Procedemos à reposição de “O Vulcão
Sul-Africano”, de Martinho Júnior, que data de publicação de há sete anos no Página Global. Perante o que acontece atualmente na África do Sul, Martinho Júnior
comenta na sua página no Facebook: “Naquela altura era já evidente o que o
elitismo integrado na corrente de capitalismo neoliberal estava a fazer em
termos de deseducação do povo sul-africano, com explosões indiciadoras e
palpáveis! Hoje não só é confirmado "O VULCÃO SUL-AFRICANO", como os
angolanos e as outras "borboletas" da região, estão a ser tragados
pelo camaleão...” Uma previsão inabalável que a atualidade comprova. (PG)
Martinho Júnior, Luanda
MEMÓRIA DE PABLO NERUDA
1 – Tenho um imenso respeito e
admiração por Pablo Neruda: como muito poucos, ele foi capaz de nos transmitir
com um elevado poder de síntese, os quadros mais compulsivos da América,
expondo a nu e a cru as injustiças históricas que se vão arrastando de século
em século, de década em década… o que acontece quando o império se impõe sobre
as bandeiras dos povos…
Se as suas substantivas
referências são uma sensível comoção do que acontece na América Latina, nem por
isso ele deixa de ser universal: sinto-o isso a partir de África, por que cá
como lá há o mel das imensas riquezas, apenas com oportunidade para “moscas”
que não deixam de ser da mesma estirpe, que fazem parte do mesmo agregado,
utilizam os mesmos métodos, os mesmos processos, os mesmos vícios, o mesmo
padrão de “culturas”, os mesmos rituais, quantas vezes rituais de sangue…
Explico: se por lá é a United
Fruit Company, aqui são as Anglo American Corporations, as Lonrhos, as De
Beers, agora uma Lonmin… o arsenal de mineiras que exploram não a superfície,
mas as entranhas mais profundas da terra, sobretudo desde a explosão da
Revolução Industrial e seguindo a pista e o génio geo estratégico de Cecil John
Rhodes, servidor e inspirador das mais poderosas elites do império!...
“Cuando sonó la trompeta, estuvo
todo preparado en la tierra,
y Jehová repartió el mundo
a Coca-Cola Inc., Anaconda,
Ford Motors, y otras entidades:
la Compañía Frutera Inc.
se reservó lo más jugoso,
la costa central de mi tierra,
la dulce cintura de América.
Bautizó de nuevo sus tierras
como Repúblicas Bananas,
y sobre los muertos dormidos,
sobre los héroes inquietos
que conquistaron la grandeza,
la libertad y las banderas,
estableció la ópera bufa:
enajenó los albedríos
regaló coronas de César,
desenvainó la envidia, atrajo
la dictadura de las moscas,
moscas Trujillos, moscas Tachos,
moscas Carías, moscas Martínez,
moscas Ubico, moscas húmedas
de sangre humilde y mermelada,
moscas borrachas que zumban
sobre las tumbas populares,
moscas de circo, sabias moscas
entendidas en tiranía.
Entre las moscas sanguinarias
la Frutera desembarca,
arrasando el café y las frutas,
en sus barcos que deslizaron
como bandejas el tesoro
de nuestras tierras sumergidas.
Mientras tanto, por los abismos
azucarados de los puertos,
caían indios sepultados
en el vapor de la mañana:
un cuerpo rueda, una cosa
sin nombre, un número caído,
un racimo de fruta muerta
derramada en el pudridero.
PARA ALÉM DO “APARTHEID”
2 – Poucos estranharam,
interrogaram e se interrogaram por que o fim dum regime tão ignóbil como o do
“apartheid” ocorria precisamente no mesmo momento em que desaparecia o
socialismo real na Europa e se implodia a União Soviética…
Poucos entenderam sem equívocos e
em tempo oportuno, o que os arautos anunciavam como “sinal dos tempos”, ou
ainda “o fim da história”…
Por isso foram poucos os
cáusticos em relação às figuras emergentes na África do Sul: De Klerk, Nelson
Mandela, Thabo M’Beki…
Na oportunidade, acerca deles
foram pronunciados louvores ao superlativo, que até hoje perduram: a história,
tinha de ser contada à sua maneira por que o que interessava sobretudo era
fazer perdurar a lógica capitalista e garantir mão-de-obra barata e submissa,
os indispensáveis lucros em benefício das elites sobre a miséria dos povos…
Quando me tenho referido às
sequelas do colonialismo e do “apartheid”, não o faço de ânimo leve e coloco
tão históricas quanto legítimas interrogações:
Até que ponto conseguiu ir a
ânsia de liberdade, de soberania, de socialismo e de democracia, que fez parte
da essência do movimento de libertação, para além do tempo útil em que perdurou
o “apartheid”?
