dignidade das Forças Armadas

Suprema ironia: o governo que pensa ser possível controlar os incêndios na Amazônia com emprego das Forças Armadas é o mesmo que está dizimando a capacidade de mobilização do Exército, Marinha e Aeronáutica. A notícia foi dada em 17 de agosto, quando a política de “ajuste fiscal” imposta pelo ministro Paulo Guedes derrubou a previsão do PIB e deflagrou mais cortes no Orçamento. Estima-se agora que 25 mil, dos 80 mil recrutas hoje mobilizados em todo o país, voltarão para casa em outubro; que haverá expediente reduzido para os que permanecerem; e que estes poderão ser dispensados à hora do almoço, já que não haverá recursos sequer para pagar suas refeições.

A defesa da Amazônia exige medidas preventivas, que foram negligenciadas sistematicamente pelo governo Bolsonaro e cuja responsabilidade não é das Forças Armadas. Secundariamente, porém – e como paliativo, para combater incêndios já deflagrados –, seu esforço é relevante e muito bem-vindo. Afastar os militares da Segurança Pública, para a qual não estão preparados; identificar ações estratégicas que podem desempenhar em tempos de paz (da proteção às áreas indígenas e aos biomas brasileiros à construção de obras de infraestrutura) é decisivo tanto para preservar a democracia quanto para pensar um novo projeto de país.

Por isso vale defender, com ênfase, os recursos necessários para a ação das Forças Armadas; e livrá-las da humilhação a que são submetidas pelos cortes decretados por Paulo Guedes e sancionados por seu chefe.

Por isso, qualquer política futura voltada a preservar a Amazônia precisa incluir uma medida simples: a restauração da autoridade do INPE sobre as queimadas; a preservação de suas conquistas tecnológicas e, como gesto simbólico de grande relevância, a recondução de Ricardo Galvão a seu posto.

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