Tom
Mackaman e Niles Niemuth | WSWS
Na
segunda-feira, os Estados Unidos comemoraram o Dia de Martin Luther King Jr.,
um feriado que marca o nascimento do líder dos direitos civis.
Desde
a sua criação nos anos 1980, o feriado teve como objetivo transformar King em
um ícone inofensivo da conciliação social, ofuscando ao mesmo tempo suas
críticas radicais ao capitalismo e ao militarismo estadunidenses. Mas hoje, em
2020, isso foi somado a um novo impulso. A concepção de King de um movimento
democrático de massa pelos direitos civis baseado na ação unificada de todas as
seções oprimidas da população está sendo substituída por uma narrativa
essencialmente racialista que apresenta toda a história dos EUA em termos de
uma luta entre brancos e negros. Essa narrativa racial exige a marginalização
do papel histórico de King.
Isso
se mostra claramente no Projeto 1619 do New York Times, que faz uma
“reformulação” da história das relações raciais estadunidense sem mencionar
King. Isso não é um descuido por parte de um projeto que se declara nada menos
do que um novo currículo para a educação básica. O centro da política de King -
a luta pela igualdade - é contrária aos objetivos do liberalismo contemporâneo,
que é baseado em uma luta por privilégios dentro da classe média alta.
King,
um pastor e teólogo batista, tornou-se o mais proeminente líder e voz da
massiva luta dos direitos civis pela igualdade racial que surgiu no período
após a Segunda Guerra Mundial - desde o boicote dos ônibus de Montgomery contra
a segregação Jim Crow no estado do Alabama em 1955 até 1968, quando King foi
assassinado em Memphis, no estado do Tennessee, enquanto estava apoiando os
lixeiros em greve.
King
nasceu na cidade de Atlanta, Georgia em 1929, durante um período que os
acadêmicos chamaram de o “pior momento” das relações raciais nos EUA. No Sul
durante as leis Jim Crow, a partir dos anos 1890, um conjunto de leis retirou o
direito ao voto da ampla maioria dos negros. Todos os espaços públicos foram
segregados pela lei ou pelo costume - escolas e faculdades; ônibus, trens,
bondes; bebedouros e banheiros; restaurantes e cinemas. O casamento
inter-racial era ilegal e mesmo interações casuais entre brancos e negros, por exemplo
em calçadas, aconteceriam dentro de uma etiqueta criada para humilhar e
depreciar os negros.
O
Partido Democrata governou o Sul durante as leis Jim Crow sem ser desafiado.
Por trás dele havia a ameaça constante da violência racista sancionada pelo governo.
Estima-se que multidões e gangues de assassinos lincharam mais de 4 mil negros
no Sul dos anos 1870 até os anos 1940.
Contudo,
o racismo não era um fim em si próprio. Conforme C. Vann Woodward estabeleceu
há muito tempo em A estranha carreira de Jim Crow (1955), ele foi
imposto como uma resposta direta ao movimento Populista de fazendeiros pobres,
que, nos anos 1880, havia levantado o espectro da união inter-racial entre os
oprimidos. O fato de que o livro de Woodward era tido como “a bíblia histórica”
do movimento dos direitos civis refletia a concordância desse movimento com sua
decisiva conclusão, que, como King disse, “a segregação racial como um estilo
de vida não surgiu como um resultado natural do ódio entre as raças” - a
posição promovida pelo Projeto 1619 - mas “foi na verdade um estratagema
político empregado pelos interesses dos Bourbon no Sul para manter as massas
sulistas divididas e o trabalho sulista o mais barato na região”.
O
movimento Populista entrou em colapso algumas décadas antes do nascimento de
King. A sua incapacidade de superar a oligarquia sulista foi resultado da sua
composição social de fazendeiros rurais isolados, uma seção indiferenciada e em
rápido declínio da população. Ainda assim, suas conquistas foram
extraordinárias. Abalando o sistema de dois partidos até as suas bases, o
desafio do Populismo ao capitalismo impulsionou em última instância o
surgimento do socialismo estadunidense.
A
“grande migração” e o crescimento da classe trabalhadora
Apesar
de King buscar inspiração no Populismo, o que ofereceu a base para o movimento
dos direitos civis foi, em última instância, uma transformação muito mais
profunda, a partir do poderoso desenvolvimento do capitalismo estadunidense: o
desenvolvimento da classe trabalhadora.
