Um brasileiro enviado por Deus,
um americano brigão e um britânico que enganou o povo e a rainha: esta semana
nos mostrou como a democracia está ameaçada em muitos países. E por populistas
eleitos, opina Martin Muno*.
Mas que dia! No início desta
terça-feira (24/09), o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, sofreu uma
derrota na Suprema Corte que teria sido considerada devastadora em tempos
normais do passado. Por unanimidade, o tribunal considerou "ilegal,
nula e sem efeito" a imposição – iniciada pelo primeiro-ministro – de uma pausa
obrigatória ao Parlamento britânico.
Em tempos anteriores, esse
veredito teria significado o fim de qualquer chefe de governo britânico,
incluindo o homem que acabou de tomar posse e que tentou, de uma forma
escrúpula, dobrar a Constituição tácita, trair a rainha e silenciar o poder
soberano – isso é, o Parlamento eleito pelo povo. Mas os tempos são diferentes.
Johnson quer permanecer no cargo, e ele – conforme profetizado – permanecerá
como PM por enquanto.
Outra coisa impensável há alguns
anos seria a aparição de um presidente eleito que se apresenta como um quase
enviado por Deus. No início de seu discurso na Assembleia Geral das Nações
Unidas, Jair Bolsonaro agradeceu a Deus pela oportunidade de
"restabelecer a verdade". Ele explicou imediatamente o que entende
por isso: "Nossa Amazónia permanece praticamente intocada" e "é
um equívoco afirmar que a nossa floresta é o pulmão do mundo". No entanto,
há algumas semanas o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
anunciou que a destruição da floresta tropical na Amazônia quase dobrou em um
ano.
O segundo discurso nas Nações Unidas
também foi bizarro: Donald Trump, o "Grande Mestre do
Populismo". Sua caminhada até a tribuna, suas expressões faciais e seu
discurso lido de forma monótona – tudo isso demonstra o desprezo que ele tem
por essa assembleia da comunidade mundial. E ele diz isso claramente: "O
futuro não pertence aos globalistas, mas aos patriotas." Quer dizer, se
todos lutam contra todos, todos ficam melhor. O dia foi coroado de forma
dramatúrgica com a notícia, após o discurso, de que Trump foi confrontado
com um processo de impeachment.
Para ser claro: não se trata aqui
de todos os ditadores manchados de sangue que também estavam em Nova York.
Trata-se de políticos eleitos que governam países onde ainda existem estruturas
democráticas amplas.
Pode-se rir dos políticos arrogantes
e expansivos que zombam de qualquer verdade. Esses três homens entre a
meia-idade e a velhice não parecem se encaixar no complexo mundo digital
do século 21, onde o nerd barbudo deveria ser o arquétipo masculino.
Mas esse não é o caso. Em muitos
países trava-se uma luta de populistas contra a democracia, não somente no
Reino Unido, Brasil e Estados Unidos. Se houvesse novas eleições na Itália, o
extremista de direita Matteo Salvini teria sido eleito o novo
primeiro-ministro. Há anos os populistas governam na Hungria, Polónia e
República Checa. Na França, só o liberal Emmanuel Macron, que governa com
truques populistas, impede o surgimento de um governo populista de direita.
E onde quer que governem, eles
tomam os mesmos três caminhos para minar a democracia. O primeiro é tentando
diluir a diferença entre verdade e mentira, mentindo constantemente e
amordaçando a imprensa livre. Isso pode ser feito simplesmente ao não dar
crédito, ao falar de fake news ou ao banir e comprar editoras
privadas.
A segunda maneira é construindo a
imagem do inimigo: sejam minorias, refugiados, migrantes e membros de outras
religiões ou, simplesmente, intelectuais. O "nós aqui contra eles lá"
é praticamente o martelo na caixa de ferramentas do populismo. E qualquer um
que critica Trump, Bolsonaro e companhia é automaticamente colocado fora
desse "nós" coletivo.
O terceiro caminho é tentando
enfraquecer ou mesmo dissolver as instituições democráticas. Foi aqui que Boris
Johnson se posicionou duas vezes: por um lado, silenciando o Parlamento e, por
outro, anunciando que não respeitaria as decisões da Câmara dos Comuns.
Mas o caso Johnson, em
particular, mostra que as democracias não estão indefesas: é significativo que
Brenda Hale – presidente da Suprema Corte, uma mulher instruída, com argumentos
calmos, definidos e racionais – tenha ajudado o Parlamento a recuperar seus
direitos. A mulher com o broche de aranha freia o impetuoso primeiro-ministro
com o poder das palavras. E isso é reconfortante.
*Martin Muno | Deutsche Welle |
opinião
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