Uma conjuntura adversa, onde
os canais de distribuição se encontram restritos pelos mesmos do costume e não
existem alternativas para contrabalançar as contas, afecta sobretudo os
trabalhadores.
António Ribeiro | AbrilAbril |
opinião
Ao longo do surto de Covid-19,
várias foram as empresas que se mobilizaram em verdadeiras campanhas
filantrópicas para auxiliar os mais diversos países e sectores. É certo que,
numa primeira análise, poderíamos facilmente concordar que este tipo de iniciativas
são verdadeiras e genuínas acções sociais e que, de facto, nesta altura todos
devemos ajudar a combater o dito inimigo comum.
Na Europa e nos EUA,
multinacionais como a Unilever ou a Nestlé anunciaram importantes medidas de
ajuda a sectores como a hotelaria, restauração e cafés, disponibilizando várias
centenas de milhões de euros para este efeito. Dado o estado geral da pandemia,
estas medidas parecem quase contraproducentes, tendo em conta que estes são os
sectores que terão mais dificuldades em voltar à normalidade, com uma taxa de
recuperação bastante lenta em consequência do forte impacto que sofreram. Se
retirarmos o carácter solidário, não parece haver mais nenhum motivo para estas
multinacionais lançarem este tipo de campanhas.
Todo esta aparente solidariedade
até nos faz esquecer que no ano passado, a Nestlé, por exemplo, anunciou nos
EUA o lay-off de 4000 pessoas a ser realizado até Outubro, tendo como
pretexto a reestruturação da sua estrutura logística. Na altura, a Covid-19 não
era uma opção argumentativa para o efeito. Já este ano, e apesar das
adversidades, a empresa anunciou recentemente um crescimento de 4,3% nos
primeiros três meses de 2020, salientando que se tratou do crescimento mais
acentuado nos últimos cinco anos na Europa e nos EUA. Tudo isto manifestou-se
recentemente numa subida importante das acções da empresa em bolsa de 1,4%.
A ironia e o desconforto apenas
surgem quando comparamos o tratamento e as condições laborais de que esses
trabalhadores têm sido alvo nos últimos anos e os confrontamos com os rasgados
elogios que têm recebido. Há, presentemente, uma espécie de clarividência sobre
a relevância do seu trabalho por parte de todos, que tanto jeito teria dado em
lutas anteriores.
É certo que cadeias de
distribuição, como a Jerónimo Martins, anunciam o pagamento de um prémio
suplementar superior ao de anos anteriores. Contudo, é de lamentar que este
benefício seja pontual e que seja preciso uma pandemia desta ordem de grandeza
para enaltecer de forma mais significativa a força de trabalho.
Para além dos incentivos, outra
das grandes bandeiras utilizadas pela grande distribuição contra a pandemia é a
aposta na produção nacional. Basta fazermos uma pesquisa rápida nos sites das
principais cadeias para encontrar percentagens elevadíssimas de fornecedores
nacionais.
Algumas cadeias, como a Jerónimo
Martins ou a Auchan, falam em números superiores a 80%. É importante salientar
que esta bandeira não é nova. Desde meados do ano 2000 começámos a assistir a
inúmeras campanhas e iniciativas de promoção de consumo de produtos de produção
nacional, como é o caso do Movimento 560, criado em 2005 com o objectivo de
promover marcas e produtos fabricados em Portugal.
Este movimento chegou a
desenvolver uma campanha onde defendia que um cabaz de compras de 100
euros por mês de produtos portugueses teria efeitos muito positivos na
economia, e que esta acção ajudaria mesmo a criar postos de trabalho!
Agora, com a Covid-19, esta
manobra de marketing ganha um peso substancialmente maior, dado o
estado actual da economia. Todos sabemos que quanto melhor for passada esta
mensagem pela grande distribuição, maior é a probabilidade de atrair
consumidores mais patrióticos.
