segunda-feira, 2 de setembro de 2019

O entretenimento e a defesa nacional


– Porque a Rússia tem munição mas não tem armas

Tim Kirby [*]

Graças a algum tipo de acaso genético, não tenho medo de falar em público; na verdade, encaro isso como um desafio divertido de como transmitir minhas ideias ao público, sobretudo num segundo idioma – o russo. Como alguém que trabalha nos media russos desde há algum tempo, muitas vezes pedem-me para discutir a influência do media e a guerra de informação. Os intelectuais russos da variedade patriótica podem ver que seu país precisa de um exército forte para se tornar novamente poderoso e respeitado. Eles também podem ver que os media de notícias são um aspecto importante do Soft Power que tecem narrativas para competir contra os media (ocidentais) dominantes. Mas quando menciono a importância do entretenimento como um aspecto do Soft Power, começam sempre os sorrisos e os risos. Nenhum auto-intitulado intelectual russo pode aceitar o facto de que o entretenimento afecta profundamente nosso subconsciente e é a negação nacional da Rússia desse facto que impede o país de se tornar uma superpotência.

De muitos modos, quer seja um mapa de Hard Power militar, ou a tecnologia da indústria do Soft Power ou outras maneiras de avaliar, o mundo em que vivemos actualmente tem os EUA/NATO no topo com uma projecção de poder quase global. Os chineses vêm em segundo lugar, com controle total sobre a influência no seu próprio território mas com pouco efeito além das suas fronteiras. E a Rússia num distante terceiro lugar com alguma influência estrangeira inclusive, fortalezas [externas] no seu antigo território. Utilizando estes três grandes actores geopolíticos (com a Rússia sendo a possuidora de uma distante medalha de bronze), vemos uma imagem do mundo que reflecte a realidade em que vivemos. Mas quando se trata de entretenimento, a Rússia é essencialmente um não actor vassalo. 

Grosso modo, e sem levar em conta as diferenças de valor da moeda, das 10 principais nações produtoras de filmes mais lucrativas da Terra seis fazem parte do Ocidente, somando aproximadamente US$740 mil milhões na venda mundial de ingressos. Não é de surpreender que a maior parte disso venha dos Estados Unidos. E, como seria de esperar, logo atrás dos anglo-saxões estão os chineses no seu status habitual de medalha de prata.

A Rússia, contudo, está em 15º lugar nos lucros mundiais com a venda de ingressos e este facto mostra um enorme buraco na defesa russa e em quaisquer perspectivas para o desenvolvimento futuro.

In regards to the danger of not having a powerful national entertainment industry an Egyptian colleague once told me something that really hits the nail right on the head… 

Quanto ao perigo de não ter uma poderosa indústria nacional de entretenimento, um colega egípcio certa vez contou-me algo em que realmente acertou em cheio…

"Mesmo sob a influência de Hollywood desde o berço até a tumba, 95% dos jovens permanecem no contexto cultural da sua nação nativa, eles podem vestir-se à ocidental, mas continuam a ser egípcios no seu íntimo. No entanto, 5% da população de jovens nacionais tornam-se "americanos" e passam a servir um mestre estrangeiro e estes 5% são a massa crítica necessária para iniciar qualquer revolução colorida".

E isto é o perigo para a Rússia: não ter meios de projectar uma visão civilizacional, alguém está constantemente a projectar a sua própria dentro da Rússia e, com o tempo, dada a opção entre ideias e não-ideias, os jovens aderirão a algum tipo de ideias mesmo que sejam estrangeiras e alienígenas. Algo em que acreditar é melhor que nada.

No curto prazo, é a falta de qualquer tipo de "Sonho russo" ou "projecto para um novo século russo" que em certa medida provoca pequenos movimentos de protesto em todo o país. O governo nada tem espiritualmente ou ideologicamente para à oferecer sua própria população e muito menos a estrangeiros e isso é uma enorme fraqueza. Os jovens ouvem que não são livres, e a liberdade soa bem, e como não há uma contra-visão de liberdade, sua ideia de liberdade é a que o Ocidente diz que ela é.