Que garantias havia para,
reforçando-se sem mais constrangimentos a lógica capitalista, conseguir-se
vencer o peso histórico do elitismo, quando o processo de sequência da
Revolução Industrial continuava a ver garantida na África do Sul a sua
“natural” sequência?
O elitismo dominou na formação da
União Sul Africana, dominou no “apartheid” e continua a dominar na “democracia
representativa” da África do Sul!!!
Por isso lembro o que publiquei
no número 371 do “Actual”, a 8 de Novembro de 2003, quando tive a ousadia de
interrogar “Que eternidade para Nelson Mandela?”, com uma fotografia em que
face a face o velho Mandela ex-prisioneiro do “apartheid”, admirava a face duma
foto do novo, daquele que já era conhecido como líder do ANC antes da longa
prisão!
Entre o velho e o novo Mandela,
preferia sem qualquer dúvida o novo, aquele que tendo ainda tanta vida por
viver entregue à causa da libertação em África, estava ainda muito longe de ser
“eterno”, reduzindo-se à posição de mais uma “mosca” entre as inúmeras “moscas”
que a aristocracia financeira mundial, por via do carácter do seu domínio, foi
disseminando por toda a imensidão dos países do Sul!...
A associação das “moscas” à
tirania e da tirania às explosões sociais, ao sangue dos “condenados da terra”,
em 2003 era tão legítima quanto a “guerra dos diamantes de sangue” tinha
finalmente acabado em Angola com a morte de Savimbi, um fiel servidor do signo
de Rhodes!
O velho Nelson Mandela trazia
sintomas com os quais eu não me podia identificar, pelo que coloquei-me “contra
corrente”: eram previsíveis futuras erupções sociais na África do Sul e noutros
países africanos para além dos “diamantes de sangue”, era tudo uma questão de
tempo, de maturação e eu era pela paz e pelo socialismo, como hoje!
Escrevi eu sintomaticamente
então, quando Nelson Mandela veio em “viagem privada” a Luanda em nome, ou
refém, de entidades mineiras operadoras em África:
“Não sabemos com propriedade que
cores, das muitas que compõem o Arco Íris Sul Africano, veio Nelson Mandela
trazer a Angola desta feita e na curta viagem que realizou em dias recentes,
numa inusitada viagem relâmpago em jacto privado, acompanhado por não
identificadas criaturas, que como marcianos pareciam ter chegado pela primeira
vez, meio circunspectos, meio acabrunhados, meio curiosos, meio ansiosos, às minas
de Salomão… cá na Terra!
Nada melhor que um bom diamante
para, estabelecendo a refracção da luz, obter-se a sua decomposição, tal como
acontece aliás com o arco íris, transmitir com pureza e evidência, uma
determinada cor, ou duma forma mais difusa, transmitir um tom dessa cor.
A subtileza das subtilezas porém
reside no facto da veneranda figura de Nelson Mandela, um líder que para muitos
se terá tornado eterno (são assim as campanhas de marketing Global para quem
tutela os interesses da aristocracia financeira Mundial), se aprestar a bons
serviços pela causa de quem tem vindo a considerar há várias décadas a esta
parte que só os diamantes são eternos.
A visita dum Nelson
Mandela-enquanto-símbolo, parece ter feito uso marcadamente duma determinada filosofia
e psicologia, como se per si estivesse a emitir um há muito identificado sinal
de quem, impulsionado para a crista duma onda Histórica, não só mas também em
relação ao negócio dos diamantes, apesar dos enredos da globalização (é preciso
não esquecer as Leis anti-trust que ainda estão em vigor nos Estados Unidos),
parece vir querer afirmar com convicção que se está pronto para os novos
desafios que se aprontam com o novo século que ora se iniciou e pretende dar
provas de boa vontade e diplomacia, para além do publicitado exemplo que
constitui o Botswana (que alberga aliás a própria sede da SADC e tem merecido
prémios de muito bom comportamento).
É evidente que os lobbies
globais, cujos executivos estão simultaneamente à frente dos negócios dos diamantes,
do ouro e da platina, vivendo desde o berço com a simbologia e as correntes
ascendentes que se haviam identificado com um patrono ao nível dum Cecil John
Rhodes, visionário e operador da expansão do Império Britânico, procurem agora,
em período da segunda Revolução Capitalista, aproveitar as mudanças (entre elas
a queda do apartheid) para relançar o modelo, adaptando-o a um interesse em
expansão, conforme as actuais características do mercado.
