sexta-feira, 8 de maio de 2020

Martin Luther King Jr. e a luta pela igualdade social


Tom Mackaman e Niles Niemuth | WSWS

Na segunda-feira, os Estados Unidos comemoraram o Dia de Martin Luther King Jr., um feriado que marca o nascimento do líder dos direitos civis.

Desde a sua criação nos anos 1980, o feriado teve como objetivo transformar King em um ícone inofensivo da conciliação social, ofuscando ao mesmo tempo suas críticas radicais ao capitalismo e ao militarismo estadunidenses. Mas hoje, em 2020, isso foi somado a um novo impulso. A concepção de King de um movimento democrático de massa pelos direitos civis baseado na ação unificada de todas as seções oprimidas da população está sendo substituída por uma narrativa essencialmente racialista que apresenta toda a história dos EUA em termos de uma luta entre brancos e negros. Essa narrativa racial exige a marginalização do papel histórico de King.

Isso se mostra claramente no Projeto 1619 do New York Times, que faz uma “reformulação” da história das relações raciais estadunidense sem mencionar King. Isso não é um descuido por parte de um projeto que se declara nada menos do que um novo currículo para a educação básica. O centro da política de King - a luta pela igualdade - é contrária aos objetivos do liberalismo contemporâneo, que é baseado em uma luta por privilégios dentro da classe média alta.

King, um pastor e teólogo batista, tornou-se o mais proeminente líder e voz da massiva luta dos direitos civis pela igualdade racial que surgiu no período após a Segunda Guerra Mundial - desde o boicote dos ônibus de Montgomery contra a segregação Jim Crow no estado do Alabama em 1955 até 1968, quando King foi assassinado em Memphis, no estado do Tennessee, enquanto estava apoiando os lixeiros em greve.

King nasceu na cidade de Atlanta, Georgia em 1929, durante um período que os acadêmicos chamaram de o “pior momento” das relações raciais nos EUA. No Sul durante as leis Jim Crow, a partir dos anos 1890, um conjunto de leis retirou o direito ao voto da ampla maioria dos negros. Todos os espaços públicos foram segregados pela lei ou pelo costume - escolas e faculdades; ônibus, trens, bondes; bebedouros e banheiros; restaurantes e cinemas. O casamento inter-racial era ilegal e mesmo interações casuais entre brancos e negros, por exemplo em calçadas, aconteceriam dentro de uma etiqueta criada para humilhar e depreciar os negros.

O Partido Democrata governou o Sul durante as leis Jim Crow sem ser desafiado. Por trás dele havia a ameaça constante da violência racista sancionada pelo governo. Estima-se que multidões e gangues de assassinos lincharam mais de 4 mil negros no Sul dos anos 1870 até os anos 1940.

Contudo, o racismo não era um fim em si próprio. Conforme C. Vann Woodward estabeleceu há muito tempo em A estranha carreira de Jim Crow (1955), ele foi imposto como uma resposta direta ao movimento Populista de fazendeiros pobres, que, nos anos 1880, havia levantado o espectro da união inter-racial entre os oprimidos. O fato de que o livro de Woodward era tido como “a bíblia histórica” do movimento dos direitos civis refletia a concordância desse movimento com sua decisiva conclusão, que, como King disse, “a segregação racial como um estilo de vida não surgiu como um resultado natural do ódio entre as raças” - a posição promovida pelo Projeto 1619 - mas “foi na verdade um estratagema político empregado pelos interesses dos Bourbon no Sul para manter as massas sulistas divididas e o trabalho sulista o mais barato na região”.

O movimento Populista entrou em colapso algumas décadas antes do nascimento de King. A sua incapacidade de superar a oligarquia sulista foi resultado da sua composição social de fazendeiros rurais isolados, uma seção indiferenciada e em rápido declínio da população. Ainda assim, suas conquistas foram extraordinárias. Abalando o sistema de dois partidos até as suas bases, o desafio do Populismo ao capitalismo impulsionou em última instância o surgimento do socialismo estadunidense.




A “grande migração” e o crescimento da classe trabalhadora

Apesar de King buscar inspiração no Populismo, o que ofereceu a base para o movimento dos direitos civis foi, em última instância, uma transformação muito mais profunda, a partir do poderoso desenvolvimento do capitalismo estadunidense: o desenvolvimento da classe trabalhadora.

