“Fala-se muito da hipótese de a
China enviar tropas para Hong Kong, mas Pequim não é assim tão estúpida”
É uma das todas poderosas da
política de Hong Kong, e do partido pró-Pequim, que serve de apoio ao Governo
de Carrie Lam. Regina Ip foi a primeira mulher a desempenhar cargos ao mais
alto nível no Governo da RAEHK, como secretária da Segurança.
Em entrevista ao
PONTO FINAL (Macau), fala de uma conspiração orquestrada pelos manifestantes
para obrigar Pequim a entrar na cidade, e assim os que protestam poderem
argumentar que são vítimas de uma repressão sangrenta como a que aconteceu em
Tiananmen, em 1989. Ip não acredita que isso vá acontecer. Pelo caminho, refere
várias vezes que Hong Kong não é a China. “Continuo a dizer, não nos confundam
com a China interior”.
Regina Ip Lau Suk-yee tem quase
70 anos, mas a energia e a determinação que põe em cada palavra não o revela.
Esta mulher já foi quase tudo na vida política de Hong Kong, e tem sido
apontada como uma possível sucessora de Carrie Lam, caso haja a decisão de esta
ter de abandonar a liderança do Executivo. O nome assusta algumas pessoas do
campo democrata, que afirmam que o nome de Ip traria ainda mais pessoas para as
ruas por medo de um reforço de iniciativas legislativas para reforçar a
segurança. Aliás, a mulher que fundou e actualmente lidera o “New People´s
Party”, foi secretária da Segurança, entre 1998 e 2003. Nesse ano, demitiu-se
depois de ter tentado passar a lei de Segurança Nacional, uma norma que
criminalizaria a sedição e a traição à pátria. Uma contestação popular
fortíssima inviabilizou a iniciativa. Em entrevista ao PONTO FINAL, Regina Ip
revela o que, na sua opinião, correu mal em Hong Kong, e fala de uma geração
perdida na relação com a história e cultura chinesas. Aponta a falta de
referenciais, quer na escola, quer em outras dimensões da vida em sociedade,
como as responsáveis do fenómeno. E conclui que houve “lavagem cerebral”
anti-China, na Internet e nas salas de aulas, a este grupo de jovens. Em
relação à gestão da crise, apesar das críticas a Lam, diz que o Governo já foi
tão longe quanto podia ir no campo negocial, e não põe de lado o endurecimento
de medidas de repressão se a violência continuar nas ruas. Em relação a 2047,
percebe o pânico que possa gerar a algumas pessoas em Hong Kong, mas alerta que
“as preocupações dos jovens não vão diminuir se destruírem lojas, e baterem em
pessoas inocentes que discordem deles. Essa não é a solução”.
O que correu mal em Hong Kong
para que, 22 anos após a transferência de soberania, tenhamos uma sociedade
mais polarizada do que nunca?
Um conjunto de coisas correram
mal. Não só em termos da estrutura do Governo, mas também das políticas do
Executivo. Estas duas dimensões da vida de Hong Kong pararam na era pré-1997. O
mundo mudou radicalmente com a globalização, o avanço da tecnologia, e o crescimento
da economia na China interior. Mas a maneira do Governo de actuar e as
políticas mantiveram-se muito conservadoras, e, portanto, ineficazes para
acolher as mudanças que aconteceram. Por exemplo, o Governo não desenvolveu
medidas efectivas que conseguissem lidar com a crise aguda que vivemos de
terrenos e de habitação. O preço das casas em Hong Kong é muito caro, temos
praticamente os valores mais altos do mundo. É uma situação difícil para os
mais jovens, uma vez que até para alugar uma pequena casa se torna complicado.
