Depois de várias décadas de
cozidos requentados pós-modernos, sopas “pós-marxistas”, saladas reformistas e
sobremesas pós-coloniais à la carte, a discussão sobre o capitalismo mundial
volta ao centro da mesa.
Néstor Kohan*
Nos movimentos sociais, nas
organizações políticas e no mundo cultural. Já ninguém se conforma com os
“microrrelatos”, os “micropoderes”, a “micro-história”. Todos os pretextos e
malabarismos para não encarar as crises selvagens que atravessam o sistema
capitalista são afastados, como migalhas sujas, para fora da toalha.
O incêndio da crise de 2008 não
se apaga. O fogo estende-se. O planeta range. Cada vez se tornam mais
inadiáveis as explicações totalizantes sobre o que atravessamos.
Estaremos, por fim, numa época de
capitalismo “desterritorializado” e interdependente, sem imperialismo,
metrópoles, dependências nem periferias, onde um grupo de vendedores ambulantes
de um bairro perdido do Haiti desempenha o mesmo papel no sistema mundial que o
Bundesbank alemão, uma aldeia longínqua da Indonésia tem a mesma categoria de poder
financeiro e político-militar que a Wall Street ou o Pentágono? Ou talvez
continuemos localizados, ainda que não percebamos, no antigo capitalismo
keynesiano do pós-guerra, com cadeias produção de valor ancoradas em cada país
e capitais regulados em escala puramente nacional? Terá sido totalmente inócua
a contraofensiva capitalista iniciada em setembro de 1973 no Chile, estendida a
seguir à Argentina de 1976 e finalmente aplicada durante 1979-1980 na Londres
de Margaret Thatcher e na Washington de Ronald Reagan? Que alguém avance uma
explicação por favor e nos esclareça o panorama!
Não estaremos vivendo, talvez,
uma nova fase do capitalismo, na qual se combinam as revoluções tecnológicas do
capitalismo tardio estudadas por Erneste Mandel, os cinco monopólios mundiais
explicados por Samir Amin e a reconquista planetária por expropriação
(desposesión) sobre a qual nos alertou David Harvey?
Seja qual for a resposta correta,
o que está claro é que a partir da crise feroz de 2008 e da reconversão dos
antigos fanáticos do livre comércio em “protecionistas” e “guerreiros
comerciais” (EUA, Alemanha, China, etc), somadas às invasões, bombardeios,
bloqueios econômicos e intervenções político-militares imperialistas da última
década, qualquer análise séria do presente já não pode continuar a repetir os
tiques, os slogans e as modulações da “coexistência pacífica” de 1960.
Aquele tosco e demasiado inocente
“pacifismo” de Nikita Kruschev dos velhos documentários em branco e preto, uma
década mais tarde adotado nas metrópoles ocidentais pelo eurocomunismo
(acompanhado de refinadas e esquisitas argumentações epistemológicas), hoje...
nos atrasa!
Afirmar que a grande meta
estratégica do comunismo é... “a paz” (assim, em geral, como diziam os
soviéticos) e a defesa “da democracia” (também em geral, sem especificações e
qualificações), está demodé. Não vai mais. Não corresponde ao planeta em que
vivemos.
Flower power frente ao
imperialismo ou estratégia comunista?
O mundo mudou. Lamentavelmente
não foi para melhor. O movimento hippie de John Lennon e Yoko Ono, junto com o
flower power, ficaram no belo rincão da nostalgia estética e da memória
musical. Longe daqueles cabelos compridos e dos seus protestos pacifistas em
lençóis brancos, nosso mundo atual parece-se muito mais com as sombrias imagens
distópicas onde proliferam as invasões, as bases militares em escala
planetária, a vigilância global, a repressão das massas empobrecidas migrantes
e as guerras por recursos naturais não renováveis.
Se tivermos os pés na terra e não
confundirmos o princípio do prazer (e a imaginação psicodélica) com o princípio
da realidade, o trauma da queda do Muro de Berlim e as antigas nostalgias, hoje
imperantes, devem ser superadas de uma vez por todas. De nada serve invocá-las
periodicamente para reinventar novos reformismos.