Em 1900, depois da derrota do movimento Populista, 90% dos afro-americanos viviam no Sul, a maioria isolada em regiões rurais. Nos anos 1920, mais de 1,5 milhão de negros deixaram o Sul e foram para cidades do Norte em busca de trabalho assalariado. Muitos outros se mudaram para as cidades do Sul - incluindo Atlanta, onde King nasceu, assim como as cidades industriais do estado do Alabama, Birmingham e Montgomery, que deram origem ao movimento dos direitos civis moderno. Até 1960, apenas 15% dos afro-americanos permaneciam nas fazendas, uma transformação social dramática que os historiadores chamam hoje de Grande Migração.

Nas cidades, os migrantes negros enfrentaram novas formas de racismo e, como nas cidades de East St. Louis em 1917 e de Chicago em 1919, ocasionais ataques de grande violência, tipicamente organizados por seus oponentes históricos no Partido Democrata. Mesmo assim, é inegável que esse vasto movimento - do interior para a cidade, da fazenda para a fábrica, e do Sul para o Norte e o Oeste - foi um acontecimento intensamente libertador. Seu impacto na cultura estadunidense foi revigorante.

A chegada às cidades dessas pessoas brutalmente oprimidas, apenas meio século após a escravidão, originou o crescimento cultural e intelectual associado ao “Harlem Renaissance” (Renascimento do Harlem), as primeiras organizações políticas de massa e sindicatos afro-americanos, assim como as grandes formas de música popular, incluindo ragtime, rhythm e blues, jazz, e rock and roll.

A Grande Migração tornou os trabalhadores afro-americanos uma decisiva seção da classe trabalhadora. Porém, a fusão dessa classe, atravessando divisões raciais e nacionais, não era uma tarefa fácil em condições nas quais os empresários capitalistas sabiam que poderiam colocar os trabalhadores – brancos, negros, imigrantes – uns contra os outros em uma competição por salários. A Federação Estadunidense do Trabalho (AFL), que está entre as organizações trabalhistas mais provinciais e reacionárias no mundo, incentivou essas divisões. A maioria dos seus sindicatos impôs exclusões raciais contra os negros e incitou a hostilidade aos imigrantes. Socialistas reformistas que se alinharam à AFL, como Victor Berger, da cidade de Milwaukee, no estado de Wisconsin, também excluíram negros de sua concepção de classe trabalhadora.

Nessas condições - o surgimento de uma poderosa classe trabalhadora industrial, porém limitada por formas de organização obsoletas -, a Revolução Russa de 1917 teve um enorme impacto. Entre os intelectuais negros inspirados pelos bolcheviques estavam Claude McKay, Jean Toomer, Langston Hughes, Paul Robeson, e A. Philip Randolph, que foi cocriador da revista socialista The Messenger em 1917 e, depois, liderou o maior sindicato predominantemente negro, a Irmandade dos Carregadores de Bagagem (Brotherhood of Sleeping Car Porters).

Esses intelectuais imediatamente compararam a situação deles com a dos judeus sob a aparentemente eterna dinastia Romanov. “Para os negros estadunidenses, o fato indiscutível e de destaque da Revolução Russa”, explicou McKay em 1921, “é que um punhado de judeus, proporcionalmente muito menores do que o número de negros na população dos EUA, adquiriu, através da Revolução, todos os direitos políticos e sociais negados a eles sob o regime do Czar”.

No Norte, os socialistas assumiram a dianteira na luta pelos grandes sindicatos industriais no setor automotivo, frigorífero, da borracha e siderúrgico, insistindo que os negros fossem aceitos em pé de igualdade com todos os outros. Mesmo no extremo Sul, os socialistas lutaram sob a bandeira da Revolução Russa nos anos 1920 e 1930, ganhando o apoio de trabalhadores militantes, negros e brancos, em lugares como o estado do Alabama, onde a defesa dos Garotos de Scottsboro, nove jovens afro-americanos falsamente acusados de estupro, ganhou o apoio dos trabalhadores no mundo inteiro. É difícil exagerar ao falar sobre o heroísmo desses trabalhadores, que resistiram à ira da polícia sulista, assim como à Ku Klux Klan.

Os stalinistas do Partido Comunista, junto à burocracia supostamente esquerdista do Congresso das Organizações Industriais (CIO), traíram esses trabalhadores em nome da sua aliança com o Partido Democrata, cuja ala sulista permanecia nas mãos da oligarquia supremacista branca. Mesmo assim, o socialismo permaneceu causa de grande irritação para os políticos pró-Jim Crow, que viam em toda agitação de trabalhadores sulistas o trabalho de “provocadores externos” e “comunistas”. Além disso, apesar dos maiores esforços dos reacionários difamadores da esquerda, o socialismo continuou a influenciar uma camada de intelectuais e líderes sulistas.

