sábado, 28 de março de 2020

Portugal | PARA AS FAMÍLIAS EM CASA, É TEMPO DE SOLIDARIEDADE


Muitas das famílias em quarentena não se revêem na família-tipo apresentada nas declarações oficiais, com salários médios, de profissão intelectual e a viver em cidades de grande ou média dimensão.

Anabela Laranjeira | AbrilAbril | opinião

Estes dias trazem-nos novidades e desafios, o tempo é de intranquilidade e de profundos receios, mas também de gestos de partilha e de solidariedade sentida. A ligação virtual é intensa mas basta ir também à janela real para ver os arco-íris das crianças vizinhas ou ouvir os bons dias de quem tinha perdido o hábito de os dar.

Neste momento, muitas das famílias com filhos seguem a recomendação de os manter em casa, sem escola nem atividades que possam frequentar em grupo no exterior. Muitas outras tomam difíceis decisões, é preciso resolver a necessidade de continuarem o seu trabalho.

Para os pais e mães que estão em casa, e de acordo com os relatos nas redes sociais, a ligação à escola parece ser um tema forte; o que é preciso para manter a rotina de estudo? Os professores estão a fazer o possível para manter a ligação aos alunos, seja através de vídeo-chamadas, do envio de trabalhos vários, de conversas e troca de relatos via mail.

São os pais, neste momento, aqueles que ajudam e fiscalizam o que tem de ser feito e, por isso, a questão impõem-se, online e offline, uma vez mais. A necessidade de ajuda nos trabalhos escolares não cavará, em breve, ainda mais, a diferença entre famílias de profissões intelectuais e com maior acesso à escolarização e as outras famílias?


As diferenças já se fazem sentir, e ainda só passou uma semana. Há alunos e famílias que não respondem ao apelo das sessões de zoom online, há alunos (em particular do pré-escolar e 1.º ciclo) sem acesso a computador, em famílias onde só há o computador disponível para o teletrabalho dos pais. E há as centenas de famílias com graves problemas sociais onde o acompanhamento escolar e a realização de algum tipo de trabalho se torna impossível.

O Ministério da Educação responde de forma bizarra, falando em manter avaliação e exames como se nada tivesse acontecido, referindo a possibilidade de envio de trabalhos de casa por correio físico, apelando a um voluntarismo sem precedentes.

Pais em teletrabalho não são panaceia

Em muitas das famílias, um dos pais sai para trabalhar fora e o outro está a trabalhar à distância em contacto com clientes de determinada empresa, a dar aulas ou a produzir material digital, etc. Como é que, nesse caso, é dado o apoio aos filhos em idade escolar ou às crianças mais pequenas que precisam de vigilância e atenção permanente?

Não serão, nestes casos, as mulheres as mais prejudicadas, em dinâmicas familiares que sempre as responsabilizaram mais? O desafio que isto representa não pode ser ignorado, encarando o trabalho à distância como panaceia para o problema. Pode alguém em teletrabalho dar o apoio necessário que os filhos teriam na escola, creche ou jardim de infância?

Em que situação estão neste momento as inúmeras famílias monoparentais, na sua esmagadora maioria constituídas pela mãe e pelos filhos? Em que situação estão as famílias dependentes da rede de apoio familiar da família alargada, nomeadamente as que dependem do apoio dos avós que fazem parte do grupo de risco? Como fazem para recolher as refeições escolares na escola as famílias monoparentais, que representam uma grande fatia das famílias abrangidas pelo Escalão A?

As refeições escolares estão a ser fornecidas aos pais destes alunos à porta das escolas, com a recomendação de não levarem as crianças com eles. Esta é a nova sopa dos pobres, a distinção a olho nu dos que podem comprar e cozinhar em casa para os seus filhos, e os que têm de enfrentar mais uma saída para ir buscar esta refeição.