Temos um número muito grande de pessoas à espera de ter acesso a habitação
pública. Há 200 mil pessoas a viver em cubículos subdivididos, em condições
muito degradantes. E em termos globais, nós temos o coeficiente de Gini mais desigual
entre as economias desenvolvidas. Os jovens sentem-se frustrados, porque há
menos mobilidade social para eles do que para a minha geração, quando a
economia de Hong Kong crescia a grande velocidade. Portanto, há uma vasta
paleta de assuntos…
Mas está apenas a mencionar
questões económicas, foi apenas a economia que falhou ou há outras questões que
contribuíram para a crise que a cidade está a viver?
Há outras questões. Há aspectos
políticos, mas repare que isso não se resume à luta pelo sufrágio universal.
Essa é apenas uma dimensão da questão. Há outras ainda mais fortes, como a
falta de identificação dos mais jovens com a China, que é a nossa pátria-mãe.
Vemos jovens a agitar bandeiras norte-americanas, ou bandeiras do Reino Unido,
e com aspirações de autonomia, mas querem transformar Hong Kong em quê? Não
sabemos, mas definitivamente há um sentimento de perda. Um sentimento de falta
de rumo, e problemas de identidade na geração mais nova.
Em 2008, o número de cidadãos de
Hong Kong que se consideravam chineses alcançou uma marca histórica durante os
Jogos Olímpicos de Pequim. Mas, recentemente, em Junho de 2019, pouco antes do
início dos protestos, uma sondagem da Universidade de Hong Kong revelou que 71%
dos entrevistados não se sentiam chineses. Apenas 27% dos inquiridos revelaram
ter um sentimento patriótico em relação a Pequim. E essa percentagem na faixa
etária abaixo de 29 anos é ainda menor. O que aconteceu?
A identificação com a China era
de facto muito alta, em 2008, em parte devido aos Jogos Olímpicos de Pequim,
mas também pelo terramoto em Sichuan. A China nessa altura demonstrou a sua
capacidade para lidar com uma tragédia. Vimos isso na televisão, através das
imagens dos soldados arriscando as suas vidas para irem para as zonas montanhosas
e a salvarem as vítimas do terramoto. Todos nós ficámos muito comovidos. Em
2008, houve a crise financeira global e a China salvou-nos, evitando que
caíssemos como o resto do mundo em recessão. A China lançou a sua versão do
“quantitive easing” [uma política monetária através da qual um banco central
compra quantias pré-determinadas de títulos do Governo ou outros activos
financeiros para injectar liquidez directamente na economia]. Pequim gastou
triliões de dólares para manter a nossa economia à tona. Então, o que correu
mal? Uma série de coisas. Em primeiro, as nossas escolas. Os currículos
perderam o pendor que tinham em ensinar a história da China, e a cultura da
China. Estes jovens, um grande número deles pelo menos, incluindo os que agora
estão envolvidos em actos de violência, não têm nenhuma ligação àquilo que é
ser chinês. Apenas 50 mil alunos em Hong Kong estudaram história chinesa, e
apenas dois mil estudaram cultura chinesa. E menos de cinco mil estudaram a
história da sua ascendência. Se não sabemos aquilo que é a história do nosso
país, o património cultural, como é que podemos construir uma identidade? E é
muito provável que nas salas de aula e na internet eles tenham sido expostos a
muitas histórias negativas sobre a China.
Acha que essas histórias na
Internet são todas falsas?
Acho que a juventude foi alvo de
uma lavagem cerebral. Se temos professores que nos ensinam que a história
moderna da China é uma história da supressão dos mais fracos, como os
tibetanos, ou que os chineses são todos rudes e incultos, a partir daí, a
imagem que se tem dos chineses vai piorar. E, por isso, há muitos jovens que
não querem ser chineses, sem ter em consideração que esses problemas são
típicos dos países desenvolvidos e não são exclusivos da China e do seu
desenvolvimento tecnológico. Por exemplo, há também capacidade de tirar 700
milhões de pessoas da pobreza… Eu penso que há evidências que mostram que
alguns professores não deram uma imagem equilibrada do que é a China moderna
aos seus alunos.
Olhando para trás, não acha que
foi um erro o Governo não ceder quando dois milhões de pessoas saíram às ruas
de Hong Kong para pedir a retirada da lei de extradição?