Num livro recente, Estudiando la
contrainsurgencia de Estados Unidos. Manuales, mentalidades y uso de la
antropología (2019), o antropólogo mexicano Gilberto López y Rivas descreve o
sistema mundial capitalista da nossa época. É só uma tentativa possível, mas a
nosso ver muito útil e realista.
No momento de definir as
características centrais e o tipo de capitalismo que predomina nos nossos dias,
o autor recusa de fato as versões apologéticas de uma suposta globalização
“homogênea, plana, sem assimetrias nem desenvolvimentos desiguais”. Gilberto
López y Rivas afirma que o sistema capitalista do nosso presente constitui um
imperialismo global lançado sem escrúpulo algum numa “recolonização do mundo”.
Sua tese, arriscada e precisa, desmonta na prática esse lugar comum das
academias (financiadas por fundações “desinteressadas” como a NED ou a USAID)
segundo a qual “num mundo globalizado, governado pela informação e o
capitalismo cognitivo, os Estados Unidos, a Europa ocidental e os países
capitalistas mais desenvolvidos já não necessitam da América Latina, África nem
dos países pobres da Ásia, ou seja, do Terceiro Mundo”. Essa formulação
trivial, repetida até à exaustão por especialistas em guerra psicológica,
opiniólogos do marketing midiático e diletantes vários a soldo do império,
depara-se com as guerras permanentes contra países periféricos, os bombardeios
“humanitários” contra as sociedades dependentes, os bloqueios econômicos e
comerciais contra qualquer governo desobediente – nomeados com desdém como um
“regime” só pelo facto de não se ajoelhar perante as ordens das embaixadas
estadunidenses, da União Europeia ou as receitas do FMI e do Banco Mundial – e
o saqueio ininterrupto dos recursos naturais e da biodiversidade do Terceiro
Mundo. Esse processo renovado de dominação e apropriação, ou a tentativa de
levá-lo a cabo por métodos violentos, constitui a manifestação de um
“neocolonialismo imperialista”, segundo a análise rigorosa de Gilberto López y
Rivas. Toda uma definição.
O arco-íris da bandeira vermelha
Dentro deste contexto global, não
cabe a passividade. As resistências são múltiplas. Ainda que nem todas tenham a
mesma capacidade de organização, mobilização, nem a mesma nitidez ideológica
para convocar e unir em escala internacional as iras populares, as rebeldias
antissistêmicas e as dissidências contra “a nova ordem mundial”, cada dia mais
caótica, cruel e desapiedada. As bandeiras das massas oprimidas e dos
movimentos sociais em escala planetária têm as cores mais diversas, desde o
verde ecologista e o violeta feminista até o emblema multicor LGTBI, entre
muitíssimas outras expressões da palestra rebelde. Mas de todas as cores e
matizes, necessariamente variados e coexistentes, acreditamos que o horizonte
vermelho do marxismo continua a ser a perspectiva teórico-política mais
abrangente, inclusiva e integradora e a que permite articular e unir todas as
demais rebeldias à escala mundial, como há alguns anos assinalou a pensadora
dos Estados Unidos Ellen Meiksins Wood no seu conhecido livro A renovação do
materialismo histórico. Democracia contra capitalismo (2000).
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Trecho do texto: El fantasma comunista en su laberinto: notas "desde un oscuro rincón del mundo". In: La Haine.
Trecho do texto: El fantasma comunista en su laberinto: notas "desde un oscuro rincón del mundo". In: La Haine.
*Néstor Kohan | Investigador e
docente na Universidade de Buenos Aires (UBA). Publicou numerosas obras sobre
teoria marxista e história do pensamento revolucionário, entre os quais
destacam: “O capital: história e método”; “Ernesto Che Guevara: o sujeito e o
poder”, “Gramsci para principiantes” e “Fidel para principiantes”. Vários deles
têm sido editados na Argentina, Brasil, México, Cuba, Venezuela, Colômbia e no
Estado espanhol.
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