terça-feira, 27 de agosto de 2019

O capitalismo em debate


Depois de várias décadas de cozidos requentados pós-modernos, sopas “pós-marxistas”, saladas reformistas e sobremesas pós-coloniais à la carte, a discussão sobre o capitalismo mundial volta ao centro da mesa.

Néstor Kohan*

Nos movimentos sociais, nas organizações políticas e no mundo cultural. Já ninguém se conforma com os “microrrelatos”, os “micropoderes”, a “micro-história”. Todos os pretextos e malabarismos para não encarar as crises selvagens que atravessam o sistema capitalista são afastados, como migalhas sujas, para fora da toalha.

O incêndio da crise de 2008 não se apaga. O fogo estende-se. O planeta range. Cada vez se tornam mais inadiáveis as explicações totalizantes sobre o que atravessamos.

Estaremos, por fim, numa época de capitalismo “desterritorializado” e interdependente, sem imperialismo, metrópoles, dependências nem periferias, onde um grupo de vendedores ambulantes de um bairro perdido do Haiti desempenha o mesmo papel no sistema mundial que o Bundesbank alemão, uma aldeia longínqua da Indonésia tem a mesma categoria de poder financeiro e político-militar que a Wall Street ou o Pentágono? Ou talvez continuemos localizados, ainda que não percebamos, no antigo capitalismo keynesiano do pós-guerra, com cadeias produção de valor ancoradas em cada país e capitais regulados em escala puramente nacional? Terá sido totalmente inócua a contraofensiva capitalista iniciada em setembro de 1973 no Chile, estendida a seguir à Argentina de 1976 e finalmente aplicada durante 1979-1980 na Londres de Margaret Thatcher e na Washington de Ronald Reagan? Que alguém avance uma explicação por favor e nos esclareça o panorama!

Não estaremos vivendo, talvez, uma nova fase do capitalismo, na qual se combinam as revoluções tecnológicas do capitalismo tardio estudadas por Erneste Mandel, os cinco monopólios mundiais explicados por Samir Amin e a reconquista planetária por expropriação (desposesión) sobre a qual nos alertou David Harvey?


Seja qual for a resposta correta, o que está claro é que a partir da crise feroz de 2008 e da reconversão dos antigos fanáticos do livre comércio em “protecionistas” e “guerreiros comerciais” (EUA, Alemanha, China, etc), somadas às invasões, bombardeios, bloqueios econômicos e intervenções político-militares imperialistas da última década, qualquer análise séria do presente já não pode continuar a repetir os tiques, os slogans e as modulações da “coexistência pacífica” de 1960.

Aquele tosco e demasiado inocente “pacifismo” de Nikita Kruschev dos velhos documentários em branco e preto, uma década mais tarde adotado nas metrópoles ocidentais pelo eurocomunismo (acompanhado de refinadas e esquisitas argumentações epistemológicas), hoje... nos atrasa!

Afirmar que a grande meta estratégica do comunismo é... “a paz” (assim, em geral, como diziam os soviéticos) e a defesa “da democracia” (também em geral, sem especificações e qualificações), está demodé. Não vai mais. Não corresponde ao planeta em que vivemos.
Flower power frente ao imperialismo ou estratégia comunista?

O mundo mudou. Lamentavelmente não foi para melhor. O movimento hippie de John Lennon e Yoko Ono, junto com o flower power, ficaram no belo rincão da nostalgia estética e da memória musical. Longe daqueles cabelos compridos e dos seus protestos pacifistas em lençóis brancos, nosso mundo atual parece-se muito mais com as sombrias imagens distópicas onde proliferam as invasões, as bases militares em escala planetária, a vigilância global, a repressão das massas empobrecidas migrantes e as guerras por recursos naturais não renováveis.