Em
1900, depois da derrota do movimento Populista, 90% dos afro-americanos viviam
no Sul, a maioria isolada em regiões rurais. Nos anos 1920, mais de 1,5 milhão
de negros deixaram o Sul e foram para cidades do Norte em busca de trabalho
assalariado. Muitos outros se mudaram para as cidades do Sul - incluindo
Atlanta, onde King nasceu, assim como as cidades industriais do estado do
Alabama, Birmingham e Montgomery, que deram origem ao movimento dos direitos
civis moderno. Até 1960, apenas 15% dos afro-americanos permaneciam nas
fazendas, uma transformação social dramática que os historiadores chamam hoje
de Grande Migração.
Nas
cidades, os migrantes negros enfrentaram novas formas de racismo e, como nas
cidades de East St. Louis em 1917 e de Chicago em 1919, ocasionais ataques de
grande violência, tipicamente organizados por seus oponentes históricos no
Partido Democrata. Mesmo assim, é inegável que esse vasto movimento - do
interior para a cidade, da fazenda para a fábrica, e do Sul para o Norte e o
Oeste - foi um acontecimento intensamente libertador. Seu impacto na cultura
estadunidense foi revigorante.
A
chegada às cidades dessas pessoas brutalmente oprimidas, apenas meio século
após a escravidão, originou o crescimento cultural e intelectual associado ao
“Harlem Renaissance” (Renascimento do Harlem), as primeiras organizações
políticas de massa e sindicatos afro-americanos, assim como as grandes formas
de música popular, incluindo ragtime, rhythm e blues, jazz, e
rock and roll.
A
Grande Migração tornou os trabalhadores afro-americanos uma decisiva seção da
classe trabalhadora. Porém, a fusão dessa classe, atravessando divisões raciais
e nacionais, não era uma tarefa fácil em condições nas quais os empresários
capitalistas sabiam que poderiam colocar os trabalhadores – brancos, negros,
imigrantes – uns contra os outros em uma competição por salários. A Federação
Estadunidense do Trabalho (AFL), que está entre as organizações trabalhistas
mais provinciais e reacionárias no mundo, incentivou essas divisões. A maioria
dos seus sindicatos impôs exclusões raciais contra os negros e incitou a
hostilidade aos imigrantes. Socialistas reformistas que se alinharam à AFL,
como Victor Berger, da cidade de Milwaukee, no estado de Wisconsin, também
excluíram negros de sua concepção de classe trabalhadora.
Nessas
condições - o surgimento de uma poderosa classe trabalhadora industrial, porém limitada
por formas de organização obsoletas -, a Revolução Russa de 1917 teve um enorme
impacto. Entre os intelectuais negros inspirados pelos bolcheviques estavam
Claude McKay, Jean Toomer, Langston Hughes, Paul Robeson, e A. Philip Randolph,
que foi cocriador da revista socialista The Messenger em 1917 e,
depois, liderou o maior sindicato predominantemente negro, a Irmandade dos
Carregadores de Bagagem (Brotherhood of Sleeping Car Porters).
Esses
intelectuais imediatamente compararam a situação deles com a dos judeus sob a
aparentemente eterna dinastia Romanov. “Para os negros estadunidenses, o fato
indiscutível e de destaque da Revolução Russa”, explicou McKay em 1921, “é que
um punhado de judeus, proporcionalmente muito menores do que o número de negros
na população dos EUA, adquiriu, através da Revolução, todos os direitos
políticos e sociais negados a eles sob o regime do Czar”.
No
Norte, os socialistas assumiram a dianteira na luta pelos grandes sindicatos
industriais no setor automotivo, frigorífero, da borracha e siderúrgico,
insistindo que os negros fossem aceitos em pé de igualdade com todos os outros.
Mesmo no extremo Sul, os socialistas lutaram sob a bandeira da Revolução Russa
nos anos 1920 e 1930, ganhando o apoio de trabalhadores militantes, negros e
brancos, em lugares como o estado do Alabama, onde a defesa dos Garotos de
Scottsboro, nove jovens afro-americanos falsamente acusados de estupro, ganhou
o apoio dos trabalhadores no mundo inteiro. É difícil exagerar ao falar sobre o
heroísmo desses trabalhadores, que resistiram à ira da polícia sulista, assim
como à Ku Klux Klan.
Os
stalinistas do Partido Comunista, junto à burocracia supostamente esquerdista
do Congresso das Organizações Industriais (CIO), traíram esses trabalhadores em
nome da sua aliança com o Partido Democrata, cuja ala sulista permanecia nas
mãos da oligarquia supremacista branca. Mesmo assim, o socialismo permaneceu
causa de grande irritação para os políticos pró-Jim Crow, que viam em toda
agitação de trabalhadores sulistas o trabalho de “provocadores externos” e
“comunistas”. Além disso, apesar dos maiores esforços dos reacionários
difamadores da esquerda, o socialismo continuou a influenciar uma camada de
intelectuais e líderes sulistas.
