Prometeu embaixada em Jerusalém.
Dizia que a China queria “comprar o Brasil”. Falava mal da “velha política”. Em
menos de um ano, presidente engole o que afirmou, cuida da sobrevivência
política e libera Paulo Guedes — mas não tanto…
Paulo Kliass | Outras Palavras
A sabedoria popular costuma nos
oferecer frases de senso comum, mas que podem nos propiciar lampejos de
elementos importantes para compreender os fenômenos políticos, sociais e
econômicos. “A vida é dura!”. “Não se faz o omelete sem quebrar os ovos!”. “Nada
como um dia após o outro!”. “É grande a distância entre intenção e gesto!”.
“Bem-vindo à realidade!”. “Não dá pra fazer de outro jeito!”.
Pois lá já se vão 10 meses do
governo do capitão. Um candidato que não aparecia como um dos possíveis
ganhadores nem mesmo no início do ano passado. Um deputado federal que passou
sete mandatos ininterruptos, passeando pelos corredores da Câmara dos Deputados
entre 1991 e 2018, sem nenhuma atuação parlamentar de expressão. Bolsonaro era
conhecido apenas por seu discurso extremista para os saudosistas da ditadura e
para os que achavam que a pena de morte seria a solução mais adequada para
todos os problemas da violência em nosso País.
Mas eis que a conjuntura política
e eleitoral de 2018 lhe oferece a oportunidade de se apresentar como um
candidato em condições de superar os traços nas pesquisas de opinião. Assim, o
defensor da tortura e inimigo declarado das políticas de direitos humanos
torna-se um presidenciável com musculatura própria, superando inclusive os
percentuais de aceitação dos candidatos mais tradicionais da direita
tupiniquim. Um parlamentar do baixo clero, tosco no modo de se relacionar com as
pessoas e sem experiência alguma no comando do poder executivo começa a flertar
com franjas das elites do mundo empresarial e do financismo.
A aproximação com Paulo Guedes
foi um passo essencial para facilitar a aceitação de sua candidatura por
aqueles que detêm o poder de fato. Grandes conglomerados do sistema financeiro
e dos meios de comunicação embarcaram na canoa furada. Esse processo se
reforçou quando o candidato conferiu autonomia total ao ex-Chicago boy na
formatação do programa econômico e ainda concentrou nele os poderes de um
verdadeiro superministro. Ocorre que as ideias ultraliberais desse agente muito
conhecido do mercado financeiro não entregaram aquilo que era esperado pela
maior parte dos que se aventuraram nessa candidatura de forma absolutamente
irresponsável.
Liberalismo exacerbado de Guedes
A economia não conseguiu retomar
um mínimo aceitável de crescimento, o desemprego continua em níveis
astronômicos, o ritmo de falência das empresas segue galopante e o governo só
faz cortes e mais cortes de despesas no orçamento, em especial nas áreas do
social e de investimentos. Para piorar o quadro, Bolsonaro optou por reduzir ao
máximo as alternativas de buscar a retomada do PIB pelo lado do aumento das
exportações. Afinal, essa sempre é a saída “mágica” dos austericidas – visar
naquilo que o jargão do economês chama de “demanda externa”, uma vez que a
possibilidade pela via do consumo interno está esmagada pelo arrocho. O
alinhamento automático com a agenda quase pessoal de Trump e o afastamento dos
parceiros tradicionais do bloco sul-americano travestiram-se de uma opção
ideologizada ao extremo, com as consequências esperadas de fechar as portas das
exportações brasileiras para mercados importantes no plano global.
Ocorre que as cobranças podem demorar,
mas via de regra não costumam falhar. Os índices de popularidade do governo
seguem despencando ladeira abaixo e a base social e política começa a
demonstrar sinais de inquietação. Não por acaso, o grupo parlamentar no
Congresso Nacional e o próprio partido ligado à família do presidente começam a
apresentar fissuras. O olhar sobre o cenário das eleições municipais do ano que
vem leva à busca de novos arranjos partidários e o governo é pressionado a
exibir resultados concretos a curto prazo. O problema é que isso significaria
exigir de Paulo Guedes uma flexibilização no rigor da austeridade do
corta-corta a todo custo.
