José Soeiro | Expresso | opinião
Cruzei-me pela primeira vez com
as ideias de Mário Centeno quando estava a fazer o meu doutoramento na
Faculdade de Economia, em
Coimbra. O pensamento de Centeno, especialista em economia do
trabalho, seria divulgado ao grande público através de uma obra publicada em
2013, pela Relógio d’Água e pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, que fala
por si. Em pleno período de austeridade, a sua tese assentava, entre outros,
nos seguintes pressupostos: i) Portugal tem um problema de “imobilismo” no
mercado de trabalho; ii) a legislação laboral “introduz restrições na eficiente
afetação dos trabalhadores aos postos de trabalho” (p.24); iii) cabe ao
legislador “remover estas distorções e fazer com que estes fluxos ocorram de
forma eficiente” (p.35); iv) “infelizmente, nem com a oportunidade política de
assistência externa as estamos a desmantelar” (p.38); v) a segmentação do
mercado de trabalho deve-se ao facto de a flexibilidade assentar na “dualidade
contratual” que faz com que “os mais precários paguem, sob a forma de salários
mais baixos, a proteção do emprego permanente” (p. 45); vi) “as dificuldades
dos jovens decorrem da legislação de proteção ao emprego” (p. 69); vii) “a
recente revisão da legislação do sistema de subsídio de desemprego [referia-se
à revisão de 2012, que cortara no valor e no período de concessão] deu alguns
passos no sentido correto, reduzindo a duração dos períodos de atribuição dos
benefícios” (p.81); viii) a solução para o emprego passaria, entre outros
aspetos, por “uma reforma mais profunda, que reduza os custos dos
despedimentos”(p.89), por um mecanismo “que permita às empresas negociar as
condições salariais diretamente com os seus trabalhadores” (p.90), e pela
criação de um “contrato único” (p.98) capaz de combater a tal dualização ao
harmonizar por baixo e ao prolongar o período experimental.
Centeno sempre foi um homem com
um pensamento clara e macadamente à direita. Em pleno período de austeridade,
as soluções que apresentava para o país no que ao trabalho diz respeito não se
diferenciavam substancialmente das teses da troika e dos austeritários.
Cavalgando na tese (por demais desmentida, basta ler os sucessivos relatórios
da Organização Internacional do Trabalho, para não ir mais longe) de que
Portugal teria um problema de “rigidez da legislação laboral” e de que a
precariedade dos mais novos era responsabilidade dos direitos dos mais velhos,
o caminho proposto por Centeno passava por embaratecer os despedimentos, criar
um contrato único para nivelar por baixo a segurança no emprego, precarizando
todos em nome de uma suposta justiça relativa alcançada através de um
retrocesso geral, afastar do sistema de relações laborais essa chatice que é a
intermediação sindical, limitar a duração da proteção no desemprego e
instituir, em suma, a soberania do mercado (ou seja: das formas de regulação do
capital) no mundo do trabalho.
Convidado por Costa em 2015 para
chefiar o grupo que fez o programa económico do PS, Centeno conformou-o e
transformou-o, sem surpresas, no programa eleitoral mais à direita de sempre do
PS. Eram da sua autoria as principais bandeiras de política económica de Costa,
que tiveram de ir para o lixo nas negociações com os partidos à Esquerda para
que a geringonça pudesse ser formada (por exemplo, a facilitação dos despedimentos
ou os benefícios aos patrões em sede de TSU, que foram explicitamente
eliminados). A ambição de Centeno era contudo suficientemente grande para
querer ser Ministro mesmo sem essas suas jóias da coroa. E foi - e deixou a sua
marca.
O discurso e a prática das
cativações e da compressão do investimento público, as finanças como um
objetivo e não como um instrumento da política económica, a elevação do “défice
zero” a uma espécie de objetivo da democracia foram os troféus de Centeno nos
últimos anos. A popularidade do “Ronaldo das Finanças” nos circuitos europeus e
dos mercados serviu a Costa para dar a imagem que tinha uma aliança com a
esquerda, “ma non troppo”, porque tinha o liberal Centeno num dos principais
lemes do barco. O lamentável outdoor do PS, que poderia ser de
qualquer partido de direita da Europa, em que o “o défice mais baixo da
democracia” é erigido em medalha, é um bom exemplo da péssima pedagogia que o
PS quis fazer, na qual o necessário e desejável equilíbrio das finanças
públicas deixava de ser apresentado como um meio da política económica e da
justiça social, para ser exibido como um fim. É, também, um exemplo da
capacidade de colonização intelectual do pensamento neoliberal, de que Centeno
era um símbolo orgulhosamente brandido pelo PS.
Centeno, que gostou de ser
ministro das finanças beneficiando dos resultados e das receitas de uma
política económica oposta à que defendeu antes de ir para o Governo, quer agora
ir embora. Nenhuma novidade, já queria antes, e era público que estava a pensar
na sua carreira alhures. Mais ainda com a crise. Agora que vêm tempos difíceis
Centeno, ao que parece, não quer aborrecer-se com funções governativas.
Pouco importa se Centeno se vai
embora agora ou daqui a pouco. A sua política sempre esteve nos antípodas de
uma visão de esquerda ou de uma orientação socialista para o país e não são de
agora os conflitos entre ele e outros Ministros, com responsabilidades em áreas
relacionadas, por exemplo, com os serviços públicos, na saúde ou na educação.
Mas todo este episódio do Novo
Banco é revelador de alguns dos principais bloqueios que temos. O Ministro que
cativou investimentos, que rasgou as vestes por causa dos professores, por uma
quantia bem inferior à que agora está em causa, acha normal que se transfiram
850 milhões de euros para o Novo Banco, depois de este ter aumentando os
salários fixos dos administradores no mesmo ano (2019) em que deu um prejuízo
de mais de 1000 milhões. Acha evidente que se deva fazer esta transferência
depois de o Novo Banco ter pago, em 2019, 320 mil euros de bónus só para que um
dos administradores aceitasse assinar um contrato e depois de o Novo Banco
prever a distribuição, assim que as regras o permitam, de 2 milhões de euros de
bónus aos administradores. Mais: Centeno acha normal que se transfira esse
dinheiro dos contribuintes violando um compromisso assumido com o Parlamento
relativo à auditoria que teria de ser tornada pública antes de qualquer
transferência, em nome de um suposto calendário, que o Parlamento nunca aprovou,
definido com o Novo Banco e o fundo privado que o comprou. É tudo mau de mais
neste episódio, ainda por cima num momento em que o país se vê a braços com uma
crise, em que faltam tantos apoios aos trabalhadores que sofrem com ela.
Centeno é o representante de uma
continuidade de fundo entre o PS e a direita no que ao sistema financeiro diz
respeito. Terá uns meses extra para ir fazendo as malas, mas o debate que conta
não é se sai, ou quando. É mesmo sobre essa política que não faz qualquer falta
ao país e sobre que regras queremos impor ao Governo e ao próximo Ministro das
Finanças, para que a impunidade, a desigualdade de tratamento e o saque por
parte do sistema financeiro não continuem, como têm estado, com rédea
totalmente solta.
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