A pandemia do novo coronavírus,
como nenhuma outra situação, expõe a União Europeia como uma entidade que não
existe para servir as pessoas mas para servir-se delas em favor dos interesses
de castas.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
União Europeia desapareceu,
tragada pelas incidências da pandemia do novo coronavírus. Habituada a criar
crises humanitárias em casas alheias, não sabe agora como lidar com um drama
sanitário interno e responde da mesma maneira que perante as vagas de refugiados
de que é responsável: barrica-se e, cá dentro, é cada um por si. Muito
federalista quando se trata de cumprir o catecismo neoliberal contra os cidadãos,
a União Europeia eclipsa-se quando é necessário socorrê-los.
Fustigada pela crise entre as
crises, a Itália pediu à Comissão Europeia a activação do Mecanismo de
Protecção Civil para poder contar com a ajuda dos Estados membros no combate à
epidemia. Nesta Europa da «solidariedade» nenhum país se mostrou disponível
para responder. O único auxílio estrangeiro que o povo italiano recebe é o da
China – através de pessoal de saúde, instrumentos e material clínico; e a
região da Lombardia, neste quadro, decidiu pedir auxílio a Cuba, sobretudo
devido ao êxito de um medicamento cubano contra os efeitos do novo coronavírus
(COVID-19), como tem sido testemunhado nas regiões chinesas mais atingidas.
Havana respondeu afirmativamente, da mesma maneira que acolheu um cruzeiro
britânico com passageiros infectados e que ninguém queria receber.
A imagem que a União Europeia
transmite aos cidadãos é a de um eclipse progressivo das suas instituições ao
ritmo do avanço da pandemia. Estados fecham fronteiras mesmo sem informar os
vizinhos (a excepção é a Península Ibérica), o Parlamento Europeu foi o
primeiro a fugir de cena refugiando-se na quarentena, não há qualquer indício
de esforços para potenciar, no âmbito dos 27, os recursos sanitários
disponíveis para que as nações menos atingidas possam ajudar as mais afectadas
pela tragédia. Tão prestimosa em cuidar do casino financeiro, a União Europeia
é um fracasso cívico e solidário. Reina o salve-se quem puder. A pandemia do
novo coronavírus, tal como nenhuma outra situação, expõe a União Europeia como
uma entidade que não existe para servir as pessoas mas para servir-se delas em
favor dos interesses de castas.
A «prontidão» da NATO
Porém, a crer na informação
transmitida pelos canais oficiais da NATO e pelo comandante supremo aliado na
Europa, o general norte-americano Tod Wolters, há um aspecto em que a União
Europeia, como braço político da Aliança Atlântica, ainda funciona em bloco
neste período: o da actividade militar transnacional.
Os dados das últimas horas
divulgados por fontes atlantistas credenciadas explicam-nos que o novo
coronavírus e as restrições postas em vigor para combatê-lo não impõem o
cancelamento do essencial dos jogos de guerra em curso.
Nos termos do comunicado
disponível no website dos exercícios Defender-Europe 20, a NATO tomou «uma
série de medidas de precaução para reduzir a desnecessária disseminação da
doença», que se reflectem na dimensão e âmbito das manobras. Essas medidas
incluem o cancelamento de um conjunto de sub-exercícios, mas não das
actividades guerreiras consideradas fulcrais.
«Continuaremos a preservar a
prontidão das nossas forças enquanto maximizamos os esforços para promover as
nossas alianças e parcerias», lê-se no texto. Trata-se, acrescenta, «de
construir a prontidão estratégica para deslocar uma força credível de combate
na Europa para apoiar a NATO e a estratégia de defesa dos Estados Unidos da
América». Esses esforços determinaram «a capacidade do exército para coordenar
movimentos em larga escala com aliados e parceiros».
Isto é o que nos diz a NATO no
momento em que a União Europeia encerra as suas fronteiras externas, em que
fecha muitas fronteiras internas, em que se declaram estados de emergência que
– por muito que sejam acompanhados pelas mais piedosas declarações – limitarão
drasticamente os direitos e liberdades dos cidadãos.
Como é que os jogos de guerra da
NATO, mesmo «alterados em dimensão e âmbito», se encaixam na enxurrada de
medidas restritivas impostas à generalidade dos cidadãos? Era importante que o
governo de Portugal explicasse como é possível que isto continue a acontecer
enquanto tudo o resto se suspende, tanto mais que o Ministério da Defesa já
revelou a existência de militares infectados. Certamente terá elementos
esclarecedores, uma vez que o país é membro da NATO e, segundo informa o
comunicado da aliança, «há ainda muitos pormenores que estão a ser trabalhados
e discutidos com os nossos aliados e parceiros». Partilhá-los com os cidadãos
seria um gesto cívico em tempos nos quais os direitos cívicos se diluem em
medidas que suscitam inegáveis reservas democráticas.