A
importância de King
King
não era um marxista ou revolucionário. Porém, suas simpatias socialistas, e
aquelas de sua esposa, Coretta Scott King, eram conhecidas. Ele defendeu uma
reestruturação econômica significativa da sociedade estadunidense, embora não
chamasse pela derrubada do sistema capitalista. Apesar de adaptar
cautelosamente a sua política às pressões do clima anticomunista nos Estados
Unidos dos anos 1950, King falava uma linguagem completamente incompatível com
a narrativa racial dos atuais nacionalistas pequeno-burgueses privilegiados de
direita.
O
comunismo “deve nos desafiar primeiro a nos preocuparmos mais com a justiça
social”, disse King em um sermão proferido pela primeira vez em 1953. “Por mais
que muito esteja errado com o comunismo, nós precisamos admitir que ele surgiu
como um protesto contra as dificuldades daqueles que não são privilegiados. O
Manifesto Comunista, que foi publicado em 1847 por Marx e Engels enfatiza em
todas as suas partes como a classe média explorou a classe baixa. O comunismo
enfatiza uma sociedade sem classes. O comunismo busca transcender as
superficialidades de raça e cor, e você pode aderir ao partido comunista
qualquer que seja a cor de sua pele ou a qualidade do sangue nas suas veias”.
King
articulou eloquentemente os sentimentos democráticos dos estadunidenses de
todas as raças e etnias, que estavam lutando para derrubar as barreiras
artificiais levantadas pela classe dominante em um esforço consciente para
dividir a classe trabalhadora.
Em
um sermão de 1965, King explicou que as “majestosas palavras” da Declaração de
Independência escrita por Thomas Jefferson, que “todos os homens são criados
iguais”, eram a base do movimento dos direitos civis. Ele não via aquele
documento, que dava expressão aos princípios do Iluminismo, que motivaram a
Revolução Americana, como uma narrativa cínica ou uma mentira - como a
representante do Projeto 1619, Nikole Hannah-Jones, vê a Declaração -, mas como
uma promessa ainda não cumprida, “elevada a proporções cósmicas” e que o
movimento dos direitos civis estava lutando para tornar uma realidade.
Ele
e muitos outros que fizeram parte do movimento de massa nos anos 1950 e 1960
entendiam muito bem que nenhum progresso duradouro poderia ser alcançado sem a
união da classe trabalhadora e reconheciam que, sob o capitalismo, os
trabalhadores estavam sendo oprimidos independentemente da cor de sua pele.
Escrevendo
em 1958, King disse que dois verões de trabalho em uma fábrica quando era
adolescente haviam exposto ele à “injustiça econômica em primeira mão, e
percebi que o branco pobre era explorado tanto quanto o negro. Através dessas
experiências iniciais eu cresci profundamente consciente das variedades de
injustiça na nossa sociedade”.
Independentemente
do assassinato de King ter sido ou não apenas o trabalho do criminoso James
Earl Ray, é um fato documentado que, desde o início dos anos 1960, o FBI sob J.
Edgar Hoover tinha como objetivo destruir o líder dos direitos civis através de
uma campanha de truques sujos, vazamentos na mídia, intensa vigilância e até
mesmo incentivando King a se matar. “Mesmo assim, de algum modo”, escreveu o
historiador William Chafe, “King saiu desses eventos como um líder mais forte,
mais resoluto, mais corajoso”.
King
respondeu ao ataque do FBI em 1967 lançando sua Campanha dos Pobres
inter-racial, uma iniciativa buscando justiça econômica para todos os
estadunidenses empobrecidos. Ele também se tornou um dos mais abertos críticos
da chacina dos EUA no Vietnã, denunciando de forma marcante o governo dos EUA
como o “maior criador da violência hoje” em seu discurso na Igreja Riverside em
1967.
King
havia se convencido, disse ele ao seu gabinete no mesmo ano, “que não podemos
resolver nossos problemas agora até que haja uma radical redistribuição de
poder econômico e político”. Era o momento, ele disse, “de levantar certas
questões básicas sobre a toda a sociedade... Nós estamos engajados em uma luta
de classes... lidando com o problema do abismo entre aqueles que têm e aqueles
que não têm”.
O
reconhecimento de King da necessidade da luta inter-racial e das contribuições
dos brancos para o movimento dos direitos civis sustentou a crítica de King ao
separatismo racial apoiado pelo movimento Black Power, que ele chamou
corretamente, em 1967, de “um grito de decepção... nascido das feridas do
desespero”.