Não acho que tenha sido um erro.
Se o Governo desistisse logo, isso criaria um precedente muito perigoso sempre
que houvesse uma manifestação massiva. As pessoas iam continuar a mobilizar-se,
iam fazer tudo para continuar— fosse através da Internet ou de outras formas —
a coagir o Governo a aceitar as suas exigências. Isso é muito perigoso do ponto
de vista de um Governo.
Mas nessa altura pelo menos era
apenas uma exigência, agora são cinco reivindicações…
As outras não são aceitáveis. Na
realidade, o Governo até já acolheu duas das cinco exigências dos
manifestantes. A Chefe do Executivo já anunciou a retirada da lei de
extradição, o que devia ter acontecido há dois dias. Mas devido aos incidentes
causados pelos meus colegas pan-democráticos, a reunião teve de terminar. Para
as queixas em relação à polícia, já temos um Conselho Independente de Queixas
Policiais. E a Chefe do Executivo tem mão nesse conselho de forma a nomear um
painel de especialistas independente que gira as queixas contra a Polícia. A
terceira exigência dos manifestantes que passa por não acusar as pessoas
envolvidas nos motins, é contra o Estado de Direito. As pessoas que não cumprem
a lei devem ser formalmente acusadas, e não há nada que a Chefe do Executivo
possa fazer. Isso é feito tendo por base provas. Portanto, a palavra da líder
do Governo neste caso não é relevante. É uma questão de Direito. E a quarta
reivindicação é uma amnistia para os já condenados, o que é contra a lei. A
Chefe do Executivo não tem poder para garantir essa amnistia. E a última, o
sufrágio universal, temos de tratar desse assunto tendo por sustentação a Lei
Básica. Mais uma vez, é algo que Carrie Lam não pode fazer sozinha. Qualquer
proposta de reforma constitucional, temos de ter uma votação de dois terços no
LegCo. Penso, portanto, que o Governo foi tão longe quanto pode ir. Não pode
ceder à pressão quando se tem um número vasto de pessoas nas ruas. Imagine que
as pessoas vinham para a rua e nos pediam para discriminar as pessoas que têm
diferentes orientações sexuais. Devemos fazer isso? Penso que não. Quando as
pessoas fazem coisas fora da normalidade, coisas preconceituosas, ou baseadas
no ódio, penso que não devemos segui-los só por causa do número que sai para
protestar.
Nas ruas, ouvimos os
manifestantes a falar sobre a falta de liberdade na China, a falta de confiança
no sistema judicial, e o medo do processo de aculturação. Como é que se pode
combater esse sentimento? É possível?
Claro que é possível. Hong Kong é
Hong Kong. O estado das liberdades na China é diferente do estado das
liberdades em Hong Kong. Os nossos direitos e liberdades estão completamente
protegidos pela Lei Básica. Os dois tratados-chave de protecção dos Direitos
Humanos — o pacto internacional dos direitos políticos e cívicos e o pacto
internacional dos direitos culturais e económicos — tudo isso faz parte da
nossa Lei Básica. Ela confirma que estes tratados se vão continuar a aplicar.
Vou dar um exemplo: a comemoração do 4 de Junho, com vigílias de velas,
continuam a ter lugar em Hong Kong, todos os anos. É a única parte da China em
que isso acontece além de Taiwan [em Macau, a cerimónia de evocação dos
acontecimentos na Praça de Tiananmen também se realiza anualmente]. As pessoas
podem manifestar-se logo que não ponham em causa os direitos dos outros. No
último ano, a Polícia permitiu a realização de mais de dez mil eventos públicos
e manifestações nesta cidade. E há canais para recorrer, reexames às decisões
policiais, por isso os direitos humanos, as liberdades, e o Estado de Direito
estão bem protegidos em Hong Kong. Não se pode confundir a nossa posição com a
da China. Nós não estamos a falar da China, estamos a falar de Hong Kong.
