Anselmo Crespo | Diário de Notícias
| opinião
A mesa onde agora me sento para
almoçar com os meus colegas de trabalho é a mesma onde, nos últimos anos,
passámos horas a fio a discutir e a tomar decisões. E o almoço, esse, não
dispensa os cuidados do senhor Manuel e da dona Lina, gente boa que aos 63 anos
trata os clientes do takeaway como se estivessem sentados à mesa do
seu restaurante.
Foi durante um destes almoços,
dignos de filme de época, que, em conversa de deitar fora, se comentava como as
discussões políticas em Portugal já não são apenas entre esquerda e direita,
mas transformaram-se, quase todas, numa guerra de "fascistas" e
"marxistas". Como se nenhum moderado ou democrata tivesse cabimento
lá no meio.
Para não puxar ainda mais o filme
atrás, atentem apenas às duas últimas duas semanas.
Rui Tavares e a telescola. Uma
mentira repetida muitas vezes não só não se torna verdadeira como não passa a
ser catalogada como uma notícia falsa. Uma mentira é isso mesmo: uma mentira.
Nesta semana, alguns partidos de extrema-direita, secundados por um
eurodeputado do CDS e, depois, pelo próprio CDS, decidiram espalhar pelas redes
sociais que Rui Tavares - professor, historiador e fundador do Livre - estava a
dar aulas de História na telescola. Ainda que fosse verdade, não só não seria
um crime de lesa-pátria como os alunos estariam muito bem entregues.
Acontece que não é verdade. Rui
Tavares aparece num vídeo, retirado de um programa que fez para a RTP, a falar
do Portugal governado por Salazar. Não aparece a fazer um comício, aparece a
dar factos históricos.
Mas isso - os factos - nunca
impediu os que vivem numa cegueira ideológica, cheios de esqueletos no armário
e de contas para ajustar, de atirarem lama.
Seria menos grave se esta
polémica de algibeira tivesse ficado circunscrita à bolha das redes sociais.
Mas não. O CDS decidiu acelerar ainda mais a ventoinha - com perguntas ao
Governo -, continuando o seu haraquiri partidário.
O 1.º de Maio. A cegueira
ideológica da direita, lamentavelmente, tem paralelo na esquerda. Com o país em
estado de emergência e os portugueses fechados em casa há quase dois meses, a
CGTP decidiu transportar em autocarros mil sindicalistas, vindos de concelhos
de onde não podiam legalmente sair, e posicioná-los, de três em três metros,
para as objetivas das câmaras fotográficas e de televisão.
Quem se atreveu a criticar -
legitimamente - foi imediatamente catalogado de fascista, capitalista e de
outras coisas acabadas em "ista" que não adianta agora aqui referir.
Entrevista à ministra da Saúde. É,
porventura, o exemplo acabado deste baixo nível a que a discussão política em
Portugal desce tantas vezes. A entrevista que Marta Temido deu à SIC, conduzida
pelo Rodrigo Guedes de Carvalho, foi alvo dos comentários mais idiotas nas
redes sociais.
A equação é fácil e, sobretudo,
básica: se o jornalista fez perguntas difíceis, se não "largou"
enquanto não encontrou resposta para essas perguntas - como tem de ser -, só
pode ser de direita. Claro que se o Governo fosse do PSD, o mesmo jornalista,
fazendo o mesmo trabalho, só podia ser de esquerda.
Com a devida distância social,
sentados à mesa do almoço, recordava-me o Pedro - que é mais do que um parceiro
de almoço - que esta "carne viva" que vivemos hoje, capaz de nos
catalogar a todos entre "fascistas" e "marxistas", começou
no período da troika e renasceu agora nesta nova crise que estamos a
viver. Entre os incendiários ressabiados e reincidentes, que andam
permanentemente a tentar transformar o espaço público numa espécie de PREC, e
os pobres de espírito, que encontram numa publicação no Facebook o palco que
nunca alcançaram por mérito próprio, é a democracia que sai mais frágil.
*Jornalista
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