King
e o Projeto 1619
A
guinada de King para a esquerda alarmou líderes dos direitos civis
conservadores. Para eles, King respondeu - em palavras que ecoam com a mesma
força contra os “especialistas raciais” generosamente financiados de hoje -: “O
que vocês estão dizendo pode lhes dar uma bolsa em uma fundação, mas não vai
levá-los ao Reino da Verdade”.
A
lógica dessas posições, de fato do trabalho de toda a sua vida, colocou King em
uma rota de colisão com o Partido Democrata - o mesmo partido que governou o
Sul durante as leis Jim Crow e os aparatos políticos das grandes cidades no
Norte, e que havia levado os Estados Unidos ao Vietnã. Mesmo se as suas
limitações políticas o fizeram adiar esse acerto de contas até o fim, o
trabalho de sua vida teve um real impacto nas vidas de milhões.
Hoje,
os princípios universais e iluministas, pelos quais King lutou e defendeu,
estão sendo ferozmente atacados. É impressionante que, no Projeto 1619, a iniciativa do Times de
escrever a “verdadeira” história dos EUA como tendo origem na escravidão e no
racismo, a contribuição de King para a luta pela igualdade seja totalmente
ignorada. Isso não representa uma interpretação diferente dos fatos ou um mero
descuido, mas uma verdadeira falsificação histórica.
O Times procura
impor uma nova “narrativa” sobre a história dos EUA, segundo a qual o racismo
contra o negro é apresentado como uma característica imutável do “DNA
estadunidense”. Isso, defende Hannah-Jones, surgiu do “pecado original” da
escravidão, que não foi em si causada pela exploração do trabalho, mas pelo
racismo branco contra os negros.
Promovido
pelo Centro Pulitzer para Cobertura de Crises, que é amplamente financiado por
corporações e bilionários, o Projeto 1619 propõe-se como um novo currículo para
a educação pública. Escolas em péssimas condições e crianças famintas da cidade
de Chicago até Buffalo estão recebendo planos de aula que defendem que a
Revolução Americana e a Guerra Civil foram conspirações para perpetuar o
racismo branco, e que todo o tipo de problemas sociais contemporâneos - falta
de acesso à saúde, obesidade, congestionamentos no tráfego, etc. - são
resultados diretos da escravidão.
Seguindo
outros importantes historiadores entrevistados pelo
WSWS, o professor Clayborn
Carson da Universidade de Stanford, diretor do Instituto de Pesquisa e
Educação Martin Luther King, Jr., criticou o Projeto 1619 do ponto de vista do
seu tratamento da história, sua falta de compromisso com a Revolução Americana,
e o obscuro e rápido processo de sua elaboração. Ele foi além, entretanto,
fazendo poderosas observações sobre King e o movimento dos direitos civis que
ele passou a liderar - dois assuntos quase inteiramente ausentes no Projeto
1619.
Carson
apontou que os ideais da Revolução Americana e o Iluminismo tiveram um papel
decisivo no movimento dos direitos civis e no papel do próprio King como um
líder político. Carson explicou: “Uma maneira de abordar a criação deste país é
entender a ousadia de algumas centenas de homens brancos da elite se reunindo e
declarando um país - e declarando-o um país baseados na noção dos direitos
humanos”.
“Obviamente,
eles estavam sendo hipócritas, mas também foi audacioso. E é disso que se
tratam direitos”, apontou Carson. “É a história de pessoas dizendo, ‘Eu declaro
que tenho o direito de determinar o meu destino, e nós temos coletivamente o
direito de determinar o nosso destino’. Essa é a história de todos os
movimentos, todos os movimentos de liberdade na história do mundo. Em algum
momento você tem que chegar naquele ponto em que você precisa dizer isso,
publicamente, e lutar por isso.”
São
esses princípios e perspectiva que estão sendo rejeitados explicitamente
pelo New York Times conforme as camadas de classe média organizam
diversas formas de política identitária para competir por uma maior proporção
das massivas quantidades de riqueza que têm sido depositadas nos cofres dos 1%
mais ricos. Nessa luta por privilégios e riqueza, os princípios políticos que
King defendeu não têm lugar e, portanto, ele também precisa ser removido da
narrativa histórica.
Nas imagens: 1 - Martin Luther King, Jr. durante discurso em marcha de 1963 até
Washington; 2 - Martin
Luther King, Jr. e Coretta Scott King lideram marcha de 1965 de Selma até
Montgomery pelo direito ao voto
Publicado
originalmente em 23 de janeiro de 2020
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