Em algumas freguesias do País há a informação de que essa entrega está a ser feita em casa, mas em muitas outras, é feita desta forma. É importante atender à realidade concreta das famílias portuguesas, alargar e tornar efetivos os apoios sociais, a continuação da entrega das refeições não pode ser posta em causa, mas a segregação a olho nu também não é solução.

Muitas das famílias que neste momento se veem confrontadas com esta quarentena, embora com os filhos em casa, não se reveem na família-tipo apresentada nas declarações oficiais, a família com salários médios, de profissão intelectual, passível de se concretizar em teletrabalho, a viver em cidades de grande ou média dimensão.

Criatividade e paciência em dias difíceis

O problema da gestão destes dias difíceis está longe de ficar resolvido com conselhos sobre trabalhos manuais para fazer com as crianças ou dicas de ginástica no quintal que, em muitos apartamentos, é inexistente. Ainda assim, também aqui os gestos de solidariedade e partilha se têm feito sentir, e a disponibilização de filmes, atividades, receitas culinárias e outras sugestões é vastíssima para os poucos dias que ainda se passaram.

É um tempo em que a criatividade e a paciência são importantes. E, ainda que os sentimentos de culpa em relação à excessiva utilização do tablet ou do telemóvel não ajudem, também não ajudará a longo prazo a excessiva permissividade em relação aos aparelhos digitais. É realmente necessário encontrar atividades variadas para crianças e adolescentes que, na melhor das hipóteses, não regressarão à escola antes do mês de maio.

É ainda necessário manter o contacto telefónico e as vídeo-chamadas com a família alargada e com os amigos. Mas, se nisto a tecnologia é uma aliada, cantar, desenhar, fazer guerras de almofadas ou bolos é melhor do que mais uma hora no sofá a olhar para o tablet.

Foram já decretadas as condições para circulação e permanência na via pública durante o Estado de Emergência. De acordo com a Lei, os pais podem sair com os filhos menores para passeios de curta duração pelas imediações da casa. É muito importante que esta recomendação seja cumprida com equilíbrio. Ela é de toda a pertinência, em particular para as milhares de famílias com filhos que não têm sequer varanda ou casas com exposição solar.

Esta possibilidade deve ser aproveitada com a devida distância social: passar para o outro lado da rua por exemplo, evitar a proximidade de farmácias ou supermercados e não tocar em nada. Ela é fundamental para as crianças mais pequenas, para as que estão a iniciar a marcha, para os adolescentes ou crianças com problemas de excesso de peso, uma larguíssima fatia em Portugal, entre outras... É também fundamental para as mães e pais, num clima de ansiedade potenciador de mais discussões e conflitos familiares.

É, sem dúvida, tempo de manter a tranquilidade e a entre-ajuda, recolher informação credível e não aceitar e propagar notícias falsas e alarmismos que teimam em aparecer.

Proteger quem trabalha deve ser responsabilidade coletiva, cuidemos de nós e dos nossos, mas não descuremos que não estamos no mesmo barco de quem nos quer mais explorados, e que tudo fará para se aproveitar desta crise, não podemos viver isolados nem sem olhar uns pelos outros.

Só os que estão realmente neste barco de cá, os que trabalham e produzem a riqueza, a educação, a saúde, a cultura deste País, é que podem encontrar o caminho para a solução do problema. Nada de novo, são as nossas mãos, que não podemos lavar desta situação, que resolverão a difícil batalha que nos diz respeito.

O investimento no Serviço Nacional de Saúde, na melhoria das condições de trabalho de médicos e enfermeiros nunca se afigurou tão importante. A defesa da vida digna de quem está a trabalhar neste momento, a desinfecção geral dos locais de trabalho e das vias públicas, a reflexão sobre o que é necessário fazer em relação ao que se vai passar a longo prazo, dando voz aos cientistas, o foco nas famílias trabalhadoras, nos seus filhos, no direito à saúde e à vida com dignidade deve, mais do que nunca, sobrepor-se, com a força que seja necessária, à velhíssima lógica do lucro, e da predação irresponsável de alguns.

*A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

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