A importância de King

King não era um marxista ou revolucionário. Porém, suas simpatias socialistas, e aquelas de sua esposa, Coretta Scott King, eram conhecidas. Ele defendeu uma reestruturação econômica significativa da sociedade estadunidense, embora não chamasse pela derrubada do sistema capitalista. Apesar de adaptar cautelosamente a sua política às pressões do clima anticomunista nos Estados Unidos dos anos 1950, King falava uma linguagem completamente incompatível com a narrativa racial dos atuais nacionalistas pequeno-burgueses privilegiados de direita.

O comunismo “deve nos desafiar primeiro a nos preocuparmos mais com a justiça social”, disse King em um sermão proferido pela primeira vez em 1953. “Por mais que muito esteja errado com o comunismo, nós precisamos admitir que ele surgiu como um protesto contra as dificuldades daqueles que não são privilegiados. O Manifesto Comunista, que foi publicado em 1847 por Marx e Engels enfatiza em todas as suas partes como a classe média explorou a classe baixa. O comunismo enfatiza uma sociedade sem classes. O comunismo busca transcender as superficialidades de raça e cor, e você pode aderir ao partido comunista qualquer que seja a cor de sua pele ou a qualidade do sangue nas suas veias”.

King articulou eloquentemente os sentimentos democráticos dos estadunidenses de todas as raças e etnias, que estavam lutando para derrubar as barreiras artificiais levantadas pela classe dominante em um esforço consciente para dividir a classe trabalhadora.

Em um sermão de 1965, King explicou que as “majestosas palavras” da Declaração de Independência escrita por Thomas Jefferson, que “todos os homens são criados iguais”, eram a base do movimento dos direitos civis. Ele não via aquele documento, que dava expressão aos princípios do Iluminismo, que motivaram a Revolução Americana, como uma narrativa cínica ou uma mentira - como a representante do Projeto 1619, Nikole Hannah-Jones, vê a Declaração -, mas como uma promessa ainda não cumprida, “elevada a proporções cósmicas” e que o movimento dos direitos civis estava lutando para tornar uma realidade.

Ele e muitos outros que fizeram parte do movimento de massa nos anos 1950 e 1960 entendiam muito bem que nenhum progresso duradouro poderia ser alcançado sem a união da classe trabalhadora e reconheciam que, sob o capitalismo, os trabalhadores estavam sendo oprimidos independentemente da cor de sua pele.

Escrevendo em 1958, King disse que dois verões de trabalho em uma fábrica quando era adolescente haviam exposto ele à “injustiça econômica em primeira mão, e percebi que o branco pobre era explorado tanto quanto o negro. Através dessas experiências iniciais eu cresci profundamente consciente das variedades de injustiça na nossa sociedade”.

Independentemente do assassinato de King ter sido ou não apenas o trabalho do criminoso James Earl Ray, é um fato documentado que, desde o início dos anos 1960, o FBI sob J. Edgar Hoover tinha como objetivo destruir o líder dos direitos civis através de uma campanha de truques sujos, vazamentos na mídia, intensa vigilância e até mesmo incentivando King a se matar. “Mesmo assim, de algum modo”, escreveu o historiador William Chafe, “King saiu desses eventos como um líder mais forte, mais resoluto, mais corajoso”.
King respondeu ao ataque do FBI em 1967 lançando sua Campanha dos Pobres inter-racial, uma iniciativa buscando justiça econômica para todos os estadunidenses empobrecidos. Ele também se tornou um dos mais abertos críticos da chacina dos EUA no Vietnã, denunciando de forma marcante o governo dos EUA como o “maior criador da violência hoje” em seu discurso na Igreja Riverside em 1967.

King havia se convencido, disse ele ao seu gabinete no mesmo ano, “que não podemos resolver nossos problemas agora até que haja uma radical redistribuição de poder econômico e político”. Era o momento, ele disse, “de levantar certas questões básicas sobre a toda a sociedade... Nós estamos engajados em uma luta de classes... lidando com o problema do abismo entre aqueles que têm e aqueles que não têm”.

O reconhecimento de King da necessidade da luta inter-racial e das contribuições dos brancos para o movimento dos direitos civis sustentou a crítica de King ao separatismo racial apoiado pelo movimento Black Power, que ele chamou corretamente, em 1967, de “um grito de decepção... nascido das feridas do desespero”.