Mesmo que o Governo ganhe este
braço de ferro e politicamente tenha uma vitória, não teme que haja uma fuga
maciça de jovens de Hong Kong? Na sua opinião, que consequências isso terá?
Alguns dos manifestantes que
vemos nas ruas ao pé dos consulados dos EUA e do Reino Unido a carregar
bandeiras desses países, não vão conseguir passaportes estrangeiros. Todos
esses países escolhem as pessoas que querem a dedo, que têm de ter as capacidades
que eles querem. Mas Hong Kong tem uma história de pessoas que emigram e
voltam. Já vimos isso antes de 1997, por parte de vários segmentos
profissionais. Na altura foi motivado pela incerteza, e pode voltar a
acontecer, mas as pessoas voltaram. O mesmo se passa com a fuga de capitais de
Hong Kong, que depois voltam. Somos um mercado aberto, não estou preocupada.
Portanto, acha que é uma
possibilidade, mas não tem medo?
Sim, as pessoas podem sair. Mas
muitas delas depois de viverem no estrangeiro decidem voltar. Repare, para os
mais novos é muito complicado emigrar a menos que tenham as competências e as
qualificações profissionais que os países estrangeiros querem.
Chegamos ao ponto de ver jovens
em Hong Kong a queimar bandeiras da China, danificando os símbolos do país e
proferindo declarações de ódio. Como é que esses jovens se podem reconciliar
com a China?
Isso é algo que vai demorar muito
tempo. Penso que o que alguns deles fizeram no último dia nacional [da
República Popular da China] — de dia 30 de Setembro a 2 de Outubro temos um
longo período de feriados — foram manifestações e acções deliberadas para
provocar a China a enviar tropas para Hong Kong. Na minha opinião, a destruição
de bandeiras da China e de símbolos chineses foram acções deliberadas de provocação.
Acha que os manifestantes querem
que o Exército Popular de Libertação entre em Hong Kong?
As pessoas que organizam os
protestos querem que o exército Chinês entre em Hong Kong, para poderem acusar
a China de fazer outra repressão sangrenta em Hong Kong tal como aconteceu em
Pequim, a 4 de Junho [de 1989], em Tiananmen. Fala-se muito da hipótese de a
China enviar tropas para Hong Kong, mas Pequim não é assim tão estúpida. Não
acho que o faça. Eles ainda confiam em nós para resolver a crise, com o uso da
nossa força legal.
Então, acha que não é sequer uma
possibilidade?
Possível é, legalmente. Mas não
penso que o façam. Isso é claramente o que estas pessoas querem, e por isso
estão a provocar a China.
Portanto, não acha que seja
desejável a entrada de tropas chinesas no território?
Não acho que seja provável. Sobre
o que é que são estes protestos? Ao início, eram sobre a lei de extradição. Em
2003, era secretária da Segurança e lancei a lei de Segurança Nacional, e fomos
confrontados com manifestações massivas. Depois de o meu chefe, Tung Chee- Hwa,
anunciar o adiamento da lei — ele nem sequer a retirou formalmente — apenas
disse que a ia adiar, e as multidões dispersaram. Todos foram para casa, e a
incerteza desapareceu. Mas desta vez é diferente. Depois de o Governo ter
anunciado o adiamento, os manifestantes continuaram nas ruas, e ficaram cada
vez mais violentos, e começaram a ter uma atitude anti-China e um carácter
subversivo. As pessoas estão a desacreditar a Polícia e o Governo, e há
adolescentes nos Novos Territórios, em Ma On Shan, que criaram um governo
provisório. Pode-se dizer que é apenas uma piada destes jovens, mas tudo isto
assume um cariz muito perigoso. Portanto, isto não é apenas um protesto contra
uma lei maléfica. É algo mais negro ainda. É mais profundo. Acho que há mesmo
uma conspiração.
Há um plano conspirativo?
Sim.
Para fazer o quê?
Para derrubar o Governo, e
provocar Pequim a promover uma repressão sangrenta das manifestações em Hong
Kong.
