Seria de bom-tom que os
portugueses soubessem o que têm a dizer as principais autoridades do Estado
sobre as atrocidades que estão a ser cometidas na Bolívia e no Chile. O
silêncio é a mais indigna das atitudes.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Chefe de Estado e o governo da
República Portuguesa estão em silêncio perante as atrocidades contra a
democracia e os direitos humanos praticadas na Bolívia e no Chile. Em
circunstâncias onde o poder neoliberal se vê forçado a mostrar a sua verdadeira
face ditatorial para evitar a aplicação plena da democracia, com todas as suas
consequências, as principais figuras do Estado português escolhem o silêncio,
talvez a maneira mais indigna de se identificarem com a crueldade do sistema –
ao mesmo tempo que ignoram a Constituição da República.
Na Bolívia, depois do golpe com
todos os velhos ingredientes político-militares, a repressão fascista com
matizes racistas avança através do país e não poupa sequer os senadores eleitos
que constituem a maioria absoluta do Senado. No Chile, a repressão do
pinochetista Sebastián Piñera castiga cruelmente o levantamento popular que
exige uma Constituição democrática e uma vida digna. A tudo isto as principais
figuras do Estado português dizem nada. Respondem com um longo e profundo
silêncio como se não lhes coubesse ter opinião própria e fossem obrigadas a
respeitar o não menos profundo e longo silêncio da União Europeia. Tentemos
decifrar o enigma – que tem, certamente, um eminente significado político.
Todos sabemos o quão loquazes
são, por exemplo, o chefe de Estado e o ministro dos Negócios Estrangeiros.
Essa veia comunicadora que lhes permite ter as palavras certas nos momentos
certos para a comunicação social certa é de tal maneira expressiva e expectável
que nos permite dispor de elementos para compreender os conteúdos dos seus
silêncios sem uma exagerada margem de erro.
Na Bolívia deu-se um golpe de
Estado – ainda há quem tenha pudor em qualificar assim o que está a acontecer –
que derrubou e exilou o presidente eleito com mais de 47% dos votos e o fez
substituir por uma senadora de uma força minoritária no Senado – que teve de
usurpar dois cargos de uma assentada: o de presidente do Senado e o de chefe do
Estado.
Na sequência do processo, que
atropela as mais elementares normas democráticas porque não foi apresentada,
até ao momento, qualquer prova de viciação dos resultados eleitorais, as forças militares e policiais entregam-se a orgias de
violência, especialmente contra as camadas mais desfavorecidas, as comunidades
indígenas dos campos bolivianos, precisamente as que formaram a base
social maioritária que sustentou as administrações progressistas, soberanistas
e anti-neoliberais de Evo Morales.
Uma informação sobre o teor
fascista e selectivo da vaga repressiva, e que talvez possa interessar ao
aparentemente desinformado ministro Santos Silva, decorre do conteúdo do
decreto emanado pela presidente usurpadora, Jeanine Añez, e que no seu artigo
terceiro estipula que «o pessoal das Forças Armadas que participe nas operações
de restauração da ordem e de estabilidade política ficará isento de
responsabilidade criminal quando, no cumprimento das suas funções
constitucionais, actuarem em legítima defesa ou estado de necessidade».
Uma medida de encorajamento ao
tiro livre que tem a sua equivalente jurídica – os golpistas bolivianos
informaram-se da prática de lawfare com quem de direito, por exemplo a corte de
Bolsonaro – na proposta da presidência para constituir «um aparelho especial»
da Procuradoria que permita prender os senadores do Movimento para o Socialismo
(MAS) que promovam «a subversão e a sublevação», ou seja, para meter na cadeia,
no limite, a maioria absoluta do Senado.
Estas pinceladas abreviadas sobre
a situação na Bolívia permitem deduzir que haveria matéria capaz de puxar pela
palavra fácil do chefe de Estado, do ministro dos Negócios Estrangeiros, do
próprio primeiro-ministro.
Correspondência no Chile
As principais figuras do Estado
português permanecem igualmente silenciosas sobre o que se passa no Chile.
E o que se passa no Chile é um
imenso e pacífico levantamento popular, torpedeado por fenómenos de banditismo
accionados para tentar retirar legitimidade à revolta e servir de manobra de
diversão para a comunicação mainstream, contra o sistema de ditadura económica
herdado do regime terrorista de Pinochet.
Sebastián Piñera, presidente em
exercício e admirador confesso de Pinochet, tem recorrido à violência
repressiva e ao manobrismo político para se manter, comportamento em que
arrastou grande parte da oposição num processo que visa estabelecer uma «nova»
Constituição em que o essencial do regime continue inalterado.
Obviamente, também no Chile os
mecanismos democráticos continuam a sofrer maus-tratos. Talvez interesse ao
ministro Santos Silva conhecer a sádica tendência criminosa de Piñera
manifestada através do aparelho repressivo: usa munições de borracha, sim, mas
disparadas contra os olhos dos manifestantes. Os casos de cegueira e outros
problemas de visão daí decorrentes elevam-se a cerca de 230. Muito compatível
com o respeito pelos direitos humanos.
Mutismo quase absoluto
Apesar destas circunstâncias
muito graves, a Presidência da República e o governo de Portugal entendem que
não há razões para se pronunciarem.
É verdade que a União Europeia
também está em silêncio. Será por isso que Lisboa também nada diz?
No entanto, a Constituição
Portuguesa tem particularidades explícitas em matéria de soberania, respeito
pelos direitos dos povos e os direitos humanos que não se encontram em outras
leis fundamentais dos parceiros europeus.
