Joana Mortágua | Jornal i | opinião
Não, este não é um Orçamento de
continuidade. Porquê? Porque o Orçamento do Estado para 2020 foi desenhado sem
espaço para acolher ou negociar propostas da esquerda e realinhou totalmente
pela obsessão do superávite.
“0,2% de superávite”, é isso que
o Governo acha que o país quer ouvir. Mário Centeno deixou claro que este é um
Orçamento feito à medida do número à direita da vírgula e não das necessidades
do país. O economista Ricardo Cabral chamou-lhe uma irracionalidade económica,
e com razão. Mas os erros do Governo minoritário do Partido Socialista são
também políticos.
O primeiro é achar que o país não
nota que se está a descontinuar o caminho de recuperação de rendimentos de uma
população que só agora começou a sentir que saiu da crise. Durante quatro anos
houve Orçamentos com medidas socialmente eficazes, tanto na extinção dos cortes
da troika como em políticas diretas ou indiretas de aumento de salários e
pensões. Recordemos exemplos como a tarifa social da energia, manuais escolares
gratuitos, diminuição das propinas, aumento do salário mínimo e de pensões,
revisão das tabelas do IRS, diminuição do IVA em algumas atividades e redução
histórica do preço dos passes sociais.
A continuidade natural desse
caminho seria o englobamento de rendimentos para um regime fiscal mais justo,
como o Bloco propôs e o PS chegou a incluir no seu programa, embora em termos
diferentes. Mas, neste Orçamento, nem sinal dessa proposta ou de qualquer
alívio fiscal generalizado sobre o trabalho. É um recuo sem razão aparente,
talvez para promover um encontro com o PSD a meio do caminho.
Em vez disso, surgiu uma proposta
de eficácia muito duvidosa de desconto fiscal para os mais jovens, como se
grande parte deles não estivesse isento por receber pouco acima do salário
mínimo; e outra que disfarça de incentivo à demografia a pouca vontade de abrir
os cordões à bolsa. As duas juntas não valerão mais do que 50 milhões, pouco
menos do que o valor previsto para os aumentos de 0,3% para a administração
pública.
Continuidade seria ver já neste
Orçamento o investimento de que a escola pública precisa, vislumbres das
soluções para os problemas da falta de professores e funcionários ou obras de
requalificação e remoção de amianto. Ou ver o reflexo orçamental das promessas
eleitorais do PS sobre os programas de apoio à habitação.
Em vez disso, o aumento de 1,5%
no orçamento da educação vale pouco menos do que 100 milhões, sem medidas
concretas. E o que está previsto para a habitação não é um bom começo para a
tal promessa de erradicar as carências habitacionais até 2024.
Há, claro, algumas medidas de
continuidade ou que, tendo sido aprovadas durante o final da anterior
legislatura, só entram em vigor com o OE 2020. Mas de fora ficam quaisquer
garantias sobre a descida do IVA da energia num dos países europeus em que a
pobreza energética mais mata. E qualquer vontade política para retirar da
legislação laboral as regras da troika ou para melhorar a vida daqueles que
trabalham em condições mais duras, como os trabalhadores por turnos.
Não, este não é um Orçamento de
continuidade. Porquê? Porque o Orçamento do Estado para 2020 foi desenhado sem
espaço para acolher ou negociar propostas da esquerda e realinhou totalmente
pela obsessão do superávite. É um hegemonismo típico de uma maioria absoluta
que o PS não tem. Esse é o segundo erro político do Governo minoritário de
António Costa: achar que pode dispensar as negociações mas contar com os votos.
Há poucas desculpas. Um excedente
orçamental de 500 milhões. Seiscentos milhões para o buraco sem fundo do Novo
Banco. Duzentos milhões para injetar na banca através de ativos por impostos
diferidos (DTA), que convertem benefícios fiscais em injeções diretas caso o
banco tenha prejuízo. São 1300 milhões de respostas para a eterna pergunta “e
onde é que vão buscar o dinheiro?”.
Há dinheiro, mas não há vontade.
O resultado é um Orçamento que fica abaixo das possibilidades e, sobretudo, das
necessidades do país. Até ver, este é o resumo do Orçamento de um Governo sem
maioria a fingir que tem maioria. Põe-se em bicos de pés e ainda por cima não
quer apertos nos calos.
*Deputada do Bloco de Esquerda
Sem comentários:
Enviar um comentário