Exumação do líder do regime
brutal que dominou a Espanha por 36 anos é um ato simbólico potente. Não
tornará fascistas em democratas, mas é um ponto de partida para a cura de
feridas do passado, opina Cristina Burack.
Só agora, 44 anos após sua morte,
Francisco Franco, líder de longa data da Espanha, está finalmente recebendo o
reconhecimento nacional que merece: como general responsável pelo primeiro
ataque aéreo intencional contra civis, em Guernica (com a ajuda da Luftwaffe de
seu amigo Adolf Hitler), durante a brutal e sangrenta guerra civil de
1936-1939.
Como um carrasco que mandou
sistematicamente executar centenas de milhares de seus opositores, no que o
conceituado historiador Paul Preston denominou "o Holocausto
espanhol". Como um ditador que esmagou a democracia no país durante os 36
anos de seu regime.
A exumação de Franco era mais do
que urgente, num país que nunca fechou contas publicamente com seu passado
autoritário. Francamente, é vergonhoso que tenha sido necessário tanto tempo
para remover os restos mortais do tirano do mausoléu encimado por uma
gigantesca cruz, no Vale dos Caídos, dominando as colinas das cercanias de
Madrid.
Construído pelo desejo de Franco,
em grande parte por trabalhadores forçados, para supostamente honrar os
tombados durante a guerra civil, há muito o sítio se transformou em local de
reunião para apoiantes do fascismo e da extrema direita. Não se trata, em
absoluto, do local de reconciliação nacional que Franco alegara que seria, e que
hoje em dia alguns políticos conservadores ainda afirmam ser.
O mausoléu tem sido apenas um
doloroso insulto para os espanhóis cujos familiares (incluindo alguns dos meus)
foram perseguidos por pensar diferente, falar livremente e combater as forças
nacional-católicas de Franco, respaldadas pelo partido fascista espanhol. Em
muitos casos, esses opositores foram sumariamente fuzilados e despejados em
valas comuns, anónimos. Dezenas de milhares deles foram posteriormente
desenterrados e sepultados no monumento.
No entanto, a exumação do ditador
tem sido altamente controversa. Uma sondagem conduzida pelo jornal
espanhol El Mundo constatou que um terço dos cidadãos se opunha ao
traslado dos restos mortais. Os descendentes de Franco tentaram repetidamente
sustar a remoção nos tribunais; e políticos conservadores afirmam que
desenterrar o passado abrirá novas feridas.
Esse argumento é um legado da
transição democrática na Espanha, após a morte de Franco, em 1975: seus adeptos
e opositores acordaram sobre o assim chamado Pacto do Esquecimento, que incluía
a amnistia política geral para os autores de crimes em massa. Era uma tentativa
de olhar adiante, para o futuro.
Enquanto a transição do país para
a democracia foi louvada por todo o mundo, o resultado de longo prazo do pacto
foi entrincheirar uma profunda divisão social que tornou aceitável a simpatia
autoritária. Há tempo demasiado, a Espanha tem sido um lugar onde o feixe de
flechas da Falange ainda é visto em fachadas.
Um país onde cidadãos não se
acanham de içar em suas varandas a bandeira nacional franquista; onde ruas são
batizadas Calle del Generalisimo; e onde existe uma fundação para honrar sua
memória e supostas conquistas. Tal aceitação pública de demonstrações
autoritárias é inimaginável na Alemanha, mas na sociedade espanhola jamais
houve consenso real sobre a condenação da ditadura franquista.
Embora um governo socialista
anterior tenha aprovado em 2007 uma medida reconhecendo oficialmente as vítimas
de Franco e condenando sua ditadura, o mausoléu do Vale dos Caídos é o maior
símbolo da Espanha de – no melhor dos casos – ambivalência em relação ao regime
não democrático, e – no pior – de adoração de um ditador.
A exumação de Francisco Franco é
mais do que abrir sua sepultura e transferir os restos para um local discreto e
privado: ela encerra um capítulo da glorificação dele e marca um ponto de
virada na memória histórica nacional da Espanha.
Claro que a iniciativa não
converterá adeptos de ditadores em democratas, da noite para o dia. Prova disso
são os protestos planeados – e em seguida proibidos – para durante o processo
de remoção. Porém a exumação finalmente coloca a Espanha num ponto em que ela
rejeita o legado franquista oficialmente, inteiramente, alterando de forma
fundamental o quadro histórico do país e fornecendo um ponto de partida para as
divisões sociais começarem a sarar.
Não será um processo bonito –
criar consenso histórico em sombrias eras de divisionismo nunca é. Mas é um
processo necessário, um de que a Espanha precisa há muito. Finalmente acabou o
tempo de Franco.
Cristina Burack | Deutsche Welle
| opinião
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