sábado, 29 de fevereiro de 2020

Propaganda britânica encena a guerra da Síria


O «jornalismo cidadão» que alimenta a comunicação social corporativa sobre a guerra na Síria é, afinal, contratado e pago pelo governo britânico. As provas constam de documentos oficiais, expostos em fugas de informação.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

A informação supostamente com origem na «oposição da Síria» divulgada pela comunicação social corporativa a propósito da guerra contra este país é gerada por um tentacular sistema de propaganda montado pelo governo britânico em conjunto com empresas privadas pertencentes a ex-oficiais das forças armadas e dos serviços secretos de Londres. As provas constam de documentos oficiais resultantes de fugas de informação recentes.

De acordo com elementos constantes dessa documentação, a operação tem como objectivo «dinamizar os valores e a reputação da oposição síria» para «minar a narrativa de legitimidade» do governo de Damasco, de modo a «promover os interesses estratégicos do Reino Unido na Síria e no Médio Oriente».

Esta estratégia de comunicação foi lançada pelo Comando Estratégico britânico (UKStratCom)1 na sequência de uma iniciativa do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Londres, que mantém a supervisão e delega a execução em empresas privadas contratadas para o efeito. O financiamento é suportado essencialmente pelos ministérios da defesa britânico, dos Estados Unidos e do Canadá.

A gestão directa do processo está entregue a um «antropólogo» dos sectores «anti-terroristas» do Ministério da Defesa, sob a tutela de Jonathan Allen, oficial do MI6, serviços de espionagem britânicos, e também número dois da delegação do Reino Unido no Conselho de Segurança na ONU.

A iniciativa desenvolveu-se a partir do momento em que a Câmara dos Comuns do Parlamento britânico decidiu, em 2013, que o Reino Unido não poderia participar em quaisquer operações militares em território sírio, ao contrário do que acontece com os Estados Unidos e a França. A medida parlamentar, no entanto, veio a ser violada pelas forças armadas através da participação no bombardeamento efectuado em 7 de Abril de 2017 contra território sírio – como «resposta» a um «ataque químico» que não existiu, como agora está plenamente provado; e também pela participação de pilotos militares britânicos, aos comandos de aviões de outras bandeiras, em acções aéreas contra a soberania síria.


Uma teia de intoxicação

A base da estratégia montada em Londres foi a seguinte: dar voz à «oposição síria» através de canais de comunicação montados por empresas privadas britânicas controladas por meios militares e de espionagem, por sua vez contratadas pelo governo do Reino Unido.

A proliferação do «jornalismo cidadão»; a criação de fontes de informação e de assessorias tornadas «fidedignas» e «indispensáveis», de que é exemplo o «Observatório Sírio dos Direitos Humanos»2, significativamente a funcionar em Londres; e a preparação de «porta-vozes» para transmitir os pontos de vista de uma «oposição», de facto, sem rostos credíveis, são caminhos explorados de uma maneira orgânica e tentacular e que moldam a informação dominante à escala global sobre a guerra contra a Síria.

Os megafones privilegiados pelos gestores da rede são as estações de televisão, designadamente a Sky News, a BBC, especialmente os seus canais em árabe, a Al Jazeera do Qatar e a Al Arabyia da Arábia Saudita. A partir daí as mensagens tornam-se imparáveis, bebidas pela teia da informação corporativa sedenta por tudo quanto possa estigmatizar o governo legítimo de Damasco.

Os documentos governamentais revelam que, no âmbito da operação, o Ministério britânico dos Negócios Estrangeiros montou escritórios especiais em Istambul, Amã e ainda na cidade turca de Reyhanli para os quais foram seleccionados membros da diáspora «oposicionista» síria através das empresas privadas envolvidas no processo3.

A tarefa dos contratados é, por exemplo, estabelecer a rede de «jornalismo cidadão» através da Síria, integrando pessoas que, em muitos casos, nem sequer sabem que estão a ser pagas por governos estrangeiros. Devem produzir textos, pequenos vídeos, programas de rádio, posters, até banda desenhada para plataformas, blogues, redes sociais – um abundante manancial capaz de «expor os crimes, os fracassos, os erros do regime de Assad». Os membros da rede recebem entre 50 e 200 dólares por peça, supostamente pagos por «organizações de oposição»; o dinheiro, no entanto, escorre realmente de um orçamento mensal de um pouco mais de 500 mil euros, financiado pelos ministérios da defesa do Reino Unido, Estados Unidos e Canadá.