Nada exigiria que o silêncio
comunitário impusesse o silêncio lusitano; pelo contrário, a soberania
portuguesa tal como é estipulada na Constituição exige que as autoridades do
Estado tomem posições por si próprias, sem estarem à espera dos «aliados».
Mas não. Ao que parece continua a
prevalecer o complexo de bom aluno.
É verdade que foi dita uma coisa
sobre a Bolívia: os portugueses «devem evitar qualquer deslocação» a esse país,
aconselhou o portal do Ministério dos Negócios Estrangeiros no dia 11 de Novembro1;
e, no dia 14, uma fonte da Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros fez
notar à agência Lusa que é «muito raro» o Ministério fazer recomendações deste
tipo2 .
Portanto, na óptica ministerial o
caso é grave; transformou-se até numa situação atípica de risco elevado. Mais
uma razão para assumir uma posição política capaz de ajudar a população a
compreender a situação.
Então, das duas uma: ou o
silêncio é cúmplice com as atrocidades que estão a passar-se; ou o governo só
tem margem de manobra, em termos de vínculos internacionais, para saudar a
reimplantação do fascismo neoliberal – preferindo, desta feita, defender-se com
o mutismo.
Talvez porque em situação
anterior optou por pronunciar-se e ficou com um trambolho político nas mãos
chamado Juan Guaidó. O Estado português, a exemplo de várias potências da União
Europeia, mas não a comunidade em si, identificou-se com o golpe na Venezuela
que tinha como objectivo instalar organizações e figuras fascistas no governo.
E fê-lo pondo em risco a situação de centenas e centenas de milhares de
portugueses que vivem na Venezuela, ao contrário do que aconteceu agora com
escassas dezenas que vivem na Bolívia. Que merecem todo o respeito, tornando
procedente a advertência governamental. Uma atenção que, por maioria de razão,
deveria ter estado sempre no espírito do governo em relação à Venezuela.
Deduz-se que o governo de Lisboa
tem consciência de se ter saído muito mal na Venezuela, pelo que tentará agora
evitar catástrofe política idêntica. Tal como em Caracas, identificar-se-á com
a usurpação do poder em La Paz mas acha melhor não dar sinal de si, fingir-se
de morto, a não ser quando puder fazê-lo com a cobertura dos «nossos parceiros
e aliados».
Um pau de dois bicos
O chefe de Estado, por seu lado,
poderia dizer de sua justiça sobre os acontecimentos na Bolívia e no Chile,
porque teve até um contexto internacional em que tal viria a propósito: a visita
oficial a Itália.
Mas não; preferiu glosar o mote
da NATO como entidade «defensiva» e amiga «dos desfavorecidos», como gosta de
dizer o seu anfitrião de ocasião, o presidente italiano. Seguir nesse rumo até
à Bolívia, porém, seria traiçoeiro: ao elogiar a NATO, Marcelo Rebelo de Sousa
fez a apologia da organização que formou operacionalmente os militares
decisivos para o golpe em La Paz e agora têm mãos livres para espalhar o terror
fascista.
Abordar a situação na Bolívia
neste contexto deixaria o presidente mal na fotografia, mesmo sendo reconhecida
a sua habilidade para dar a volta a casos intrincados em termos de comunicação.
O silêncio revelou algum pudor mas agride os princípios em que assenta a
Constituição da República em termos de respeito pela democracia e pela
liberdade dos povos.
Tudo menos o silêncio
Perante o que está a acontecer na
Bolívia e no Chile, os democratas sintonizados com a Constituição da República,
os princípios democráticos, a soberania e o respeito pelas direitos humanos só
podem assumir uma posição: denunciar e condenar o golpe, a repressão e o
manobrismo utilizado para iludir os resultados de eleições legítimas e as
reivindicações populares.
Não existem dúvidas sobre quem
são os agressores e os agredidos, os golpistas e as vítimas, de que lado está a
legitimidade e como se impõe a trafulhice criminosa.
Mas também na Venezuela o cenário
é muito claro, como aliás o fascismo sob o poder na Ucrânia, e o governo não
deixou de dizer de sua justiça – ignorando os princípios democráticos.
Ao assumir agora o silêncio sobre
situações dramáticas que vitimam populações carenciadas, o governo da República
Portuguesa parece ter mudado de táctica na sua estratégia de cumplicidade com
casos de usurpação da democracia.
Na verdade, o que está em causa,
tanto na Bolívia, como no Chile, como na Venezuela é a alternativa entre a
democracia com todas as suas consequências e a ditadura neoliberal.
Não é difícil perceber de que
lado estão o chefe de Estado e o governo da República. O silêncio é apenas uma
defesa tornada recomendável perante o indisfarçável complexo de Guaidó.
Ainda assim seria de bom-tom que
os portugueses soubessem o que têm a dizer realmente as principais autoridades
do Estado sobre as atrocidades à democracia e os direitos humanos que, nos dias
que correm, estão a ser cometidas na Bolívia e no Chile. Porque o silêncio é a
mais indigna das atitudes.
Notas:
1.No
portal do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) pode ler-se: «Dada a
situação de grande instabilidade e distúrbio social que se verifica neste
momento na Bolívia, aconselha-se os cidadão nacionais a evitarem qualquer
deslocação àquele país». Quanto às causas da situação, o MNE português aponta
serem «consequência de movimentos indígenas na Bolívia que promovem
manifestações que podem degenerar em situações de grande violência».
2.Segundo
o JN, as declarações foram emitidas por uma «fonte oficial do gabinete da secretária de Estado das
Comunidades Portuguesas, Berta Nunes».
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