Toda criança na Terra foi doutrinada nos valores liberais da Guerra nas Estrelas/Disney, todo a gente já viu algum desenho animado (pelo menos quando criança) e o Facebook está cheio de clipes de filmes tolos de Bollywood, mas praticamente ninguém assistiu a qualquer espécie de filme russo quando olhamos as coisas globalmente. O Japão vassalo e a Índia, dominada pela pobreza, estão anos-luz à frente da indústria de entretenimento da Rússia.

As ideias de "Democracia iliberal", "Multipolaridade" e a "4ª Teoria Política" estão no cerne do discurso intelectual russo de hoje e têm um admirável potencial ideológico. Contudo, estas ideias não têm relações públicas ou meios de compartilhá-las como uma visão para as massas. Os estrangeiros quase nunca conseguem descrever o "sonho americano" em palavras, mas pode-se ver que eles têm um conceito em mente, graças a todos os filmes que assistiram. A visão de mundo do liberalismo tem tido uma promoção planetária absolutamente titânica graças a Hollywood, ao passo que a Rússia tem suas ideias discutidas em mesas-redondas por grupos de reflexão, os quais acreditam estarem a fazer mudanças escrevendo montes de documentos para compartilharem entre si. O surpreendente é que não vejam absolutamente nada de errado com este método e que zombem de mim, quando eles próprios consomem todo o lixo que a Netflix oferece diariamente.

A Rússia tem munição cultural/intelectual para se defender ideologicamente e promover uma visão que a levará outra vez a ser uma superpotência. O problema é que carece completamente de qualquer tipo de "arma" (media de entretenimento) para por a munição em uso. Mas por que isto é assim? Por que a Rússia é incapaz de produzir um filme com êxito internacional significativo? 

O governo e os tipos que riem de mim por dizer que o entretenimento é uma parte importante da defesa nacional vêem o mundo de uma perspectiva tecnocrática. Mísseis nucleares e sua "influência" são fáceis de entender para tecnocratas, a validade de fazer um filme que lance a alma russa sobre o mundo para atrair "5% da juventude" de vários países é demasiado abstracto para a sua compreensão. Não são pessoas criativas, não são pessoas com uma visão, são contadores de feijões que existem para manter o barco à tona. A ideia deles é encontrar um conjunto de leis para optimizar quantas pessoas consomem álcool, não fornecer-lhes uma razão ideológica para não beber. 

Os russos não acreditam que o subconsciente precise ser tratado. Todas as mensagens para estrangeiros devem ser feitas oficialmente através dos media profissionais. Este ponto de vista está em contraste directo com o modo como a publicidade e o marketing apelam a emoções. Os russos recusam-se a apelar para o subconsciente através dos media de entretenimento emocional. 

A indústria cinematográfica russa é uma rede fechada repleta de liberais que odeiam a Rússia e tudo o que é russo, que prefere lançar filmes de arte para receber aplausos de uma sala cheia de degenerados viciados em drogas que entregam troféus em Cannes a invés de se por em contacto com a vida de milhões ou de pessoas normais por todo o mundo.

A Rússia não tem uma ideologia/visão de mundo canonizada ou parcialmente canonizada para projectar. Não há um "sonho russo" ou "visão russa" formulado. Apesar do facto de que criar este tipo de projecto ideológico poderia ser concluído nuns poucos meses de trabalho e com financiamento muito limitado do ponto de vista governamental.

Nações poderosas projectam uma poderosa visão cultural. A Rússia sempre permanecerá, como disse Obama como "uma potência regional", na medida em que for incapaz de produzir media de entretenimento que mostre uma Visão ou Sonho russo. O verdadeiro sinal de uma grande potência no século XXI é sua capacidade para produzir entretenimento que contenha visão cultural. Se não puder fazer filmes e videogames acerca da sua cultura, então a sua cultura provavelmente não é adequada para sobreviver num mundo globalizado.

Só posso esperar que, depois de ser ridicularizado durante uma década por poderosos homens engravatados acerca do valor do entretenimento para a defesa, um deles acorde e perceba que estou certo. Assim, talvez me dê a oportunidade e o financiamento para corrigir isso. Mas infelizmente acho que posso ter de enfrentar mais algumas décadas de ridículo pois a Rússia está satisfeita em continuar a ser um vassalo do entretenimento de Hollywood/Washington. 

[*] Jornalista

O original encontra-se em www.strategic-culture.org/... 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

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