#Escrito e publicado em português do Brasil
Sai no Brasil mais um livro de
Fernando Martínez, pensador cubano revolucionário e crítico. Na obra, caminhos
para romper o presente petrificado do neoliberalismo — com ênfase na imaginação
e renovação do pensamento político
Luís Felipe Machado de Genaro
| Outras Palavras
Oportuno momento em que a Editora
Expressão Popular compilou uma série de textos do filósofo e advogado cubano
Fernando Martínez Heredia, organizados por Olivia Caroline Pires e Ronaldo
Pagotto, na obra Socialismo Como Alternativa Aos Dilemas da Humanidade. O
livro chega em meio a uma das maiores crises sanitárias e políticas
brasileiras, num dos contextos mais sombrios da História do capitalismo
globalizado.
Participante da Revolução Cubana
de 1959, intelectual e professor ativo até o fim de sua vida, em 2017, Heredia
escancara em seus escritos os males atrozes do capitalismo financista e
transnacional – parasitário, como descreve – que não oferece qualquer
alternativa ou futuro digno aos latino-americanos (e ao restante do mundo).
Nada diferente do que vivemos atualmente.
Dentro do sistema capitalista tal
como nos encontramos, presos em um eterno presente, onde sonhos e utopias não
mais existem por que assim uma minoria proprietária o quis, não ocorreriam
maiores transformações ou surgiriam diferentes formas de governo e participação
política. Viveríamos na era do consenso neoliberal total num “estado de exceção
permanente” onde classes dominantes regionais e a grande elite mundial teriam,
finalmente, colocado o ponto final na História.
Pobres daqueles que acreditaram
em tamanha farsa, escreve Heredia, com otimismo. Apesar do saqueio secular, do
parasitismo financista e do leque extenso de revezes, não existe como parar o
motor da História. Focado nos rumos latino-americanos e seus momentos de
rebeldia em detrimento ao Velho Mundo, afirma sem rodeios que aqui na América
Latina sempre existiu uma pulsão criadora e revolucionária: aqui, a ordem do
capitalismo “não pode reinar em paz”. “Revolucionários (latino-americanos)
lutavam pelo governo do povo desde muito antes do liberalismo europeu se
decidir aceitar e utilizar sua democracia”.
Martínez Heredia não deixou de se
engajar em ideais e projetos revolucionários, mas acreditava serem difíceis de
se erigirem frente a hegemonia neoliberal, principalmente após a década de
1970, possuindo inúmeras contradições internas, encontrando barreiras e
obstáculos quase intransponíveis (a “onda rosa” de governos progressistas de 2000 a 2016 é evidência
disso). Também era o sujeito que se colocava em seu devido lugar. Passou a vida
como professor de Filosofia da Universidade de Havana, escrevendo, debatendo e
construindo o socialismo cubano. Em seus textos exclui análises exaustivas
sobre Cuba, sem poupar críticas e comentários ácidos.
Aliás, seria interessante
questionarmos, como fez Fábio Luís Barbosa dos Santos em sua obra Uma
História da Onda Progressista Sul-Americana (2018), a razão para tamanho
ódio contra a ilha cubana. Seria o sistema de lá “ineficiente”, detratam. Oras,
“mas sob qual critério um Estado que abriga, alimenta, educa, cuida da saúde e
defende toda a sua população em meio ao subdesenvolvimento é considerado
ineficiente?”, escreve.
Em meio à miséria e o desemprego,
precarização da vida em todos os seus sentidos, ameaças visíveis e invisíveis,
desmonte de instituições “democráticas” e espaços públicos, como as
Universidades federais no Brasil, para citar apenas um exemplo, além da
verborragia diária de lideranças ignóbeis e odientas, corrupção escancarada e
ligação estreita com esquemas paramilitares, o ataque deliberado a um país que
envia médicos e não bombas a dezena de regiões periféricas com suas brigadas
médicas durante uma pandemia beira a idiotice.
Há alguns meses escrevi neste
espaço uma breve história das utopias e distopias em um alerta aos
latino-americanos. Ventos bruscos estavam por vir em meio à tamanha agitação
política e social. No Chile e Equador, protestos contra truculências e
desmandos presidenciais, além do anseio chileno por uma Assembleia
Constituinte; na Bolívia, o escancarado golpe de Estado paramilitar sustentado
por Washington e a OEA, derrubando Evo Morales; no Brasil, a catástrofe
corrosiva do desgoverno Jair Bolsonaro que toma proporções cada vez mais
autoritárias; na Argentina e Uruguai, eleições apertadas, tensão política e
revezes e conciliações outrora impensáveis. Isso sem contar as sanções e
bloqueios econômicos cada vez mais estreitos do Império estadunidense contra
Cuba e Venezuela.