Agora, vamos falar sobre a gestão
política de toda esta situação: escreveu em 7 de Julho, logo após o assalto ao
LegCo, um texto intitulado: “O desastre da lei extradição no LegCo prova que o
Governo de Hong Kong precisa de uma mudança radical para alterar a maneira como
pensa e age”. Houve falta de liderança política em todo este processo?
Sem dúvida. A máquina de relações
públicas do Governo está estragada. A primeira vez que a Chefe do Executivo
pediu desculpas ao público, ela enviou um comunicado. E tanto os mais altos
representantes do Governo como a Chefe do Executivo apenas agora começaram a
aprender a usar as redes sociais. Actualmente, não se fala com as pessoas
mandando apenas comunicados de imprensa. Esta forma de comunicar está
ultrapassada. Tem de se construir um diálogo, temos de ir à televisão. Há dois
dias, ela começou a fazer directos no Facebook. Mas quatro meses depois dos
protestos começarem, um líder moderno não pode actuar desta forma.
Escreveu também que Carrie Lam
evitou entrevistas com meios de comunicação ocidentais…
Deu muito poucas entrevistas com
os meios de comunicação social estrangeiros. As suas aparições públicas depois
da erupção de todo este processo foram escassas. Por isso, penso que a actuação
do nosso Governo foi muito pobre naquilo que é a comunicação com o grande
público, em mandar as mensagens certas e cativando os media, e usando também as
redes sociais.
Mas foi só a comunicação que
falhou na acção do Governo?
A Chefe do Executivo já admitiu
que o trabalho legislativo foi um falhanço completo, o Governo falhou na
avaliação política que fez de tudo o que aconteceu. Carrie Lam disse isto, e
pediu desculpa.
Carrie Lam faz parte da solução
ou faz parte do problema na situação política de Hong Kong?
Sou membro do gabinete dela, e,
por isso, para mim é inapropriado fazer comentários sobre ela de forma directa.
Embora tenha sido crítica sobre o
Governo, agora em Setembro escreveu outro artigo de opinião em que argumenta
que Carrie Lam fez tudo o que pôde em relação às cinco exigências dos
manifestantes. Acha que não há mais nada a fazer no campo da negociação?
Penso mesmo que o Governo foi tão
longe quanto podia. O que mais podemos oferecer? Não podemos dar uma amnistia.
Se o fizéssemos, íamos contra o Estado de Direito. Isso criaria um precedente
muito perigoso. Ou seja, a mensagem que passaria é a de que quando as pessoas
forem violentas, não são acusadas. Isso é desajustado e injusto para os outros
que estão a ser acusados. Por isso, não podemos fazer isso. Não acho que
possamos fazer mais nada. Mas claro que o Governo deve lançar mais reformas
sociais e económicas radicais para ir ao encontro de muitos dos problemas que
temos na nossa sociedade, como é o caso do estado social. Ou seja, medidas que
contribuam para a redistribuição da riqueza. Não podemos apenas acreditar no
mercado livre e no capitalismo. Actualmente, as pessoas não falam apenas disso,
elas estão a conversar sobre uma forma de capitalismo com mais compaixão para
lidar com as questões relacionadas com o estado social e a polarização. Não
somos um caso único, neste aspecto.
Também já disse que, se a
violência persistir, o Governo não teria outra opção a não ser tomar acções
firmes de acordo com o Estado de Direito. O que quer dizer com “acções firmes”?
O Governo propôs a lei
anti-máscara para evitar que as pessoas tapem as suas caras, particularmente os
mais jovens, porque quando o fazem sentem-se mais livres para cometerem
ilegalidades. Há outras coisas que o Governo pode fazer…
Quais? Bloquear a internet?
(pausa) Não penso que bloquear
‘websites’ seja uma opção, porque isso é muito difícil tecnicamente.
Medidas que demonstrem força vão
resolver o problema?
