sábado, 16 de maio de 2020

Portugal | SAUDADES DE CENTENO


José Soeiro | Expresso | opinião

Cruzei-me pela primeira vez com as ideias de Mário Centeno quando estava a fazer o meu doutoramento na Faculdade de Economia, em Coimbra. O pensamento de Centeno, especialista em economia do trabalho, seria divulgado ao grande público através de uma obra publicada em 2013, pela Relógio d’Água e pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, que fala por si. Em pleno período de austeridade, a sua tese assentava, entre outros, nos seguintes pressupostos: i) Portugal tem um problema de “imobilismo” no mercado de trabalho; ii) a legislação laboral “introduz restrições na eficiente afetação dos trabalhadores aos postos de trabalho” (p.24); iii) cabe ao legislador “remover estas distorções e fazer com que estes fluxos ocorram de forma eficiente” (p.35); iv) “infelizmente, nem com a oportunidade política de assistência externa as estamos a desmantelar” (p.38); v) a segmentação do mercado de trabalho deve-se ao facto de a flexibilidade assentar na “dualidade contratual” que faz com que “os mais precários paguem, sob a forma de salários mais baixos, a proteção do emprego permanente” (p. 45); vi) “as dificuldades dos jovens decorrem da legislação de proteção ao emprego” (p. 69); vii) “a recente revisão da legislação do sistema de subsídio de desemprego [referia-se à revisão de 2012, que cortara no valor e no período de concessão] deu alguns passos no sentido correto, reduzindo a duração dos períodos de atribuição dos benefícios” (p.81); viii) a solução para o emprego passaria, entre outros aspetos, por “uma reforma mais profunda, que reduza os custos dos despedimentos”(p.89), por um mecanismo “que permita às empresas negociar as condições salariais diretamente com os seus trabalhadores” (p.90), e pela criação de um “contrato único” (p.98) capaz de combater a tal dualização ao harmonizar por baixo e ao prolongar o período experimental.

Centeno sempre foi um homem com um pensamento clara e macadamente à direita. Em pleno período de austeridade, as soluções que apresentava para o país no que ao trabalho diz respeito não se diferenciavam substancialmente das teses da troika e dos austeritários. Cavalgando na tese (por demais desmentida, basta ler os sucessivos relatórios da Organização Internacional do Trabalho, para não ir mais longe) de que Portugal teria um problema de “rigidez da legislação laboral” e de que a precariedade dos mais novos era responsabilidade dos direitos dos mais velhos, o caminho proposto por Centeno passava por embaratecer os despedimentos, criar um contrato único para nivelar por baixo a segurança no emprego, precarizando todos em nome de uma suposta justiça relativa alcançada através de um retrocesso geral, afastar do sistema de relações laborais essa chatice que é a intermediação sindical, limitar a duração da proteção no desemprego e instituir, em suma, a soberania do mercado (ou seja: das formas de regulação do capital) no mundo do trabalho.


Convidado por Costa em 2015 para chefiar o grupo que fez o programa económico do PS, Centeno conformou-o e transformou-o, sem surpresas, no programa eleitoral mais à direita de sempre do PS. Eram da sua autoria as principais bandeiras de política económica de Costa, que tiveram de ir para o lixo nas negociações com os partidos à Esquerda para que a geringonça pudesse ser formada (por exemplo, a facilitação dos despedimentos ou os benefícios aos patrões em sede de TSU, que foram explicitamente eliminados). A ambição de Centeno era contudo suficientemente grande para querer ser Ministro mesmo sem essas suas jóias da coroa. E foi - e deixou a sua marca.

O discurso e a prática das cativações e da compressão do investimento público, as finanças como um objetivo e não como um instrumento da política económica, a elevação do “défice zero” a uma espécie de objetivo da democracia foram os troféus de Centeno nos últimos anos. A popularidade do “Ronaldo das Finanças” nos circuitos europeus e dos mercados serviu a Costa para dar a imagem que tinha uma aliança com a esquerda, “ma non troppo”, porque tinha o liberal Centeno num dos principais lemes do barco. O lamentável outdoor do PS, que poderia ser de qualquer partido de direita da Europa, em que o “o défice mais baixo da democracia” é erigido em medalha, é um bom exemplo da péssima pedagogia que o PS quis fazer, na qual o necessário e desejável equilíbrio das finanças públicas deixava de ser apresentado como um meio da política económica e da justiça social, para ser exibido como um fim. É, também, um exemplo da capacidade de colonização intelectual do pensamento neoliberal, de que Centeno era um símbolo orgulhosamente brandido pelo PS.

Centeno, que gostou de ser ministro das finanças beneficiando dos resultados e das receitas de uma política económica oposta à que defendeu antes de ir para o Governo, quer agora ir embora. Nenhuma novidade, já queria antes, e era público que estava a pensar na sua carreira alhures. Mais ainda com a crise. Agora que vêm tempos difíceis Centeno, ao que parece, não quer aborrecer-se com funções governativas.

Pouco importa se Centeno se vai embora agora ou daqui a pouco. A sua política sempre esteve nos antípodas de uma visão de esquerda ou de uma orientação socialista para o país e não são de agora os conflitos entre ele e outros Ministros, com responsabilidades em áreas relacionadas, por exemplo, com os serviços públicos, na saúde ou na educação.

Mas todo este episódio do Novo Banco é revelador de alguns dos principais bloqueios que temos. O Ministro que cativou investimentos, que rasgou as vestes por causa dos professores, por uma quantia bem inferior à que agora está em causa, acha normal que se transfiram 850 milhões de euros para o Novo Banco, depois de este ter aumentando os salários fixos dos administradores no mesmo ano (2019) em que deu um prejuízo de mais de 1000 milhões. Acha evidente que se deva fazer esta transferência depois de o Novo Banco ter pago, em 2019, 320 mil euros de bónus só para que um dos administradores aceitasse assinar um contrato e depois de o Novo Banco prever a distribuição, assim que as regras o permitam, de 2 milhões de euros de bónus aos administradores. Mais: Centeno acha normal que se transfira esse dinheiro dos contribuintes violando um compromisso assumido com o Parlamento relativo à auditoria que teria de ser tornada pública antes de qualquer transferência, em nome de um suposto calendário, que o Parlamento nunca aprovou, definido com o Novo Banco e o fundo privado que o comprou. É tudo mau de mais neste episódio, ainda por cima num momento em que o país se vê a braços com uma crise, em que faltam tantos apoios aos trabalhadores que sofrem com ela.

Centeno é o representante de uma continuidade de fundo entre o PS e a direita no que ao sistema financeiro diz respeito. Terá uns meses extra para ir fazendo as malas, mas o debate que conta não é se sai, ou quando. É mesmo sobre essa política que não faz qualquer falta ao país e sobre que regras queremos impor ao Governo e ao próximo Ministro das Finanças, para que a impunidade, a desigualdade de tratamento e o saque por parte do sistema financeiro não continuem, como têm estado, com rédea totalmente solta.

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