Ao transformar direitos coletivos
em mercadorias individuais, regime económico desfaz a noção de cidadania
Augusto Jubei Hoshino Rizzo |
Carta Capital | opinião
Em tempos de reformas trabalhista
e previdenciária, privatizações dos bens públicos e precarização do trabalho,
nos quais a mais superficial defesa das instituições públicas é confundida com
socialismo, as disputas narrativas se tornam cada vez mais cruciais para
resistir aos movimentos antidemocráticos que voltaram às ruas e aos governos
por todo o mundo.
Ainda que possa parecer ineficaz,
dada à indisposição de nossos interlocutores em acreditar que as suas desejadas
férias de verão só existem por culpa de um bando de socialistas grevistas, é
necessário reafirmar que os direitos sociais nem sempre existiram e que muito
menos foram presentes dados de bom grado pelas elites às massas de pessoas que
vendem sua força de trabalho para sobreviver.
Os embates travados pelos
movimentos operários do século XIX foram os primeiros passos para democratizar
a relação de emprego, isto é, para afirmar que esta não era uma relação entre
mestre e servo nem um simples contrato firmado entre dois indivíduos privados,
mas uma questão de interesse público que importa a toda a coletividade e que,
por conta disso, depende da norma jurídica para ser regulamentada em patamares
mínimos.
E foram esses processos de lutas
democráticas que transformaram questões até então compreendidas como de
natureza privada – tais quais trabalho, saúde, educação e seguridade social –
em preocupações públicas relacionadas à cidadania e à igualdade.
Ao afirmar que trabalho,
seguridade social, saúde e educação são assuntos que não devem ser tratados
pelo poder público, mas somente pela iniciativa privada, desloca-se a linha que
divide o que está incluído na esfera pública da cidadania (o que é comum,
compartilhado e que interessa a todas e todos) do que está fora dela (o que
pertence à esfera privada dos interesses particulares de cada pessoa).
Assim, com o avanço das medidas
neoliberais, implicitamente se esvazia o próprio conteúdo da cidadania, pois se
retiram dela os aspectos da vida humana que por meio da luta política foram
reconhecidos como preocupações coletivas, e que passam a ser compreendidos como
interesses meramente particulares a serem mercantilizados e explorados para
gerar lucro.
É interessante notar que essas
flexibilizações de direitos e privatizações da esfera pública vêm acompanhadas
por argumentos supostamente científicos (porém, que dificilmente se comprovam
na prática), os quais reiteram a necessidade de desmanche de instituições
públicas para o bem da economia nacional.
Esse discurso, que se vende como não-ideológico,
tenta convencer que o mundo existente, o status quo, é o único possível e
que não há nada para se almejar além disso. Ao se promover como a alternativa
mais eficiente, o discurso “realista”, adotado pelos regimes de governo
contemporâneos, pede que as pessoas sejam razoáveis em suas demandas e tenham
consciência das contingências do mundo globalizado: devemos nos contentar com o
que temos e, em tempos de “vacas magras”, devemos abrir mão de nossos
“privilégios”.
Argumentos de autoridade científica
e económica se conjugam num discurso em que reformas no sistema previdenciário,
flexibilização de direitos trabalhistas ou cortes de receitas destinadas à
saúde e educação públicas são inconvenientes necessários para o bem da economia
(sendo bastante questionável quem são os verdadeiros beneficiários desse
crescimento económico).
Porém, mesmo que nosso cenário
não seja o mais animador, ao contrário do que o discurso neoliberal afirma, o
mundo não é forjado de uma única realidade possível. Conhecer a história de
nossos direitos implica ter consciência de que a ordem dominante sempre
declarará que os objetivos das lutas por mais igualdade e dignidade são
impossíveis. Nesse sentido, devemos lembrar-nos de uma frase marcante do
movimento de Maio de 1968, que expressa bem a postura necessária na
contemporaneidade: “sejamos realistas, demandemos o impossível”!
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