sexta-feira, 10 de julho de 2020

A lenta desagregação da República em França


Thierry Meyssan*

Desde há três anos, uma contestação profunda faz-se ouvir por todo o lado em França. Ela adoptou formas até agora desconhecidas. Reclamando-se do ideal republicano, põe em causa a maneira como o pessoal político serve as instituições. Face a ela, o Presidente da República finge uma concertação que manipula a cada etapa. Para Thierry Meyssan, os piores inimigos do país não são os que querem dividi-lo em comunidades, mas os que foram eleitos e esqueceram o sentido do seu mandato.

A primeira vaga

Em Outubro de 2018, em França, um surdo protesto crescia nas pequenas cidades e zonas rurais. Com espanto, os dirigentes do país e os média (mídia-br) davam-se conta da existência de uma classe social que eles não conheciam e com a qual jamais se haviam cruzado até aí : uma pequena burguesia que havia sido excluída das grandes cidades e relegada para o «deserto francês», um espaço onde os serviços públicos são racionados e os transportes em comum inexistentes.

Este protesto, que em certos lugares se transformou em levantamento, foi desencadeado pelo aumento de um imposto sobre o petróleo visando reduzir o consumo de carburante, a fim de alcançar os objectivos do Acordo de Paris sobre o Clima. Estes cidadãos foram muito mais afectados por este aumento que outros porque moravam longe de tudo e não tinham outra opção de transporte além de seus meios pessoais.

Após a dissolução da União Soviética, a economia mundial reorganizou-se. Centenas de milhões de empregos foram deslocalizados do Ocidente para a China. A maior parte dos que perderam os seus trabalhos tiveram que aceitar outros menos bem pagos. Eles foram forçados a deixar as grandes cidades, que para si se tornaram muito caras, e a instalar-se nas suas periferias [1].

Os “Coletes Amarelos” lembravam ao resto da sociedade que existiam e não podiam ajudar a lutar contra « o fim do mundo » se não os ajudassem primeiro a lutar pelos seus «fins-do-mês». Denunciavam a inconsciência dos dirigentes políticos que, a partir dos seus gabinetes na capital, não percebiam a sua aflição [2].


Os primeiros debates políticos que opuseram políticos a algumas das suas figuras de proa foram ainda mais inacreditáveis : os políticos propunham-lhes medidas sectoriais visando tornar o preço da gasolina acessível quando eles calmamente lhes respondiam mostrando os desastres causados pela globalização financeira. Os primeiros pareciam confusos e ultrapassados, enquanto os segundos eram os únicos a mostrar uma visão de conjunto. A competência tinha passado do pessoal político para os eleitores.

Felizmente para a classe dirigente, os média descartaram estes estraga-prazeres e substituíram-nos por outros manifestantes, que exprimiam com força a sua cólera sem a mesma inteligência. O endurecimento do conflito, apoiado pela maioria da população, fez temer uma possível revolução. Em pânico, o Presidente Emmanuel Macron refugiou-se, durante dez dias, no seu bunker sob o Eliseu, cancelando todas as suas reuniões. Ele pensou demitir-se e convocou o Presidente do Senado para que exercesse o cargo interinamente. Este último repreendeu-o chamando-o à razão. Retomando o controle de si próprio, apareceu na televisão para anunciar diversas medidas sociais. No entanto, nenhuma dessas alocações dizia respeito aos “Coletes Amarelos”, já que o Estado ignorava ainda quem eles eram.

Todos os estudos de opinião tendem a mostrar que esta contestação não é uma rejeição da política, mas, pelo contrário, uma vontade política de restaurar o Interesse Geral, quer dizer, a República (Res Publica).

Os cidadãos estão mais ou menos satisfeitos com a Constituição, mas não com a forma como ela é usada. A sua rejeição é, em primeiro lugar, a do comportamento do pessoal político no seu conjunto, não das Instituições.

Assim, para retomar o controle, o Presidente Emmanuel Macron decidiu organizar um «Grande Debate Nacional» em cada comuna, um pouco no modelo dos Estados Gerais de 1789. Cada cidadão poderia exprimir-se a propósito. As propostas seriam sintetizadas e levadas em conta.