Temos de actuar nos dois
sentidos. Temos de reforçar as leis criminais e as acções contra as pessoas que
violam a lei. E, ao mesmo tempo, temos de reforçar a comunicação com a
população.
A implementação de mais medidas
de força não comprometerá definitivamente o princípio “Um País, Dois Sistemas”?
Essas medidas, se estivermos a
lidar com ofensas, de acordo com as nossas próprias leis, estaremos a trabalhar
de acordo com a estrutura de “um país, dois sistemas”. Por isso, não acho
que destrua esse princípio.
Macau é visto por Pequim como o
bom aluno. Quando olha para Macau e vê as diferenças na implementação do
princípio “Um País, Dois Sistemas”, quais são as suas conclusões?
Macau definitivamente fez um
muito melhor percurso do que Hong Kong em cumprir as suas obrigações
constitucionais, como é exemplo a implementação do artigo 23, uma lei que
proíbe ofensas à segurança nacional, como a traição, a sedição e subversão. Nós
falhámos em fazê-lo, depois de 22 anos, e as pessoas de Hong Kong continuam a
pedir a Pequim que nos dê mais poder para as pessoas, e mais sufrágio universal
nas eleições. Mas não fizemos a nossa parte do acordo. Não cumprimos as nossas
obrigações constitucionais para com o país, se tivéssemos leis que
criminalizassem a subversão, talvez os que querem que o Governo e a Polícia
sejam desacreditados, não fossem encorajados a fazê-lo. Porque se se tentar
fazer e o Governo cair, isso é subversão. Não temos leis para isto, há um vácuo
legal. E mais, se alguém quiser promover Hong Kong para que seja uma entidade
política separada, e não lhe chamar independência, chamar-lhe autodeterminação
democrática, o que se seguirá? Queremos mesmo criar uma República de Hong Kong?
Isso é sedição, e nós não temos leis que o criminalizem.
Foi secretária para a Segurança
de Hong Kong, como avalia o trabalho policial feito até agora?
Penso que têm trabalhado muito, e
que globalmente estão a lidar com uma situação muito difícil de forma corajosa
e competente. Nasci em Hong Kong nos anos de 1960, e também tivemos motins
muito violentos. Em 1966, houve quatro dias de motins violentos em Kowloon, e o
Governo resolveu a questão em quatro dias, juntando a Polícia e o Exército.
Nesse período detiveram 1465 pessoas, e acusaram mais de 300. Fizeram 93 rondas
de disparos com balas reais que mataram uma pessoa. Houve muitos feridos. Neste
momento, a nossa Polícia está nas ruas há quatro meses, e além de algumas
alegações de brutalidade policial, não há vítimas mortais. Apenas alguns
feridos graves dos dois lados: da Polícia e dos manifestantes. Uma manifestante
ficou cega por causa de um disparo da Polícia, mas não houve mortos até agora.
Olhe-se para o caso da Polícia de Londres, em 2011, nos motins de Tottenham, em
cinco dias a Polícia matou cinco pessoas. No cômputo geral, penso que a Polícia
de Hong Kong fez um trabalho notável.
Como é que explica casos como os
das estações de Yuen Long e Prince Edward, que geraram tanta indignação
pública?
A indignação pública foi
sobretudo de pessoas que estiveram envolvidas em conflitos com a Polícia. Em Yuen
Long, vivi lá, entendo bem o que se passou. As pessoas estão insatisfeitas com
o atraso da chegada da Polícia. Isso é algo que, claro, tem de ser revisto.
Nada que tenha a ver com os agentes que estão na linha da frente, mesmo que
alguns comandantes da Polícia pudessem ter feito um trabalho melhor na resposta
aos pedidos de auxílio. O caso de Yuen Long traz duas questões: primeiro, os
residentes ficaram insatisfeitos de a Polícia ter chegado tão tarde para
salvá-los dos ataques aleatórios dos homens vestidos de branco. Isso tem de ser
alterado. Na minha opinião, nesse caso, a estratégia policial podia ser melhor.