A gestão e o encaminhamento deste imenso espólio envenenado está nas mãos das empresas de comunicação que gerem os escritórios da Turquia e da Jordânia a rogo das autoridades britânicas.

Assim nasceram os Capacetes Brancos

Outra missão desta rede de propaganda é «promover a sociedade civil» nas zonas sob domínio da «oposição», leia-se terroristas da al-Qaeda e, durante muito tempo, também do Estado Islâmico, embora a documentação oficial fale sempre em «organizações moderadas». Em boa verdade, os terroristas «moderados» nunca foram relevantes e estiveram sempre sob o controlo operacional dos braços locais da al-Qaeda e do Estado Islâmico.

Um exemplo da construção dessa «sociedade civil» foi a criação de «polícias livres»4 e de organizações de «socorro humanitário», como por exemplo os Capacetes Brancos.

O tempo e os factos demonstraram que tais estruturas estiveram sempre ao serviço do terrorismo: os Capacetes Brancos, comprovadamente um braço da al-Qaeda, acabaram por tornar-se conhecidos pelas encenações de vários «ataques químicos», realizadas aliás pela Olive, uma produtora cinematográfica e agência de comunicação britânica, como as outras agregadas à gigantesca operação de propaganda, mentira e intoxicação.

O facto de os Capacetes Brancos terem sido fundados e dirigidos por um antigo agente dos serviços secretos britânicos, James Le Mesurier, não pode ser considerado, nestes contextos, uma pura coincidência. Assim como a circunstância de Le Mesurier ter falecido recentemente em Istambul, caindo de maneira muito suspeita da janela do seu escritório5.

Os meios de comunicação social nacionais e internacionais que se tornaram acriticamente clientes desta rede de mistificação – fruto da experiência secular do Império Britânico – não podem alegar que estão enganados ou são burlados na sua boa-fé.

O processo, no fundo, é clássico, apenas aprimorado pelas dinâmicas tornadas possíveis pelas novas tecnologias. E o seu funcionamento foi desmascarado desde o início da própria guerra de agressão, quando o jornalista espanhol Daniel Iriarte denunciou a encenação que foi a apresentação do «Exército Livre da Síria» em Jabal al-Zounia. Um corpo que deveria ser constituído por desertores do exército regular reuniu sobretudo mercenários «importados» da Líbia, sob a chefia operacional do dirigente terrorista Abdelhakim Belhadj, transferido entretanto do posto de comandante militar de Tripoli para o qual fora designado pela NATO. Daniel Iriarte identificou a trapaça e demonstrou que o corpo «revolucionário» era tutelado pelo coronel britânico Paul Tilley, antigo oficial do MI6. A encenação para apresentação do «Exército Livre da Síria», para que conste, foi montada pela empresa britânica Innovative Communications & Strategies (InCoStrat)6.

Porta-vozes amestrados

Outra área tutelada pelos escritórios britânicos em Istambul e Amã, integrada portanto na envolvente operação de propaganda, é a dos porta-vozes da «oposição síria». Tal como os «jornalistas cidadãos», são figuras recrutadas pelos contratados na diáspora síria, sempre sob o controlo dos responsáveis britânicos.

De acordo com os documentos oficiais, os porta-vozes são seleccionados, contratados e treinados pelas mesmas agências de comunicação que gerem as assessorias de informação que trabalham 24 horas por dia, o expediente produzido pelos «jornalistas cidadãos» e pelas actividades dos «Capacetes Brancos» nas suas missões de «socorro humanitário».

Uma vez em condições de exercer o cargo, porém, os porta-vozes da «oposição síria» cujos testemunhos correm mundo só podem usar da palavra depois de autorizados pelo consulado britânico em Istambul.

Os beneficiários deste sistema articulado e multidisciplinar de mistificação queixam-se de que o apoio britânico perdeu dinâmica quando mais precisavam dela, sobretudo a partir de 2015, ano em que a Rússia entrou na guerra a pedido do governo sírio. De facto registou-se uma alteração de forças em detrimento de «organizações de oposição» – grupos terroristas – que perderam os seus principais feudos urbanos; no entanto, ter-se-ão registado também dissonâncias estratégicas entre Londres e Washington associadas, ao que consta, às relações ambíguas entre os Estados Unidos e o Isis ou Estado Islâmico e também ao facto de a parte norte-americana, ao contrário da britânica, insistir no desmantelamento da Síria como país.

