Enquanto esperam a chegada dos
novos tempos, os empreendedores instalam-se no património cultural que decoram
com obras de arte das colecções públicas. É a lógica agora enunciada pelo
Ministério da Cultura.
Manuel Augusto Araújo* | opinião
De uma assentada Graça
Fonseca, ministra da Cultura, e Ângela Ferreira, secretária de Estado da
Cultura, assumem decisões esclarecedoras da sua perspectiva sobre cultura e
património cultural.
Se ainda houvesse dúvidas –
tendencialmente deve-se sempre conceder o benefício da dúvida – sobre se
existiam políticas culturais, por mais controversas que fossem, em que a
hierarquia dos valores culturais era a que se sobrepunha, ainda que com
decisões questionáveis, aos interesses do mercado cultural, elas deixaram de
existir.
A nomeação de Bernardo Alabaça
para director-geral do Património Cultural pela ministra da Cultura e um
despacho da secretária de Estado da Cultura que manda depositar em hotel
privado obras de uma colecção adquirida pelo Estado – o que motivou um pedido
de audição urgente do PCP à ministra – são a evidência de que o ministério da
Cultura está capturado pelas forças do mercado. Para os actuais detentores
desse pelouro é o mercado, que não reconhece qualquer outra hierarquia cultural
que não seja a do que é rentável e vendável, o norte da sua acção.
As duas decisões, praticamente
simultâneas, geraram imediatas perplexidades e indignações no universo
intelectual e nos dirigentes da Associação Portuguesa de Museologia (APOM) e
do Conselho Internacional de Museus da Europa, que Luís Raposo comenta num excelente texto.
Os caminhos iniciados e
percorridos pelo programa Revive já eram altamente preocupantes pela via única
de entregar à indústria imobiliária turística a recuperação do património
cultural construído, em risco de ruína ou em adiantado estado de degradação,
sem se preocupar, ou melhor (pior), demitindo-se de definir os programas de
ocupação deixando-os ao critério dos promotores privados. Deviam saber, ou sabem
até bem demais, que a filantropia não entra nos seus cálculos. O interesse nos
valores icónicos, históricos e culturais é meramente instrumental. O Estado tem
um papel fundamental no equilíbrio entre a exploração desse património por
privados e o seu usufruto público, mesmo assumindo-se que os projectos de
arquitectura respeitem o traçado original.
Os exemplos de desastradas
gestões e intervenções privadas no património edificado a nível internacional
são muitos e o que aconteceu em Itália nos governos Berlusconi – mas não só,
olhe-se para França e para os Hotel de Ville – deve, deveria, ser um fortíssimo
sinal de alerta.
A nomeação para director-geral do
Património Cultural de um gestor especializado no ramo imobiliário, sem
qualquer qualificação na área da cultura, e a cedência de artefactos que fazem
parte das colecções de museus nacionais para enfeitar um empreendimento
imobiliário turístico beneficiário do programa Revive são, como escreve Maria Isabel Roque, «Duas cajadadas no mesmo
coelho». São a demonstração de que as políticas, durante dezenas de anos
ziguezagueantes, dos ministérios e secretarias de Estado da Cultura, seguem
agora em linha recta capturadas pelos interesses da rentabilização imobiliária
que as ginásticas argumentativas da ministra da Cultura de «implementação de um
novo ciclo de políticas públicas para o património cultural e para as artes»
tornam ainda muitíssimo mais preocupantes.
A recuperação do património
edificado é sempre complexa. Um dos meios de salvaguardar o património
edificado é dar-lhe novas funções sem que a sua identidade seja posta em causa.
O Centro Português de Fotografia está instalado na «Cadeia da Relação», um edifício
que começou a ser construído em 1767; o Museu Nacional de Arte Antiga está
instalado num palácio mandado construir, em finais do século XVII, pelo 1.º
conde de Alvor; o Palácio de São Bento, onde está instalada a Assembleia da
República, começou por ser um convento. Todos eles, ao longo dos tempos,
albergaram as mais diversas instituições e nem todos os edifícios com valor
patrimonial terão que obrigatoriamente seguir esse caminho.
O que não é aceitável, nem sequer
admissível, é que esse caminho seja o da via única da exploração turística em
que o único objectivo é a redução dos impactos das requalificações nos
Orçamentos de Estado. Uma via que tem sido prática corrente continuada por
outros atalhos, com a desclassificação de vários edifícios para entrarem no mercado
imobiliário, a intromissão das Finanças impedindo a classificação de
imóveis do Estado para facilitar a sua venda. A gestão privada tem um único
objectivo, o lucro e a recuperação no prazo mais curto dos investimentos
realizados. O Estado obriga-se ao serviço público, que tem que ser protegido e
defendido. É essa a função do Estado, que o deve impor caso a caso. Deve ser do
conhecimento público, para haver debate com contribuições culturais e técnicas
válidas, que se plasmem nos cadernos de encargos das obras e nos das
concessões. Até se deveria exigir que o Estado, pedagogicamente, obrigasse os
concorrentes a abrirem concursos públicos de arquitectura em vez de deixar ao
critérios dos promotores a escolha dos arquitectos.
O grande problema da imaginação para reinventar os
monumentos, como proclamava o feérico ministro da Cultura francês Jack Lang
quando, em 1984, lançou um vasto programa de privatização do património
edificado, é se as operações imobiliárias, que necessariamente lhes estão
associadas, garantem e como garantem as suas memórias originais ou se essas
memórias serão e como serão sacrificadas à sua reabilitação. Com essa
orientação política – de transferir a recuperação e a gestão de bens
patrimoniais que são de todos para a sua apropriação privada – a fronteira
entre serviço público e a actividade comercial, se já era porosa, torna-se
inexistente. O empreendedorismo turístico promete restaurar o património
edificado e mesmo dar-lhe acesso público, desde que, evidentemente, não
incomode os utentes que pagam para dormir e vaguear por onde dormiu e vagueou a
extinta nobreza, pelo que se deve preservar o sossego desses esplêndidos
momentos de ócio, pagos e bem pagos aos empreendedores que em poucos anos
amortizam os investimentos feitos à conta do valor histórico desses lugares.