Se há cem anos a operação
resultou em ganhos importantes no âmbito da própria Revolução Industrial, para
a aristocracia bancária que tutela a globalização, como mantém rédea curta
sobre a Reserva Federal Americana, a lição foi bem digerida e pode ser aplicada
com um enredo similar, adaptando, ao âmbito da actual Revolução Tecnológica e
Científica.
(…)
O segredo de Nelson Mandela não
será assim tão eterno como acontece com a matéria em carbono puro e apostamos
forte em como a aristocrática tribo dos Oppenheimer, com cores historicamente
identificadas no Arco Íris Sul Africano, vão precisamente fazer o que sempre
fizeram (procurando vantagens, ainda que em épocas de crise), dando sequência
ao génio pioneiro de Cecil John Rhodes assim como aos artificiosos ditames da
Conferência de Berlim: negociar!
(…)
A estatura de estadista de Nelson
Mandela é de facto um projecto que, bebendo no passado do exemplar conhecido
por Cecil John Rhodes, é de tal maneira feito a essa imagem e semelhança que
até não teve outra alternativa senão a osmose (a síntese) de sua própria
Fundação com a Rhodes Scholarships, num projecto identificado com a Mandela
Rhodes Foundation (Arco Íris, a quanto obrigas!).
Entre uma suposta tese vivida
pela personagem como Cecil John Rhodes e uma suposta antítese na personagem de
Nelson Mandela, haverá algo melhor com um século de permeio que uma síntese
conforme a que constatamos, que cria a ilusão policromática duma terceira via,
com um ponto de partida visível nas iniciativas que assumiu no início da década
de sessenta do século passado a Administração de John F. Kennedy nos seus
relacionamentos para com África?
Não foram sempre os grandes
executivos que lideraram (e lideram) os sincronizados sectores dos diamantes,
do ouro e da platina, aqueles que demonstraram capacidade de lidar com os dois
lados dos muitos contendores típicos do século XX, os que estão mais aptos a
essa terceira via, uma via com que se cose também a globalização?
Entendemos desse modo que para
muitos dos nossos doutos professores e políticos a eternidade de Nelson
Mandela-enquanto-Estadista de sinal Democrata é tão simpática como o seu estado
de graça de venerando veterano de longas Lutas.
Para nós que nos esforçamos por
entender a vida e a obra daqueles que ousaram pelos caminhos duma terceira via
com plasma de social democracia, parecem-nos legítimas as nossas incertezas e
inquietações que psicologicamente, ao menos psicologicamente, vão trabalhando
pelas conjecturas de nosso espírito.
Parece-nos que as palavras do
eminente crítico da política, dos políticos e das mass media Contemporâneos,
eminente homem que se identifica com a nova esquerda que dá pelo nome de
Ignatio Ramonet, podem ser extravasadas muito para além da social democracia
Europeia que ele potencializa como uma autêntica direita moderna em Guerras do
século XXI:
Para a social democracia que
governa sozinha em grandes Países Europeus, a política é a economia; a economia
são as finanças e as finanças são os mercados.
É por isso que ela se esforça por
favorecer as privatizações, o desmantelamento do sector público, as
concentrações e fusões de mega-Empresas.
Mesmo que adopte aqui e ali leis
sociais importantes, no fundo aceitou converter-se ao neoliberalismo.
O objectivo já não é fixar
objectivos prioritários como o pleno emprego, ou a erradicação da miséria, para
responder ao desespero de dezoito milhões de desempregados e cinquenta milhões
de pobres da União Europeia.
(...)
Aceitou, por vacuidade teórica e
por oportunismo, a missão histórica de naturalizar o neoliberalismo. Em nome do
realismo, já não quer pôr nada em causa. Principalmente a ordem social.
Afinal, por vacuidade teórica,
que eternidade para Nelson Mandela?”
Em finais de 2003 não tinha
ilusões algumas em relação ao “marketing” que já era Nelson Mandela e o vulcão
que nas profundezas da sociedade sul africana estava escondido por debaixo do
“1 homem, 1 voto”!
Confesso, quando também recordo
esse texto de há quase nove anos, que me sinto em relação à África do Sul,
assim como um vulcanólogo: não tinha ilusões que um dia, bem do fundo das
minas, bem do fundo da multi-cultural sociedade sul africana, a explosão
ocorreria, como agora ocorreu!...
MARIKANA COMO SHARPEVILLE!!!