É fácil perceber, porém, que a operação de propaganda de matriz britânica continua activa. Basta observar a esta luz a cobertura que está a ser feita mundialmente sobre a «corajosa resistência da oposição» – a al-Qaeda apoiada por tropas regulares turcas – contra o assalto das tropas do «regime de Assad» – o governo soberano do país – à província de Idlib, por sinal o último reduto da organização de Bin Laden criada pela CIA e o MI6.

Por isso, qualquer semelhança entre a narrativa da guerra da Síria feita pela comunicação social corporativa e a realidade no terreno é pura coincidência.


Este artigo é um exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

Notas:
1_.O Comando Estratégico do Reino Unido foi formado em 2018, a partir do antigo Comando Conjunto. É chefiado pelo general Nick Carter, Chefe do Estado-Maior da Defesa do Reino Unido.

2.NR: Aqui já denunciado como «algumas dezenas de amanuenses contratados pelos serviços secretos britânicos e afins emitindo de um escritório em Londres as mensagens “em directo” da Síria que logo se transformam em manchetes de jornais e aberturas de telejornais em todo o mundo e numa babel de idiomas». Ver, de José Goulão, «A guerra contra a Síria, ou de como se falsifica a história», de 22 de Março de 2018.

3.Os documentos e a operação foram recentemente revelados pelo Middle East Eye – insuspeito de simpatias pelo governo legítimo sírio – em «REVEALED: The British government’s covert propaganda campaign in Syria». A iraniana Press TV sublinha que, aparentemente, a operação de propaganda britânica se destinaria a «anteceder uma intervenção militar [na Síria] envolvendo forças britânicas». Em Abril de 2018 a agência iraniana Fars anunciara a prisão, pelo exército sírio, de operacionais britânicos da SAS que dirigiam as operações terroristas, com militares dos EUA e da NATO.

4.Em outro artigo do Middle East Eye, de Janeiro de 2019, lamentam-se os prejuízos causados à «causa rebelde» pela liquidação da chamada «Polícia da Síria Livre» – uma criação propagandística do Reino Unido – pelo grupo terrorista Hayat Tahrir al-Sham, da al-Qaeda. Derrotados em Alepo, Ghouta Oriental, Douma e outras frentes na Síria, os combatentes jihadistas evacuados desses pontos de conflito foram autorizados a partir para Idlib com as suas famílias. Com a agregação de «radicais» e «moderados» em torno do Hayat Tahrir al-Sham e a hegemonia deste desapareceram as veleidades propagandísticas e foi estabelecido sobre os habitantes da província um brutal regime fundamentalista. A Turquia tem apoiado o grupo tudo tem feito para evitar a sua derrota final, um objectivo central do governo legítimo de Damasco e dos seus aliados no terreno.

5.A jornalista Vanessa Beeley denunciou, em Dezembro de 2019, a campanha de «limpeza de imagem» de Le Mesurier e da organização por ele criada, desencadeada após a sua morte.Ver, também, os trabalhos do Working Group on Syria, Propaganda and Media, um grupo de académicos britânicos que investigou pormenorizadamente as actividades de James Le Mesurier e se preparava, no final de 2019, para expor o seu papel na encenação de ataques químicos que, «em pelo menos três incidentes, envolveram assassinatos em massa de prisioneiros civis». Surpreendido pela morte de Le Mesurier, o grupo decidiu publicar o relatório que já aprontara, a fim de contribuir para levar os responsáveis por esses incidentes perante a justiça – o que, até agora, não se verificou.

6.Tanto a Innovative Communications & Strategies (InCoStrat), como a empresa que a precedera na consultadoria de imagem dos jihadistas sírios, a Regester Larkin, são encabeçadas pelo coronel Paul Tilley e financiadas pela Research, Information and Communications Unit (RICU), uma unidade britânica de «comunicação estratégica» voltada para o mundo islâmico, estabelecida em 2007 por Jonathan Allen (ver início do artigo) e por este dirigida durante vários anos.

Sem comentários:

Mais lidas da semana