Diante de tais dificuldades, tudo
indica que o capitão está buscando exercer um pouco de comando sobre o leme
descontrolado da economia. A viagem internacional dos últimos dias é um bom
exemplo dessa possível mudança de rota. Aquele país que fora demonizado durante
toda a campanha eleitoral, e mesmo ao longo dos primeiros meses de governo,
agora recebe tratamento diferenciado. Até anteontem, a China era acusada de
todos os males pelos bolsominions e os governos anteriores foram
responsabilizados pela “desgraça de entregar a nossa economia aos comunistas”.
Em março do ano passado, Bolsonaro chegou mesmo a realizar um périplo pelo
Oriente e foi até Taiwan, em uma clara provocação ao governo de Pequim.
De traição em traição
Por aqueles tempos não tão
distantes assim, sua frase de efeito mais famosa para justificar a
estigmatização do principal parceiro comercial do Brasil era que “a China não
está comprando no Brasil, está comprando o Brasil”. No entanto, nada como uma
crise política combinada com a continuidade da recessão para jogar umas pitadas
de realismo pragmático nesse caldeirão do radicalismo programático
bolsonarista. Pois agora, o presidente é só elogios para o regime chinês depois
dessa nova viagem à Ásia. Para desespero dos agrupamentos mais autênticos
nessas loucuras da extrema direita, Bolsonaro firmou negócios, estreitou
relações diplomáticas e comerciais e ofereceu mundos e fundos aos chineses em
troca de promessas de investimentos do trilionário fundo de aplicações
estrangeiras do país comunista. Quem te viu, quem te vê.
Em outro front da diplomacia, o
pai do ex-futuro ocupante da embaixada brasileira em Washington, mandou um
outro tremendo “esqueçam o que falei”. Depois de ter anunciado a meio mundo que
seu governo iria reconhecer Jerusalém como a capital de Israel, o capitão
começou a sentir as dificuldades de governar apenas para o pequeno círculo dos
influenciados por seu guru, Olavo Carvalho. O jogo real da diplomacia
revelou-se a Bolsonaro um pouco mais complexo do que as singelas jogadas
irresponsáveis em um tabuleiro de War. Os setores exportadores brasileiros
começaram a perceber as quedas em suas encomendas oriundas da parte dos países
árabes. Bingo – nenhuma surpresa para quem conhece um mínimo de relações
econômicas internacionais.
E aqui Bolsonaro deu outro cavalo
de pau em suas promessas de campanha. Talvez desapontado por ter sido largado
falando sozinho pela diplomacia de Trump em sua pretensão de ocupar uma vaga na
OCDE, o presidente brasileiro se aproximou de um grupo de nações nada amigas de
Israel e que são importantes compradoras de nossas “commodities”, em particular
de nossa produção de carnes. As consequências de tal traição em termos da
política interna e do jogo de forças em sua base aliada não deverão tardar
muito a aparecer no debate acirrado entre os “autênticos” e os “vendidos”.
Mas talvez uma das mudanças mais
marcantes do Presidente, que ainda nem completou um ano de mandato, seja no
quesito da sua forma de se relacionar com o parlamento e com as instituições
políticas de forma geral. Depois de martelar durante muito tempo na tecla da
necessidade de uma “nova forma de fazer política”, Bolsonaro acaba tendo de
recorrer ao velho e conhecido modo de conquistar maioria no Congresso Nacional
e de buscar apoio para seu projeto de governo.
Uma das razões que o levaram ao
segundo turno no pleito de 2018, chegando à frente de candidatos como Meirelles
e Alckmin no campo conservador, foi justamente o bombardeio exercido contra a
forma clientelista e fisiológica de se relacionar politicamente. Apesar de ter
conseguido eleger uma bancada expressiva do PSL na Câmara dos Deputados, a
realidade da dinâmica político-partidária logo se impôs. Para conseguir
governar, Bolsonaro cada vez mais vai se inspirando nos modelos que tanto
combateu da “velha forma de fazer política”.
Ao que tudo indica, não bastaram
os escândalos de Queiroz, as denúncias contra os esquemas milicianos envolvendo
seus filhos, as comprovações de tramoias com uso de recurso público para a
família e as suspeitas da prática generalizada das chamadas “rachadinhas”. A
partir de um certo momento, Bolsonaro começa a romper com seus princípios de
purismo ideológico e se aproxima de setores bastante conhecidos do
fisiologismo. Como é dada como certa alguma recomposição ministerial para o
horizonte próximo, essa operação deve confirmar, mais uma vez, a prática do
estelionato eleitoral.
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