É verdade que a produção nacional
se encontra num estado de franca debilidade e que os efeitos nefastos desta
pandemia não auguram nada de bom para os próximos tempos. Para além do estado
actual da economia também a apreensão quanto aos desenvolvimentos futuros é um
factor de preocupação. Contudo, as elevadas percentagens de fornecedores
nacionais descritas pela grande distribuição e os seus mais recentes resultados
financeiros levantam uma questão: se no meio desta pandemia os números para a
grande distribuição são positivos, por que motivo não se verificam números semelhantes
do lado dos produtores?
É estranho como o aumento do
consumo devido à pandemia se traduz apenas nos números da grande distribuição e
não numa melhoria significativa das empresas da indústria alimentar nacional
que são, em grande medida, os seus principais fornecedores.
Todos sabemos das sentenças desde
há muito impostas pela grande distribuição aos produtores e que os obrigam a
absorver uma boa parte do risco do negócio. Factores como os elevados prazos
médios de pagamento a fornecedores, taxas e penalizações de venda, restrições
de políticas de preço e repartição de lucro penalizam o agente produtor.
Em muitos casos, estas situações agravam-se tanto mais quanto maior for a dependência do produto de uma ou mais cadeias de distribuição.
Para além disso, o produtor tem
muitas vezes que acompanhar preços e promoções e assumir quase na sua
totalidade o valor do produto. Porventura, são estes os motivos (entre outros)
que não nos permitem identificar quais os sectores ou empresas da indústria
alimentar que conseguiram acompanhar o crescimento da grande distribuição e tenham
apresentado igualmente bons resultados.
Como vimos no início, a nível
internacional é mais fácil encontrar exemplos de empresas, como a Nestlé, que
apresentaram índices de crescimento por via do aumento da procura. Sabemos que
grupos de grande dimensão tem maior capacidade financeira para suportar
prazos médios de pagamento maiores e têm, igualmente, maior capacidade
negocial, o que os coloca em melhor posição para forçar a grande distribuição a
partilhar o risco.
Analisando, à luz disto tudo, as
medidas propostas por estas empresas tendo como principal objectivo revitalizar
canais de distribuição como hotéis, restaurantes e cafés, estas parecem agora
fazer mais sentido.
Mais do que uma acção solidária,
os grupos económicos têm significativo interesse em reabilitar tão cedo quanto
possível estes canais de distribuição, uma vez que eles representam um parceiro
de negócio bem mais acessível, por apresentarem uma capacidade negocial mais
baixa e em que o conjunto de critérios de negócio é estabelecido pelo vendedor
e não pelo comprador: prazos de entrega, quantidades mínimas de encomenda,
políticas de preços, etc.
Assim, tal como para as grandes
multinacionais do sector alimentar, também para a produção nacional é
importante ter um conjunto de canais de distribuição diversificado e que
apresente características diferentes para que, desta forma, não fique refém da grande
distribuição para o escoamento dos seus produtos.
Já todos tínhamos percebido que,
durante esta pandemia e nas empresas ligadas à grande distribuição, o esforço
está a incidir fundamentalmente nos trabalhadores, em especial sobre os que têm
vínculos laborais mais precários. Sabemos, igualmente, que teremos de lutar
muito para impedir que os danos na vida das pessoas não sejam irreversíveis.
Mas falta-nos perceber qual será, a longo prazo, o impacto de uma conjuntura
adversa onde os canais de distribuição se encontram restritos pelos mesmos do
costume e não existem alternativas para contrabalançar as contas nos
trabalhadores das empresas de produção nacional.
No imediato, uma coisa já podemos
constatar: fruto das exigências habituais das cadeias de distribuição e da
ganância dos seus parceiros, assistimos com tristeza a casos como os da
Avipronto, na Azambuja, ou o da Raporal, no Montijo, dois importantes
fornecedores da grande distribuição, onde os trabalhadores se viram forçados a
continuar a operar mesmo sem as condições mínimas de segurança e saúde no
trabalho.
Imagem: Mário Caldeira // Lusa
Sem comentários:
Enviar um comentário