sábado, 21 de dezembro de 2019

Brasil | A cúpula do Judiciário


Fábio Konder Comparato*

Para dizer a verdade, o nosso Supremo Tribunal Federal já nasceu capenga e continua a coxear há mais de um século. Só que agora a claudicância começa a pôr em risco o inteiro funcionamento da máquina estatal. A síndrome do profundo agravamento dessa patologia ocorreu há pouco, quando o “guardião da Constituição”, por apenas um voto de desempate e em duas sessões de julgamento que consumiram horas de discussão, decidiu que a norma fundamental do artigo 5º, inciso LVII, a qual não pode ser revogada nem mesmo mediante emenda constitucional, continua em vigor…

É mais do que hora, pois, de se fazer o diagnóstico patológico e iniciar de imediato o tratamento terapêutico. A diagnose da moléstia, no meu entender, aponta duas causas principais da doença que acomete a nossa mais elevada Corte de Justiça.

A primeira dessas causas surgiu na própria gênese do tribunal, no dealbar do governo dito republicano em nosso país. Assim como o federalismo, a instituição do Supremo Tribunal Federal não passou de um arremedo da Constituição norte-americana. Duas foram as graves consequências dessa macaqueação política.

A primeira delas foi o fato de não se ter levado em mínima conta a diferença fundamental do processo colonizador na América do Norte e no Brasil. Lá, tal processo foi parcelado; de onde a ideia de se juntarem ou reunirem (é o sentido de foederatio em latim) as diferentes colônias em um Estado único. O Brasil, bem ao contrário, desde o Descobrimento até a extinção da monarquia no final do século XIX, sempre foi geopoliticamente unitário.

A consequência óbvia desse simulacro imitativo foi que, até hoje, a colossal desigualdade socioeconômica entre os Estados da federação brasileira (sem falar dos Municípios) cai nas costas da chamada União ou governo central.

A segunda grave consequência dessa grosseira imitação política diz respeito à organização do Poder Judiciário. Creio que nenhum jurista, com um mínimo de conhecimento de direito comparado, ignora a diferença histórica fundamental entre common law e civil law. No primeiro sistema, os órgãos do Judiciário podem criar normas jurídicas, enquanto no segundo eles limitam-se a interpretar o direito escrito, a começar pela Constituição. Ao que parece, o nosso Supremo Tribunal parece hoje inclinado a mudar de sistema.

Acontece que entre nós, a herança cultural lusitana nos levou a criar um direito processual recheado de recursos. Na tradição jurídica europeia-continental, tanto no processo civil quanto no penal, os litigantes dispõem de duas instâncias recurso, sendo que modernamente alguns países criaram uma Corte de Justiça superior, com competência unicamente para julgar a constitucionalidade da decisão final, em segunda instância.

Entre nós, por força da tradição processual lusitana, acabamos criando nada menos do que quatro instâncias processuais: a primeira, do juiz de direito singular; a segunda, do tribunal de apelação, estadual ou federal; a terceira, do Superior Tribunal de Justiça; e finalmente a última, do Supremo Tribunal Federal.

Este, segundo a Constituição Federal, processa e julga originariamente nada menos do que 16 (dezesseis) tipo de ações; julga em recurso ordinário o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção, decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão, além do crime político; e, finalmente, em recurso extraordinário, três espécies de julgados considerados inconstitucionais, além de decisões que julgam válida lei local contestada em face de lei federal.

Em 2013, a Deputada Luiza Erundina apresentou na Câmara a Proposta de Emenda Constitucional nº 275, por mim redigida, cujo objeto foi a reorganização do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, com drástica redução da competência recursal do STF. Hoje, penso que tal PEC poderia ser modificada, com a supressão de toda competência recursal do Supremo Tribunal.

Ademais, a citada Proposta reorganiza completamente a composição do STF. Embora os atuais Ministros permaneçam em função até a sua aposentadoria, os integrantes do Tribunal passarão a ser escolhidos pelo Congresso Nacional, e não pelo Presidente da República, a partir de listas tríplices de candidatos pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil.

Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra

*em Carta Maior

*Publicado originalmente em A Terra é Redonda

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