Muitas das famílias em quarentena
não se revêem na família-tipo apresentada nas declarações oficiais, com
salários médios, de profissão intelectual e a viver em cidades de grande ou
média dimensão.
Anabela Laranjeira | AbrilAbril |
opinião
Estes dias trazem-nos novidades e
desafios, o tempo é de intranquilidade e de profundos receios, mas também de
gestos de partilha e de solidariedade sentida. A ligação virtual é intensa mas
basta ir também à janela real para ver os arco-íris das crianças vizinhas ou
ouvir os bons dias de quem tinha perdido o hábito de os dar.
Neste momento, muitas das
famílias com filhos seguem a recomendação de os manter em casa, sem escola nem
atividades que possam frequentar em grupo no exterior. Muitas outras tomam
difíceis decisões, é preciso resolver a necessidade de continuarem o seu
trabalho.
Para os pais e mães que estão em
casa, e de acordo com os relatos nas redes sociais, a ligação à escola parece
ser um tema forte; o que é preciso para manter a rotina de estudo? Os
professores estão a fazer o possível para manter a ligação aos alunos, seja
através de vídeo-chamadas, do envio de trabalhos vários, de conversas e troca
de relatos via mail.
São os pais, neste momento,
aqueles que ajudam e fiscalizam o que tem de ser feito e, por isso, a questão
impõem-se, online e offline, uma vez mais. A necessidade de ajuda nos trabalhos
escolares não cavará, em breve, ainda mais, a diferença entre famílias de
profissões intelectuais e com maior acesso à escolarização e as outras famílias?
As diferenças já se fazem sentir,
e ainda só passou uma semana. Há alunos e famílias que não respondem ao apelo
das sessões de zoom online, há alunos (em particular do pré-escolar e 1.º
ciclo) sem acesso a computador, em famílias onde só há o computador disponível
para o teletrabalho dos pais. E há as centenas de famílias com graves problemas
sociais onde o acompanhamento escolar e a realização de algum tipo de trabalho
se torna impossível.
O Ministério da Educação responde
de forma bizarra, falando em manter avaliação e exames como se nada tivesse
acontecido, referindo a possibilidade de envio de trabalhos de casa por correio
físico, apelando a um voluntarismo sem precedentes.
Pais em teletrabalho não são
panaceia
Em muitas das famílias, um dos
pais sai para trabalhar fora e o outro está a trabalhar à distância em contacto
com clientes de determinada empresa, a dar aulas ou a produzir material
digital, etc. Como é que, nesse caso, é dado o apoio aos filhos em idade
escolar ou às crianças mais pequenas que precisam de vigilância e atenção
permanente?
Não serão, nestes casos, as
mulheres as mais prejudicadas, em dinâmicas familiares que sempre as
responsabilizaram mais? O desafio que isto representa não pode ser ignorado,
encarando o trabalho à distância como panaceia para o problema. Pode alguém em
teletrabalho dar o apoio necessário que os filhos teriam na escola, creche ou
jardim de infância?
Em que situação estão neste
momento as inúmeras famílias monoparentais, na sua esmagadora maioria
constituídas pela mãe e pelos filhos? Em que situação estão as famílias
dependentes da rede de apoio familiar da família alargada, nomeadamente as que
dependem do apoio dos avós que fazem parte do grupo de risco? Como fazem para
recolher as refeições escolares na escola as famílias monoparentais, que
representam uma grande fatia das famílias abrangidas pelo Escalão A?
As refeições escolares estão a
ser fornecidas aos pais destes alunos à porta das escolas, com a recomendação
de não levarem as crianças com eles. Esta é a nova sopa dos pobres, a distinção
a olho nu dos que podem comprar e cozinhar em casa para os seus filhos, e os
que têm de enfrentar mais uma saída para ir buscar esta refeição.
Em algumas freguesias do País há
a informação de que essa entrega está a ser feita em casa, mas em muitas
outras, é feita desta forma. É importante atender à realidade concreta das
famílias portuguesas, alargar e tornar efetivos os apoios sociais, a
continuação da entrega das refeições não pode ser posta em causa, mas a
segregação a olho nu também não é solução.