King e o Projeto 1619

A guinada de King para a esquerda alarmou líderes dos direitos civis conservadores. Para eles, King respondeu - em palavras que ecoam com a mesma força contra os “especialistas raciais” generosamente financiados de hoje -: “O que vocês estão dizendo pode lhes dar uma bolsa em uma fundação, mas não vai levá-los ao Reino da Verdade”.

A lógica dessas posições, de fato do trabalho de toda a sua vida, colocou King em uma rota de colisão com o Partido Democrata - o mesmo partido que governou o Sul durante as leis Jim Crow e os aparatos políticos das grandes cidades no Norte, e que havia levado os Estados Unidos ao Vietnã. Mesmo se as suas limitações políticas o fizeram adiar esse acerto de contas até o fim, o trabalho de sua vida teve um real impacto nas vidas de milhões.

Hoje, os princípios universais e iluministas, pelos quais King lutou e defendeu, estão sendo ferozmente atacados. É impressionante que, no Projeto 1619, a iniciativa do Times de escrever a “verdadeira” história dos EUA como tendo origem na escravidão e no racismo, a contribuição de King para a luta pela igualdade seja totalmente ignorada. Isso não representa uma interpretação diferente dos fatos ou um mero descuido, mas uma verdadeira falsificação histórica.

O Times procura impor uma nova “narrativa” sobre a história dos EUA, segundo a qual o racismo contra o negro é apresentado como uma característica imutável do “DNA estadunidense”. Isso, defende Hannah-Jones, surgiu do “pecado original” da escravidão, que não foi em si causada pela exploração do trabalho, mas pelo racismo branco contra os negros.

Promovido pelo Centro Pulitzer para Cobertura de Crises, que é amplamente financiado por corporações e bilionários, o Projeto 1619 propõe-se como um novo currículo para a educação pública. Escolas em péssimas condições e crianças famintas da cidade de Chicago até Buffalo estão recebendo planos de aula que defendem que a Revolução Americana e a Guerra Civil foram conspirações para perpetuar o racismo branco, e que todo o tipo de problemas sociais contemporâneos - falta de acesso à saúde, obesidade, congestionamentos no tráfego, etc. - são resultados diretos da escravidão.

Seguindo outros importantes historiadores entrevistados pelo WSWS, o professor Clayborn Carson da Universidade de Stanford, diretor do Instituto de Pesquisa e Educação Martin Luther King, Jr., criticou o Projeto 1619 do ponto de vista do seu tratamento da história, sua falta de compromisso com a Revolução Americana, e o obscuro e rápido processo de sua elaboração. Ele foi além, entretanto, fazendo poderosas observações sobre King e o movimento dos direitos civis que ele passou a liderar - dois assuntos quase inteiramente ausentes no Projeto 1619.

Carson apontou que os ideais da Revolução Americana e o Iluminismo tiveram um papel decisivo no movimento dos direitos civis e no papel do próprio King como um líder político. Carson explicou: “Uma maneira de abordar a criação deste país é entender a ousadia de algumas centenas de homens brancos da elite se reunindo e declarando um país - e declarando-o um país baseados na noção dos direitos humanos”.

“Obviamente, eles estavam sendo hipócritas, mas também foi audacioso. E é disso que se tratam direitos”, apontou Carson. “É a história de pessoas dizendo, ‘Eu declaro que tenho o direito de determinar o meu destino, e nós temos coletivamente o direito de determinar o nosso destino’. Essa é a história de todos os movimentos, todos os movimentos de liberdade na história do mundo. Em algum momento você tem que chegar naquele ponto em que você precisa dizer isso, publicamente, e lutar por isso.”

São esses princípios e perspectiva que estão sendo rejeitados explicitamente pelo New York Times conforme as camadas de classe média organizam diversas formas de política identitária para competir por uma maior proporção das massivas quantidades de riqueza que têm sido depositadas nos cofres dos 1% mais ricos. Nessa luta por privilégios e riqueza, os princípios políticos que King defendeu não têm lugar e, portanto, ele também precisa ser removido da narrativa histórica.

Nas imagens: 1 - Martin Luther King, Jr. durante discurso em marcha de 1963 até Washington; 2 - Martin Luther King, Jr. e Coretta Scott King lideram marcha de 1965 de Selma até Montgomery pelo direito ao voto


Publicado originalmente em 23 de janeiro de 2020

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