O que se seguirá?
A saída de cena da União Europeia
em tempos de coronavírus, por muito que se diga que os isolamentos nacionais se
processam em articulação com as instituições europeias, é temporária e
estender-se-á apenas, muito provavelmente, pelo período da pandemia.
Depois disso a União renascerá no
seu esplendor, pronta a tornar-se indispensável para lidar com a crise
económica, financeira e social decorrente da crise sanitária.
Será a ocasião já não de socorrer
os cidadãos mas de estabelecer mecanismos para que estes sejam os instrumentos
da recuperação económica de acordo com os parâmetros habituais, isto é, em
benefício dos grandes interesses privados, incluindo os financeiros.
Então, os países que não
responderam às aflições italianas estarão prontos a unir-se na disseminação da
austeridade, da limitação de direitos laborais elementares, do desemprego, da
contenção salarial e do maior desprezo ainda pelos horários de trabalho, enfim
da inesgotável ambição patronal pela arbitrariedade.
Sabemos como foi depois de 2008;
por maioria de razão, porque o COVID-19 vai ter as costas muito largas, assim
irá acontecer quando for debelada a pandemia.
Não se trata de uma antecipação
de cenários, muito menos de fazer futurologia. É apenas uma reflexão de modo a
que a generalidade das pessoas não pensem que o pior já passou quando o vírus
for derrotado.
Existem comportamentos próprios
de um passado recente e atitudes assumidas já nestes dias que fazem prever o
pior sobre a exploração da crise económica, financeira e, sobretudo, social
gerada pelo facto de o ataque do novo coronavírus ter detonado a nova crise do
neoliberalismo – que já se adivinhava há longos meses. Percebendo agora o afã
com que grupos e empresas privadas recorrem à suspensão de postos de trabalho,
à tentação de fazer negócio tirando proveito de situações geradas pelo combate
à pandemia, às reclamações de apoio estatal que já se fazem ouvir sem pudor,
não será difícil prever a hecatombe que aí vem logo que seja declarado o fim do
reinado do COVID-19.
Mais uma vez o Estado, isto é, os
cidadãos, serão chamados a «salvar» os bancos, a financiar as empresas privadas
sob chantagens como as do desemprego em massa ou do próprio encerramento.
Então ressurgirá, na sua
plenitude, a União Europeia, para seguir os seus guiões habituais, retocados
socialmente para pior por alegada culpa do COVID-19. Bruxelas terá os seus
«semestres europeus» adaptados à nova situação, o Banco Central Europeu
reinventará as «troikas» que considerar necessárias, o reforço da austeridade
voltará a ser uma incontornável solução. Quantos dos trabalhadores que agora
foram mandados «para casa» recuperarão plenamente os seus postos de trabalho?
Quantos deles terão de sujeitar-se a restrições de direitos, incluindo
salariais, para não perderem o emprego «por causa do coronavírus»? Quantos não
serão obrigados à «revisão» dos seus vínculos laborais porque as experiências
com teletrabalho têm vindo a revelar-se excelentes para o reforço de lucros e a
mitigação de direitos sociais?
Essa será também a altura em que
os Sistemas Nacionais de Saúde, que têm de fazer frente à pandemia depois de
anos e anos de desinvestimento dos governos, continuarão a tentar sobreviver
submetidos a restrições ainda maiores e ditadas, como sempre, pelas obscuras
chantagens do défice.
Estamos num tempo em que, uma vez
debelada a pandemia, nada voltará a ser como antes de detectado o novo
coronavírus. Haverá um antes e um depois do COVID-19, continuando o sistema
neoliberal a gerir a situação e manipulando agora uma nova crise que parece
feita de encomenda.
E então a União Europeia, que não
sabe como socorrer solidariamente os seus cidadãos, estará certamente unida
para sacrificá-los no altar da necessária recuperação económica e, sobretudo,
financeira. Contando, como sempre, com a sombra protectora da NATO, que para
isso não se priva de trabalhar pela sua «prontidão» perante as «potenciais
ameaças» à boa ordem, mesmo sob os ambientes carregados de ofensivas virais
originadas sabe-se lá onde.
Na imagem: Trabalhadores dos
cemitérios e das agências funerárias, com máscaras protectoras, durante o
funeral de uma pessoa morta devido ao coronavírus COVID-19, em Bérgamo, Itália,
a 16 de Março de 2020. O número de mortes provocadas pelo COVID-19, em Itália,
ultrapassou hoje as registadas na China desde o início do ano, apesar de este
país ter uma população 24 vezes superior à da Itália CréditosFlavio Lo
Scalzo / Reuters
*Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
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