A teoria da política identitária
que o Livre subscreve fecha cada opressão numa cofragem identitária, e, portanto,
abstracta, sem vasos comunicantes, representações por procuração ou
solidariedades.
António Santos | AbrilAbril |
opinião
Escrever é arranjar problemas.
Antecipando os nomes que algumas pessoas me vão chamar (sectário, racista,
homem hétero cis branco, etc. mas sejam imaginativos) quero começar
com uma nota prévia: estou solidário com Joacine Katar Moreira, vítima de uma
infame campanha de ódio racista; repudio os grunhos dos imbecis que a acusam de
fingir a gaguez; não ponho em causa a total legitimidade do seu mandato como
deputada e fico genuinamente feliz por ver mais mulheres negras no parlamento.
O meu problema não é com a Joacine, nem com a sua gaguez nem, muito menos, com
a cor da sua pele ou a sua nacionalidade. O meu problema é com o Livre e é
estritamente político.
A vida política de Rui Tavares
resumia-se, até há um mês, a uma aborrecida sucessão de falhanços oportunistas:
do anarquismo life style a deputado europeu do BE quando estava na
moda ser do BE; do híper-europeísmo muito a piscar o olho ao PS ao comentário
político de académico anti-séptico. Mas, como aqueles empresários que antes de
chegar ao sucesso tiveram de levar seis empresas à falência, Rui Tavares foi
capaz de olhar para o estrangeiro e perceber que, em 2019, o investimento
demagogicamente mais rentável não é o anarquismo, nem a União Europeia, nem a
esquerda nem a direita, nem qualquer ideologia. Nos anos vinte deste século,
deduziu Tavares, as oportunidades gravitarão em torno de dois novos pólos
políticos: o «populismo» e o «identitarismo».
A aposta do barão trepador rendeu
finalmente dividendos políticos. A deputada do Livre monopolizou com estrépito
mediático todo o debate político em torno de «causas fracturantes» como a sua
aflitiva gaguez, a saia do seu assessor, Rafael Esteves Martins, ou uma
bandeira guineense a ondear num comício. Pode-se dizer que a culpa é dos
esqueletos que tínhamos no armário, mas a reencarnação identitária do Livre não
foge aos encargos da agenda identitária: transforma a saia no pretexto para uma
entrevista no programa do Goucha; transforma a gaguez real numa performance
mediática que dispensa ajudas e desperta ódios e paixões e transforma a sua
representação num fim em si mesmo, pelo que dispensa ideologias e propostas
políticas. A política de Joacine é a identidade de Joacine.
Em entrevista ao Expresso, a
Joacine Katar Moreira era ainda mais clara: «Represento as mulheres negras, os
homens negros, as mulheres em situações de empobrecimento, os homens em
situações de empobrecimento, os investigadores com uma vida instável». Ou seja,
Joacine está convencida de que tem um mandato para representar não só as
pessoas que votaram nela, mas, por condão da sua identidade, todos aqueles que
são como ela: negros, gagos, investigadores, etc. Independentemente do que
proponha e vote no parlamento ser indiferente ou mesmo contrário aos interesses
destas pessoas.
Rostos africanos em lugares
palacianos
Os afro-americanos têm, há muito
tempo uma expressão muito feliz: «black faces in high places», qualquer coisa
como «rostos negros em lugares importantes». Nunca, nos EUA, houve tantos
políticos negros a ocupar cargos públicos. Apesar do recorde histórico, estes
políticos negros são politicamente indistinguíveis dos políticos brancos. No
Congresso dos EUA contam-se, entre democratas e republicanos, 43 eleitos
afro-americanos, o maior número de sempre e que tem vindo a subir de eleição
para eleição. O problema é que esta tendência não correspondeu a qualquer
alteração qualitativa no combate ao racismo.
Olhemos para o exemplo de Baltimore,
onde homens e mulheres negras controlam praticamente todo o aparelho político
da cidade, incluindo o executivo da autarquia, a presidência, a assembleia
municipal, a polícia, o sistema escolar e os transportes públicos. Apesar de
tantos rostos negros em posições importantes, a violência racista continua a
ser o dia-a-dia de milhares de negros, que também continuam a ser mais pobres,
a ter menos acesso à educação e a viver em bairros mais degradados.
Quando, em Filadélfia, dois
polícias prenderam um homem negro por estar a beber um café no Starbucks, o
chefe da polícia, também negro, defendeu a acção dos racistas. E quando, num
restaurante de Warsaw, na Carolina do Norte, uma criança negra foi espancada e
quase sufocada até à morte por um polícia, o presidente da câmara, também
negro, defendeu a brutalidade policial.
Os EUA tiveram um presidente
negro, um marco histórico de inegável valor simbólico que, para além do
simbolismo, não beliscou o racismo institucional, sistémico e estrutural.
Então, afinal, por que razão os
criminosos de guerra Colin Powell e Condoleezza Rice não se preocupavam com o
racismo? Por que razão a neoliberal Margaret Thatcher não se preocupava com os
direitos das mulheres? Por que razão o fascista Milo Yiannopoulos, homossexual
assumido, não se preocupa com direitos LGBT?