Não tardou para que um
acontecimento de proporções globais fizesse com que apertássemos o botão de
emergência, trazendo à tona um perigo iminente de extinção global. Afinal,
teríamos chegado ao clímax do Capital? “É pela própria natureza que este
sistema é funesto para a maioria da população do planeta e para o planeta
mesmo, e não pelas suas supostas aberrações, uma malformação que pode ser
extirpada ou um erro que possa ser consertado”.
Hoje, a América Latina é uma das
regiões no mundo que mais sofre com a pandemia. Imobilizados, ficam isolados em
casa os que podem. Outros, impossibilitados de qualquer isolamento, continuam
as suas vidas precárias entre a agonia do subemprego, o medo da morte e a total
falta de horizontes de expectativa. Enquanto isso, as velhas classes dominantes
permanecem parasitando, fazendo sangrar as veias abertas de um continente “que
nunca foi”, da região que “poderia ter sido”.
Sujeitos onde o tempo os
distancia, mas a região os une, tanto Martínez Heredia como o intelectual
revolucionário peruano José Carlos Mariátegui e o brasileiro Barbosa dos
Santos, citam em suas obras a ideia/conceito/profecia da “segunda
independência” latino-americana, espécie de “segundo ato” histórico sempre
carregado de um desejo profundo de integração regional. Todos influenciados
nitidamente pelas “Veias Abertas” de Galeano, deixando claro que “não deve
haver norte, para nós, senão por oposição ao nosso Sul”, como rabiscou anos
atrás outro uruguaio, Joaquin Torres García. Todos, aliás, cambaleando entre a
esperança revolucionária e o pessimismo agonizante.
“Os povos da América Latina
caminham numa mesma direção. A solidariedade do seu destino histórico não é uma
ilusão da literatura americanista. Estes povos, realmente, são irmãos não só na
retórica, mas também na História”, escreveu Mariátegui em dezembro de 1924. Em
2018, Barbosa do Santos escrevia: “A integração latino-americana deve construir
outro horizonte civilizatório, tendo os valores fundamentais a autodeterminação
econômica, a soberania política, a integração social e a autorreferência
cultural”. Outros pensadores e intelectuais revolucionários no correr do século
XX ao início do XXI também colocaram em pauta a segunda independência como
referência e horizonte políticos.
Se as independências ocorridas
durante o século XIX não foram suficientes e as reformas e muitas revoluções
abortadas pela repressão ditatorial no século XX também, é chegado o momento de
repensarmos velhos conceitos, como a democracia radical e o socialismo
libertário, e construirmos juntos novos contextos de libertação.
A segunda independência não
ocorreria apenas no âmbito político, mas teria de se atrelar ao social e
econômico de forma radical. Movimentos sociais dos mais diversos seriam seus
protagonistas – dos Zapatistas em Chiapas, no México, aos movimentos de
Sem-Teto, no Brasil. Um segundo ato de uma rebeldia canalizada contra as
opressões diárias e uma classe dominante regional que jamais deixou de reinar
sobre os corpos e a vida. Cultura política não falta aos latino-americanos.
Somente através de um maciço e
articulado movimento de rebeldias que atravessariam as fronteiras do Cone Sul
conquistaríamos a segunda independência, e com ela, a liberdade almejada.
Barreiras impostas pelo sistema capitalista, onde somos impelidos a não
imaginar alternativas possíveis, radicais, realmente democráticas, socialistas
e revolucionárias, precisariam ser derrubadas.
Hoje, infelizmente, contamos com
mais entraves: uma pandemia que nos ameaça a todo o momento, o crescente
autoritarismo de governantes que abraçam e bailam com atitudes fascistas, e a
ideia torpe de que não há mais futuro. Mesmo em agonia, imobilizados e
atordoados num presente petrificado, é possível sim imaginarmos outra
realidade. Heredia nos deixa aqui o seu otimismo: “recriar e criar o conceito
de socialismo é um elemento fundamental para nós, diante do século XXI. Não o
podemos criar somente a partir de nossos sonhos, mas não podemos criá-lo sem
nossos sonhos”.
Temos o dever sagrado de não
estarmos satisfeitos jamais, discursou certa vez um barbudo com os dedos
apontados para o céu, em meio a uma grande tempestade, frente a uma multidão
gigantesca. Foi do sonho de um novo mundo que ele e muitos outros companheiros
triunfaram numa das maiores revoluções do século passado. E será de nossos
sonhos que iniciaremos a “segunda independência”.
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