Muitas das famílias que neste
momento se veem confrontadas com esta quarentena, embora com os filhos em casa,
não se reveem na família-tipo apresentada nas declarações oficiais, a família
com salários médios, de profissão intelectual, passível de se concretizar em
teletrabalho, a viver em cidades de grande ou média dimensão.
Criatividade e paciência em dias
difíceis
O problema da gestão destes dias
difíceis está longe de ficar resolvido com conselhos sobre trabalhos manuais
para fazer com as crianças ou dicas de ginástica no quintal que, em muitos
apartamentos, é inexistente. Ainda assim, também aqui os gestos de
solidariedade e partilha se têm feito sentir, e a disponibilização de filmes,
atividades, receitas culinárias e outras sugestões é vastíssima para os poucos
dias que ainda se passaram.
É um tempo em que a criatividade e
a paciência são importantes. E, ainda que os sentimentos de culpa em relação à
excessiva utilização do tablet ou do telemóvel não ajudem, também não ajudará a
longo prazo a excessiva permissividade em relação aos aparelhos digitais. É
realmente necessário encontrar atividades variadas para crianças e adolescentes
que, na melhor das hipóteses, não regressarão à escola antes do mês de maio.
É ainda necessário manter o
contacto telefónico e as vídeo-chamadas com a família alargada e com os amigos.
Mas, se nisto a tecnologia é uma aliada, cantar, desenhar, fazer guerras de
almofadas ou bolos é melhor do que mais uma hora no sofá a olhar para o tablet.
Foram já decretadas as condições
para circulação e permanência na via pública durante o Estado de Emergência. De
acordo com a Lei, os pais podem sair com os filhos menores para passeios de
curta duração pelas imediações da casa. É muito importante que esta
recomendação seja cumprida com equilíbrio. Ela é de toda a pertinência, em
particular para as milhares de famílias com filhos que não têm sequer varanda
ou casas com exposição solar.
Esta possibilidade deve ser
aproveitada com a devida distância social: passar para o outro lado da rua por
exemplo, evitar a proximidade de farmácias ou supermercados e não tocar em
nada. Ela é fundamental para as crianças mais pequenas, para as que estão a
iniciar a marcha, para os adolescentes ou crianças com problemas de excesso de
peso, uma larguíssima fatia em Portugal, entre outras... É também fundamental
para as mães e pais, num clima de ansiedade potenciador de mais discussões e
conflitos familiares.
É, sem dúvida, tempo de manter a
tranquilidade e a entre-ajuda, recolher informação credível e não aceitar e
propagar notícias falsas e alarmismos que teimam em aparecer.
Proteger quem trabalha deve ser
responsabilidade coletiva, cuidemos de nós e dos nossos, mas não descuremos que
não estamos no mesmo barco de quem nos quer mais explorados, e que tudo fará
para se aproveitar desta crise, não podemos viver isolados nem sem olhar uns
pelos outros.
Só os que estão realmente neste
barco de cá, os que trabalham e produzem a riqueza, a educação, a saúde, a
cultura deste País, é que podem encontrar o caminho para a solução do problema.
Nada de novo, são as nossas mãos, que não podemos lavar desta situação, que
resolverão a difícil batalha que nos diz respeito.
O investimento no Serviço
Nacional de Saúde, na melhoria das condições de trabalho de médicos e
enfermeiros nunca se afigurou tão importante. A defesa da vida digna de quem
está a trabalhar neste momento, a desinfecção geral dos locais de trabalho e
das vias públicas, a reflexão sobre o que é necessário fazer em relação ao que
se vai passar a longo prazo, dando voz aos cientistas, o foco nas famílias
trabalhadoras, nos seus filhos, no direito à saúde e à vida com dignidade deve,
mais do que nunca, sobrepor-se, com a força que seja necessária, à velhíssima
lógica do lucro, e da predação irresponsável de alguns.
*A autora escreve ao abrigo do
Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)
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