Vamos ver como correrá essa
coexistência. Nos processos em curso por essa Europa fora, nada está garantido
e muito do que já foi feito só provoca as máximas apreensões.
Consonante com essa prática está
a cedência de peças do Museu dos Coches para decorar uma instituição que não
têm funções museológicas. É um precedente inaceitável – uma dúvida: será mesmo
um precedente? – em que um membro do executivo, certamente avalizado pela sua
superior hierárquica, se arroga da prerrogativa de dispor das colecções dos
museus nacionais, surda aos pareceres dos organismos técnicos. Pode dizer que
tudo está salvaguardado. Veremos se no fim da linha, com os sucessivos
sobressaltos a que tem sido sujeito o ministério da Cultura e os organismos
dele directamente dependentes, não se estará perante mais um caso de polícia. Além do que
foi parar à Procuradoria-Geral da República há que lembrar as obras de arte da
colecção da Secretaria de Estado da Cultura (SEC) de que não se conhece o
paradeiro e das discrepâncias entre os registos. No livro de registos que havia
sido aberto em Janeiro de 1986 e encerrado em 1992, inventariavam-se 1115
obras. Posteriormente há uma lista de 848 cedidas à Fundação de Serralves que,
estranhamente, só reconhece 553 obras, uma discrepância de 295 obras. A
Fundação de Serralves cedeu – autorizada por quem? – 93 obras a outras
entidades. Para ampliar a baralhada 267 obras à sua guarda viajaram para outras
paragens, tendo sido entretanto localizadas 165, 102 continuam em parte
incerta. Um imbróglio que tem sido objecto de vários despachos ministeriais e
que parece longe de solucionado. Poderá a secretária de Estado da Cultura
argumentar que a sua decisão de cedência de obras das colecções do Estado a um
privado está salvaguardada por um inventário rigoroso, o que não invalida a
discricionariedade do procedimento mas, com a ligeireza com que tem sido feita
a circulação de obras das colecções estatais, por maiores que sejam as
garantias…
Na lógica da prática actual do
ministério da Cultura, relembrando as controvérsias suscitadas por um jantar
promovido pelo Web Summitt no Panteão Nacional, não será de admirar que em
breve se acolham de braços abertos os führers da moda, da fashion
life, que tomam de assalto o património cultural associando-os às suas marcas.
O exemplo paradigmático é Itália, com um legado de grande dimensão em risco, a
exigir intervenções urgentes e os governos, o de Berlusconi na linha da frente,
a cortarem drasticamente os orçamentos da cultura. Solução? Vendem-se direitos
de patrocínio na restauração de monumentos como a Fonte Trevi à Fendi, o
Coliseu de Roma à Tod’s, Pompeia à Prada, a Torre de Pisa à Gucci, associando
os logótipos das marcas aos monumentos que apadrinham.
Tudo isto se enquadra no estado
actual da cultura e das artes. Está em linha com as exibições de arte
contemporânea em que as marcas de artigos da moda e luxo se associam às vernissages,
sublinhando o seu carácter mundano com desfiles de moda ou assinalando-as, como
fez a Hermès na inauguração de Buren em Paris, com lenços de seda desenhados
pelo artista, ou a Louis Vuitton com sacos monografados de Murakami na abertura
de uma sua exposição em Los Angeles. Exemplos não faltam nessa lógica
ostentatória em que se associa a moda à arte contemporânea, em que o mundo dos
famosos desfila destilando fragrâncias, jóias e os últimos modelos de
vestuário. São menos as notícias sobre as exposições e os sucessos culturais
que as que registam as presenças do star-system, da política aos grandes
empresários, das vedetas televisivas às do desporto, do cinema, da música e da
arquitectura, dos artistas visuais e performativos ao baixo clero dos gestores
culturais que os promove e aos chefs que prepararam as degustações
daquele evento ou esperam ser convidados para o próximo. Na Europa esses
processos cavalgam o tempo. Por cá seremos mais modestos, mas sempre com o
objectivo e a finalidade de a cultura deixar de ser um «peso para o Estado»,
que parece ser o grande desígnio dos decisores culturais em exercício.
O património, cultural e natural,
gera grandes apetites. O jornal Economist, num editorial intitulado «The $9
trillion sale», escreve que Thatcher e Reagan usaram as privatizações como
ferramenta para combater os sindicatos e transformar em receitas diversos
serviços públicos e que os seus sucessores no século XXI, «necessitam fazer o
mesmo com os edifícios, terrenos e recursos naturais, porque é um enorme valor
que está à espera de ser desbloqueado».Trocando por miúdos, nos centros
decisores do capitalismo internacional, FMI, Banco Mundial, BCE etc., está a
levedar uma nova onda de privatizações de tipo novo e radical: vender bens
imobiliários estatais, incluindo patrimónios histórico-culturais; a dificuldade
– dificuldade obviamente superável – é a da avaliação de muito desse
património.
Enquanto esperam a chegada dos
novos tempos, os empreendedores instalam-se no património cultural que decoram
com obras de arte das colecções públicas.
É essa a lógica agora enunciada
pelo ministério da Cultura.
Imagem: «As Tentações de Santo
Antão», no Museu Nacional de Arte AntigaCréditos/ CC-BY-SA-3.0
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