Se tivermos os pés na terra e não confundirmos o princípio do prazer (e a imaginação psicodélica) com o princípio da realidade, o trauma da queda do Muro de Berlim e as antigas nostalgias, hoje imperantes, devem ser superadas de uma vez por todas. De nada serve invocá-las periodicamente para reinventar novos reformismos.

Num livro recente, Estudiando la contrainsurgencia de Estados Unidos. Manuales, mentalidades y uso de la antropología (2019), o antropólogo mexicano Gilberto López y Rivas descreve o sistema mundial capitalista da nossa época. É só uma tentativa possível, mas a nosso ver muito útil e realista.

No momento de definir as características centrais e o tipo de capitalismo que predomina nos nossos dias, o autor recusa de fato as versões apologéticas de uma suposta globalização “homogênea, plana, sem assimetrias nem desenvolvimentos desiguais”. Gilberto López y Rivas afirma que o sistema capitalista do nosso presente constitui um imperialismo global lançado sem escrúpulo algum numa “recolonização do mundo”. Sua tese, arriscada e precisa, desmonta na prática esse lugar comum das academias (financiadas por fundações “desinteressadas” como a NED ou a USAID) segundo a qual “num mundo globalizado, governado pela informação e o capitalismo cognitivo, os Estados Unidos, a Europa ocidental e os países capitalistas mais desenvolvidos já não necessitam da América Latina, África nem dos países pobres da Ásia, ou seja, do Terceiro Mundo”. Essa formulação trivial, repetida até à exaustão por especialistas em guerra psicológica, opiniólogos do marketing midiático e diletantes vários a soldo do império, depara-se com as guerras permanentes contra países periféricos, os bombardeios “humanitários” contra as sociedades dependentes, os bloqueios econômicos e comerciais contra qualquer governo desobediente – nomeados com desdém como um “regime” só pelo facto de não se ajoelhar perante as ordens das embaixadas estadunidenses, da União Europeia ou as receitas do FMI e do Banco Mundial – e o saqueio ininterrupto dos recursos naturais e da biodiversidade do Terceiro Mundo. Esse processo renovado de dominação e apropriação, ou a tentativa de levá-lo a cabo por métodos violentos, constitui a manifestação de um “neocolonialismo imperialista”, segundo a análise rigorosa de Gilberto López y Rivas. Toda uma definição.

O arco-íris da bandeira vermelha

Dentro deste contexto global, não cabe a passividade. As resistências são múltiplas. Ainda que nem todas tenham a mesma capacidade de organização, mobilização, nem a mesma nitidez ideológica para convocar e unir em escala internacional as iras populares, as rebeldias antissistêmicas e as dissidências contra “a nova ordem mundial”, cada dia mais caótica, cruel e desapiedada. As bandeiras das massas oprimidas e dos movimentos sociais em escala planetária têm as cores mais diversas, desde o verde ecologista e o violeta feminista até o emblema multicor LGTBI, entre muitíssimas outras expressões da palestra rebelde. Mas de todas as cores e matizes, necessariamente variados e coexistentes, acreditamos que o horizonte vermelho do marxismo continua a ser a perspectiva teórico-política mais abrangente, inclusiva e integradora e a que permite articular e unir todas as demais rebeldias à escala mundial, como há alguns anos assinalou a pensadora dos Estados Unidos Ellen Meiksins Wood no seu conhecido livro A renovação do materialismo histórico. Democracia contra capitalismo (2000).

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Trecho do texto: El fantasma comunista en su laberinto: notas "desde un oscuro rincón del mundo". In: La Haine.


*Néstor Kohan | Investigador e docente na Universidade de Buenos Aires (UBA). Publicou numerosas obras sobre teoria marxista e história do pensamento revolucionário, entre os quais destacam: “O capital: história e método”; “Ernesto Che Guevara: o sujeito e o poder”, “Gramsci para principiantes” e “Fidel para principiantes”. Vários deles têm sido editados na Argentina, Brasil, México, Cuba, Venezuela, Colômbia e no Estado espanhol.

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