Desde os primeiros dias, o Presidente dedicou-se a controlar a expressão popular. Tratava-se de não deixar a populaça dizer o que lhe viesse à cabeça. A « imigração », a « interrupção voluntária da gravidez », a « pena de morte » e o « casamento para todos » deviam ser afastados dos debates. Assim, ao mesmo tempo que o Presidente se afirmava « democrata », ele mostrava desconfiar do Povo.

Claro, todos os grupos se podem deixar dominar por paixões. Durante a Revolução Francesa, os “sans-culottes” conseguiram perturbar os debates das assembleias invectivando os deputados a partir das tribunas. Mas nada permitia antecipar que os presidentes de câmara (prefeitos-br) se deixariam perturbar pelos seus administrados.

A organização do « Grande debate nacional » dizia respeito à Comissão Nacional do debate publico. Ora, essa entendia garantir a livre expressão a todos os cidadãos, enquanto o Presidente queria, pelo contrário, limitá-la a quatro temas : « transição ecológica », « fiscalidade », « democracia e cidadania », « organização do Estado e dos serviços públicos ».

A Comissão foi, pois, louvada mas substituída por dois ministros. O desemprego, as relações sociais, a dependência dos idosos, a imigração e a segurança caíram no esquecimento.

O Presidente entrou então em cena. Ele participou em várias reuniões televisionadas, no decurso das quais respondeu a todas as perguntas colocadas, exibindo a sua própria auto-complacência. Passou-se do projecto de escutar as preocupações dos cidadãos para a ideia de lhes dizer que eram bem governados.

Três meses, 10.000 reuniões e 2.000.000 de contribuições mais tarde, foi tornado público um relatório e colocado num placard. Contrariamente ao que pretende essa síntese, as intervenções dos participantes no «Grande Debate Nacional» focavam-se (focalizaram-br) nas vantagens dos eleitos, na fiscalidade e poder de compra, na limitação de velocidade nas estradas, no abandono dos territórios rurais e na imigração. Não somente este exercício de estilo não fez avançar as coisas, como também deu aos “Coletes Amarelos” a prova de que o Presidente lhes queria falar, mas não escutá-los.

Uma vez que vos dizemos que somos democratas

Não no decorrer do « Grande debate nacional », mas durante as manifestações, inúmeros “Coletes Amarelos” fizeram referência a Étienne Chouard [3]. Desde há uma dezena de anos, este homem percorre a França assegurando aos seus interlocutores que uma Constituição só é legítima se for elaborada pelos cidadãos. Ele preconiza, pois, formar uma assembleia constituinte por sorteio para a sua redacção e submeter o seu resultado a um referendo.

O Presidente Emmanuel Macron respondeu-lhes criando uma assembleia tirada à sorte, a que chamou «Convenção Cidadã». Na continuidade do «Grande Debate Nacional», e desde o primeiro dia, ele perverteu a ideia que estava a implementar. Não se tratava de redigir uma nova Constituição, mas, sim de prosseguir num dos quatro temas que havia já imposto.

No entanto, ele não considerou que a tiragem à sorte fosse um meio de ultrapassar os privilégios de que dispõem certas classes sociais ou de contornar as dos partidos políticos. Ele abordou-o como um meio de conhecer melhor a vontade popular, à maneira dos institutos de sondagens (pesquisas-br). Portanto, mandou proceder a uma divisão da população segundo categorias sócio-profissionais, assim como por região. Depois os membros foram tirados à sorte nesses diferentes grupos tal como para um painel de entrevistados. A definição destes grupos não foi tornada pública. Além disso, confiou a organização dos debates a uma empresa especializada em animação de painéis de modo a que o resultado fosse o de uma sondagem : esta assembleia não formulou nenhuma proposta original, antes se limitou a priorizar as propostas que lhe foram apresentadas.

Um tal processo é muito mais formal do que uma sondagem (pesquisa-br), mas nada tem de democrático, uma vez que os seus membros não puderam ter a menor iniciativa. As propostas mais consensuais serão transmitidas ao Parlamento, ou submetidas ao Povo, por referendo. Ora, o último referendo em França, há quinze anos atrás, deixou uma muito má lembrança: o Povo censurou a política governamental que, no entanto, foi prosseguida por outras vias com desprezo pela vontade dos cidadãos.