3 – O reactivar do vulcão está aí
em Marikana: agora o elitismo está a nu e cru, sem subterfúgios, sem
embaixadores, sem “moscas”, sem a cobertura duma geo estratégica como o foi a
formação da União Sul Africana, ou a miragem “do Cabo ao Cairo”, ou a ignomínia
dum regime como o do “apartheid”… está-se perante uma mui anglo-saxónica
multinacional mineira de platiba e um governo que é obrigado a identificar-se e
a retratar-se por inteiro perante o seu próprio eleitorado, perante o seu
povo!!!
Um pouco como um dia Pablo Neruda
despiu por via do verbo a bananeira United Fruit Cº, está despida por via do
sangue mais uma “majestática” mineira, a Lonmin, face a face aos sindicatos, às
greves e ao sangue dos explorados às mãos duma Polícia embaraçada nos equívocos
próprios das “terceiras vias” agora em voga entre tantas elites dos países do
Sul, inclusive num feito dúbio “emergente” como a África do Sul!!!
Haverá ainda alguns que vão
evocar a legítima defesa…
Haverá outros que evocarão a
impraticabilidade das reivindicações dos mineiros e dos sindicatos…
Haverá muitas evocações para
justificar o que é óbvio: exploração e miséria com mais dum século de
impunidades!
As elites, a classe dominante
substancialmente representada no poder e nos seus mecanismos, mantiveram afinal
o mesmo carácter, o mesmo comportamento, quer na formação da União Sul
Africana, quer no exercício do “apartheud”, quer agora na “democracia
representativa”, apesar das tradições de luta do ANC!...
Meio atarantado, meio estarrecido,
meio hipotecado, o governo sul africano reage debilmente, sem saber bem o que
fazer e como fazer em relação aos seus próprios instrumentos de poder de
estado, à sua Polícia e em relação à conjuntura em que historicamente se tem
vindo a enredar o ANC!
A “Ministra das minas apela
empresas mineiras a partilhar a riqueza” (http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/africa/2012/7/34/Ministra-das-Minas-apela-empresas-mineiras-partilhar-riqueza,a2540c90-e883-4182-a29c-2770f8cccbd1.html)
"As minas devem redobrar os
esforços para promover bons programas sociais.
Se podermos realmente trabalhar
juntos, num espírito de colaboração (...), podemos também tirar proveito desta
tragédia para eliminar muitas das más práticas que persistem no sector de
mineiro".
Para os ricos, apelos, para os
mineiros a longa espera de mais de um século de exploração, em plena miséria,
doença, obscurantismo… e as balas com direito televisivo com sinal disseminado
por todo o mundo!...
O luxo e a arrogância de uns
poucos, face à precariedade duma imensa maioria, depois de duas décadas de
expectativas perante uma “terceira via” que mais que impotente e indiferente
tem demonstrado ser, em função da lógica capitalista, a conveniente representação
das elites “de todas as cores”!
Foi preciso chegar ao sangue para
se entender essas e outras evidências: deslumbrados vinte anos com o “1 homem,
1 voto”, explodiram os subterrâneos profundos do povo, o vulcão das minas e da
própria sociedade!
Afinal Marikana é hoje, o que foi
ontem Sharpeville!
O 15 de Agosto de 2012 é como o
foi o 21 de Março de 1960!
O que mudou entre 1960 e 2012,
quando ao “apartheid” político-institucional se deu sequência, em função da
lógica capitalista e de suas práticas elitistas, a uma “democracia
representativa” de “1 homem, 1 voto”, fórmula mágica com a qual se pretende
esconder o “apartheid social” que como um pântano impede alcançar-se a
harmonia, o equilíbrio, a justiça e a solidariedade, impede a sublimação do passado
de forma a atingir-se um patamar minimamente aceitável que tornaria mais
saudável a sociedade e o povo sul africano?!
O monstro sobreviveu há mais de
um século a esta parte e agora tem a cobri-lo um mal avisado governo de
maioria, deformado pelo elitismo de tão pouco escrupulosa trajectória na África
do Sul, um governo que, esquecendo-se como me pareceu ter-se esquecido o velho
Nelson Mandela em 2003 das lições da história, é agora obrigado, de forma
pungente, a tirar a máscara perante o seu próprio eleitorado “de maioria”,
perante o seu próprio povo!
Que rapidamente aprendam todos os
“aprendizes de feiticeiro”: há demasiados cenários sangrentos que se repetem,
por que o homem é refractário às lições da história, por que o homem, aquele
com poder, interpreta os fenómenos em função das conveniências e dos interesses
das elites e não em função dos interesses e conveniências dos povos, por que a
lógica capitalista é incapaz de fazer mais, melhor e com o respeito e o amor
que a humanidade e o planeta merecem!!!
Foto: Capa do Mail & Guardian
da África do Sul, semana de 17
a 23 de Agosto de 2012
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