Dividir para reinar
A teoria da política identitária
que o Livre subscreve fecha cada opressão numa cofragem identitária, e,
portanto, abstracta, sem vasos comunicantes, representações por procuração ou
solidariedades. Para os identitários, por exemplo, a luta «de todas mulheres»
exclui «todos os homens» porque «todos os homens» têm interesse em continuar a
oprimir as mulheres. Por esta lógica, os homens nunca estarão do lado das
mulheres porque quererão sempre que elas continuem a desempenhar mais trabalho
doméstico, por exemplo. Da mesma forma, «todos os negros» estariam condenados a
lutar sozinhos contra o racismo porque «todos os brancos» beneficiam dessa opressão
e só um homossexual poderia representar a causa LGBT porque «todos os
heterossexuais» tiram partido dessa discriminação. Para os identitários, a raiz
do problema não é a infra-estrutura capitalista, mas a infra-estrutura dos
homens brancos heterossexuais, pelo que a solução do problema passa
necessariamente pelo reforço da representação das mulheres, dos negros, dos
gays ou das pessoas com deficiência nos concelhos de administração dos bancos,
nos exércitos imperialistas e nos partidos de direita.
O resultado é a atomização
absoluta das identidades e das causas: cada um de nós teria de escolher se vota
no partido do anti-racismo ou no partido dos reformados; se adere ao partido
dos gays, das mulheres ou ao partido dos trabalhadores; se luta pelos animais
ou pelo serviço nacional de saúde. Consequentemente, cada um de nós estaria
impedido, por «lugar de fala», a pronunciar-se acerca de todas as outras lutas,
atiçando uns oprimidos de um tipo contra oprimidos de outro tipo, numa
competição em que só ganham os poderosos. Nos EUA, por exemplo, tornaram-se
comuns discussões caricatas sobre «quem é mais privilegiado»: uma mulher branca
ou um homem negro? Uma mulher muçulmana e negra ou uma mulher branca com
deficiência e pobre?
Se é verdade que, historicamente,
todas as libertações foram obra da luta dos oprimidos, essa opressão só pode
ser definida rigorosamente a partir dos interesses dos oprimidos e não a partir
de identidades abstractas. Ao contrário do que dizem os identitários, a
exploração dos imigrantes só serve para baixar os salários de todos os
trabalhadores; a discriminação salarial das mulheres exerce uma pressão
descendente sobre o salário dos homens e o racismo e a homofobia são usados
para dividir pessoas que comungam dos mesmos interesses. Estes interesses
atravessam as identidades ao longo da História: a luta das mulheres ao longo
dos últimos duzentos anos fez-se com a solidariedade de muitos homens; a luta
dos negros contra o colonialismo fez-se com a ajuda de soviéticos brancos. A
universalidade da luta de classes ecoa em todas as lutas: transsexuais,
homossexuais, ciganos, negros, brancos, mulheres, pessoas com deficiência,
imigrantes.
Guerra às elites, paz à ralé
É esse o apelo e a utilidade do
comunismo enquanto poderosa união de todos os explorados contra todas as
opressões. É por isso também que uma trabalhadora das limpezas negra tem mais
em comum com uma colega branca do que com Joacine Katar Moreira, que acha que
quem escreve a história são as «elites empáticas e inteligentes». Não o povo,
não os oprimidos, não os explorados, mas as «elites», que o dicionário define
como a «minoria social que se considera prestigiosa e que por isso detém algum
poder e influência». As «elites» de Joacine, quer sejam brancas ou negras, não
têm interesse material no derrube das estruturas racistas; da mesma forma que
as mulheres que exploram outras mulheres não têm interesse material na
igualdade salarial.
Caras negras em lugares importantes
podem servir apenas para desviar a discussão sobre o racismo estrutural,
institucional e histórico, para uma questão de símbolos e elites. O sistema
capitalista é capaz de absorver mulheres, gays e negros para as tais «elites»
por que suspira Joacine sem que nada de essencial se altere. Na verdade, para
os opressores pode até ser politicamente conveniente ter oprimidos a
representá-los.
Essa é a realidade da identidade
de Joacine: ela representa as elites e assume-o. Foi nos bairros dos ricos
(Lapa, Campo de Ourique, Paço de Arcos, Cascais) que Joacine somou mais votos,
não foi nos bairros dos negros pobres; e foram também os académicos, os
intelectuais, os professores, as elites, que em sua defesa fizeram um
abaixo-assinado em que não entram pés-rapados.
Da mesma forma, Rafael Esteves
Martins, o assessor de Joacine e do Goucha, hoje diz que os conceitos de
esquerda e direita estão ultrapassados. O que não está ultrapassado é o
conceito de «negro» e de «branco», suponho. Conciliar explorados com
exploradores, dividindo os explorados; eis é a velha consigna do capitalismo,
da direita e da reacção. E é por isso que todos os dias são 25 de Novembro na
«agenda identitária» do Livre.
Na imagem: Rui Tavares e Joacine
Katar Moreira entre militantes do Livre durante a manifestação comemorativa dos
45 anos da Revolução de 25 de Abril, na avenida da Liberdade, em Lisboa, 25 de
abril de 2019 CréditosManuel de Almeida / LUSA
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