O carácter totalmente ilusório desta assembleia de cidadãos ficou à vista com uma proposta que os seus membros declararam não querer submeter a referendo porque o Povo, que eles eram supostos representar, certamente a rejeitaria. Ao fazer isto, admitiram ter adoptado uma proposta seguindo os argumentos que lhes tinham sido apresentados, mas sabendo que o Povo pensaria de maneira diferente.

Não sou eu, são os cientistas

Assim que surgiu a epidemia de Covid-19, o Presidente Emmanuel Macron foi convencido para o seu perigo pelo estatístico britânico Neil Ferguson [4]. Ele decidiu proteger a população aplicando o confinamento obrigatório generalizado que lhe recomendava a antiga equipe de Donald Rumsfeld [5]. No entanto, preveniu-se de criticas constituindo um « Conselho Científico », do qual confiou a presidência a uma personalidade de reputação moral que ele julgava incontestável [6].

Apenas uma voz abalizada se levantou contra este dispositivo : um dos mais eminentes médicos infecciologistas no mundo, o Professor Didier Raoult [7]. No fim da crise, prestou testemunho perante uma Comissão Parlamentar. Segundo ele, Neil Ferguson é um impostor; o Conselho Científico —do qual se demitiu— é manipulado por conflitos de interesse com a Gilead Science (a antiga firma de Donald Rumsfeld); em situação de urgência, o papel dos médicos é o de tratar, não o de fazer experiências; os resultados dos médicos dependem da concepção que eles mesmo têm da sua profissão, e é por isso que os pacientes confiados aos hospitais de Paris tinham três vezes mais probabilidades de morrer do que os confiados aos hospitais de Marselha.

As declarações de Didier Raoult não foram analisadas pelos média, os quais consagraram o seu trabalho à reação despeitada da nomenklatura administrativa e médica. Ora, a questão da competência do Presidente da República, do seu Governo e das elites médicas acabava de ser colocada em causa por um membro eminente da elite médica.

A segunda vaga

A primeira volta (turno-br) das eleições municipais teve lugar no início da crise sanitária, em 15 de Março de 2020. As cidades periféricas e as zonas rurais, terras dos “Coletes Amarelos”, haviam com frequência fornecido maiorias para eleger de imediato o seu prefeito. Como habitualmente, as coisas eram mais complexas nas grandes cidades. Uma segunda volta (rodada-br) foi organizada no fim da crise, em 28 de Junho. Foi então franqueado um novo passo.

Seis eleitores em cada dez , escaldados pelo «Grande Debate Nacional» e indiferentes à «Convenção Cidadã», fizeram greve às urnas.

Ignorando este protesto silencioso, os média interpretaram o voto da minoria como um «triunfo dos ecologistas». Teria sido mais correcto dizer que os partidários da luta contra o «fim do mundo» se divorciaram definitivamente dos da luta pelos «fins do mês».

As sondagens asseguram-nos que o voto ecologista (“verde”-ndT) tem origem sobretudo nos funcionários. É uma constante em todos os processos pré-revolucionários: pessoas inteligentes, quando se sentem ligadas ao Poder, ficam cegas e não compreendem o que se passa diante dos seus olhos.

Não prevendo a Constituição esta fractura no seio do Povo, nenhum quorum foi previsto de modo a que este escrutínio seja válido, mesmo que não seja democrático, em todas as grandes cidades. Nenhum dos presidentes de câmara, ainda que eleitos por apenas um quinto dos seus concidadãos, ou até menos ainda, pediu a anulação do escrutínio.

Nenhum regime pode prolongar-se sem o apoio da sua população. Se esta greve às urnas se repetir durante a eleição para Presidente da República, em Maio de 2022, o sistema entrará em colapso. Mas, nenhum dos dirigentes políticos parece preocupar-se com isto.


* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:
[1] “Como o Ocidente devora os seus filhos”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de Dezembro de 2018.
[2] «“Chalecos amarillos”, una cólera altamente política», por Alain Benajam, Red Voltaire , 24 de noviembre de 2018.
[3Blog d’Étienne Chouard.
[4] “Covid-19 : Neil Ferguson, o Lyssenko liberal”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 20 de Abril de 2020.
[5] “O Covid-19 e a Alvorada Vermelha”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 28 de Abril de 2020.
[6] “Basta de consenso !”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 3 de Junho de 2020.
[7] Site officiel de Didier Raoult et de son équipe : Méditerranée infection.

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