Em segundo, há a questão dos homens vestidos de branco que agrediram as pessoas
e foram presos e acusados. Não saberemos bem o que aconteceu até eles serem
levados a tribunal. Já em Prince Edward, em 31 de Agosto, houve muitos rumores.
Penso que o que tivemos nesse caso foi uma conspiração viciosa, para propagar a
ideia de que sete pessoas foram mortas. E as pessoas que estão a espalhar esta
conspiração, continuam a organizar vigílias no exterior daquela estação do MTR,
nas quais insistem que sete pessoas foram mortas. Mas Hong Kong é um sítio com
uma transparência enorme. Se isso tivesse acontecido, onde estão as vítimas? E
as famílias? Porque é que não vieram a público? O mesmo se passou com a
rapariga de 15 anos que foi encontrada a flutuar no rio, e os rumores dos
‘netizens’ de que ela tinha sido assassinada pela Polícia. A mãe dela já veio
dizer que acreditava que a filha se tivesse suicidado. Estamos na era da
Internet, e temos de lidar com muita desinformação deliberada. Penso que é
parte da estratégia, em primeiro lugar para demonizar a Polícia, e depois para
a deslegitimar. Eles sabem que a Polícia é tudo o que temos, se o Governo ficar
sem ela, os amotinadores podem tomar o poder, e Carrie Lam teria de fugir da
cidade, tal como no filme “White House Down”. É um cenário muito
perigoso.
Este Governo está em posição de
implementar esse conselho independente de investigação, depois de deixar à
Polícia a missão de lidar com os protestos quase por conta própria?
Quando os tumultos estiverem
perto de chegar ao fim, e as coisas estiverem mais calmas, o Governo deve sem
dúvida criar um estudo independente para perceber o que aconteceu de errado, e
averiguar a forma como o Executivo lidou com a crise, e o que levou as coisas
a evoluírem até este ponto. Foi assim que o Governo britânico fez nos
anos de 1960, em Hong Kong. Não devemos querer essa comissão apenas para culpar
pessoas, e apontar dedos. Não devemos fomentar uma cultura de ódio. Se queremos
trabalhar para a reconciliação, não devemos promover este tipo de cultura. A
Polícia fez o que fez, cumprindo as suas obrigações. Se eles tiveram um
comportamento desajustado, devem enfrentar a disciplina da corporação e até
acusações criminais. Durante o “Occupy Central”, oito polícias foram acusados,
condenados e enviados para a prisão. Temos um sistema justo.
Não acha que o episódio da NBA dá
razão aos que, em Hong Kong, temem que uma presença crescente na China limite a
liberdade de expressão com a qual têm vivido nas últimas décadas?
O episódio da NBA apenas tem a
ver com as equipas de basquetebol norte-americanas que são televisionadas na
China. Não tem nada a ver com Hong Kong.
Mas não acha que mostra como a
China lida com a liberdade de expressão?
A China é muito diferente de nós,
e Hong Kong é muito diferente da China. Os direitos e as liberdades são
totalmente protegidos em Hong Kong. É diferente do que acontece na China.
Continuo a dizer aos meus interlocutores, não nos confundam com a China
Interior. “Um país, dois sistemas” é sobre os nossos dois sistemas de Estado de
Direito. Nós não penalizamos a NBA.
Mas quando a juventude olha para
2047, não acha que têm razões para temer que o que vêem agora se concretize?
Entendo isso. O ano de 2047 é um
problema, mas as preocupações dos jovens não vão diminuir se destruírem lojas,
e baterem em pessoas inocentes que discordem deles. Essa não é a solução.
Qual é a solução?
Se o nosso sistema funcionar bem,
com vantagens para a nação, irá continuar. Se for abusado, e Hong Kong for uma
base de subversão para prejudicar a China, Pequim terá outra visão. Isto é
senso comum.
Publicado em Ponto Final (Macau)
| Texto: João Carlos Malta | Imagens: Eduardo Martins
*Título simplificado por PG
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