#Publicado em português do Brasil
Roteiro para compreender os
“paraísos fiscais”, usados pelas corporações e bilionários para não pagar
impostos. Quantos existem. Como funcionam as empresas de fachada. Quanto as
sociedades perdem com a sonegação
Will Fitzgibbon e Ben Hallman,
no ICIJ | Outras Palavras | Tradução de Simone
Paz
As receitas tributárias permitem
que a civilização não se afunde nem se afogue. Mas nem todos os contribuintes
seguem as mesmas regras.
Com a ajuda de advogados,
contadores, empresários de prestígio e governos
ocidentais cúmplices, os ricos e bem relacionados conseguem fugir do
pagamento de trilhões de dólares em impostos. O resto de nós cobre a diferença — ou,
como é mais comum, essa diferença fica descoberta, deixando os Tesouros sem o
dinheiro necessário para construir estradas e escolas e enfrentar ameaças
existenciais como mudanças climáticas e pandemias globais.
Os paraísos fiscais tornam tudo
isso possível.
Segundo estimativas, cerca de 10% do valor da
produção total de todas as economias do mundo encontra-se em centros
financeiros offshore [isto é, com contabilidade feita fora das
fronteiras do país onde operam], mantidos por empresas de fachada que existem
apenas no papel. O custo para os governos, em receita perdida, é calculado em
mais de 800 bilhões de dólares ao ano.
Os ricos preservam o dinheiro
para manter fortunas intergeracionais, que dão origem a uma nova classe
aristocrática global e agravam o abismo entre abastados e empobrecidos. As
multinacionais usam esse excedente de dinheiro para recompensar acionistas e
eliminar concorrentes menores.
Os países que mais
precisam de receita tributária, perdem mais dinheiro de impostos do que os
países ricos — em porcentagem do PIB. Tal como acontece com outras
desigualdades, os pobres sempre se dão pior.
Anos depois do Panamá Papers, o Consórcio Internacional de Jornalistas
Investigativos [ICIJ, na sigla em inglês] continua comprometido em
expor todos aqueles que usufruem dos paraísos fiscais — uma longa lista que
também inclui políticos corruptos, mafiosos, narcotraficantes e outros
criminosos que lavam dinheiro e ativos por meio de empresas offshore para
despistar as autoridades. O fácil movimento do dinheiro ilícito desestabiliza
governos e ajuda déspotas a permanecer no poder.
Eis aqui um guia que criamos para
ajudar a explicar como funcionam as finanças offshore e por que isso é
importante:
O que é um Paraíso Fiscal?
Não há uma definição universal
para eles, mas os paraísos fiscais, ou centros financeiros offshore, costumam
ser países ou lugares com impostos corporativos baixos ou até nulos, que
permitem que estrangeiros abram negócios facilmente. Os paraísos fiscais também
limitam a divulgação pública sobre as empresas e seus proprietários. Como as
informações podem ser difíceis de extrair, os paraísos fiscais às vezes também
são chamados de jurisdições
secretas. Os paraísos fiscais quase sempre negam ser paraísos fiscais.
Onde ficam esses paraísos
fiscais?
Espalhados pelo mundo inteiro.
Alguns são países independentes, como Panamá, Holanda e Malta. Outros estão
dentro de países, como o estado
de Delaware nos EUA, ou são territórios, como as Ilhas
Cayman.
As investigações do ICIJ têm se
concentrado em diversos paraísos fiscais, a depender, geralmente, da origem e
do conteúdo dos documentos. O Panama Papers, por exemplo, expôs como o Mossack
Fonseca, um dos maiores escritórios de advocacia offshore do mundo, vendeu
milhares de empresas de fachada nas Ilhas Virgens Britânicas para clientes do
mundo todo. O Mauritius Leaks revelou
como as empresas usavam as Ilhas Maurício para evadir impostos, enquanto a Paradise Papers revelou
os segredos das Bermudas,
ilha onde o escritório de advocacia Appleby foi fundado
Alguns paraísos fiscais, como
Niue e Vanuatu, deixaram de atuar como tal por conta da pressão internacional;
enquanto outros, como Dubai, emergem
como novos focos de riqueza ilícita
Por que um país ou região resolve
virar um paraíso fiscal
Por dinheiro. Os paraísos fiscais
recebem receitas significativas advindas das taxas pagas por pessoas e empresas
que criam e utilizam as empresas de fachada. Os paraísos fiscais também geram
trabalho para advogados, contadores e secretários. As Ilhas Maurício, por
exemplo, afirmaram que
5.000 pessoas perderiam seus empregos se o país deixasse de ser um paraíso
fiscal.
O que é uma empresa de fachada?
Uma empresa de fachada é uma
entidade legal, criada num paraíso fiscal. Normalmente, as empresas de fachada
existem somente no papel, não possuem empregados fixos nem escritórios. Um
único prédio comercial nas Ilhas Cayman, por exemplo, abriga 19 mil empresas de
fachada. As regras diferem, mas os verdadeiros proprietários de muitas delas
não são divulgados nos documentos de incorporação. Alguns usam o termo “empresa
de fachada”; outros, “empresa offshore”, de forma intercambiável.
Por que são chamadas de empresas
de fachada?
Porque assim como uma concha
vazia [em inglês, o termo para “empresa de fachada” é “shell company”, ou
empresa-concha], não possuem nada dentro. Uma empresa de fachada (feito uma
simples fachada de cenografia), só existe, legalmente, no papel.
As empresas de fachada são usadas
para quê?
Fins legais e ilegais. As
empresas de fachada podem possuir dinheiro, casas luxuosas, propriedade
intelectual, negócios e outros ativos. Elas também desempenham um papel vital
em facilitar o fluxo de dinheiro ilícito no mundo inteiro.
Quem utiliza os paraísos fiscais,
e para quê?
Pessoas ricas, mas também pessoas
“comuns” — por exemplo, dentistas e pelo menos um ou outro dono
de quitanda do Alabama — usam empresas de fachada por motivos que
podem incluir tornar mais difícil para credores em potencial — incluindo
ex-cônjuges, sócios descontentes ou inspetores fiscais — identificar e
recuperar dinheiro devido.
Investimentos feitos por meio de
paraísos fiscais podem ser especialmente lucrativos, devido às economias
fiscais significativas das quais as empresas offshore podem desfrutar.
Bob
Geldof, Madonna e
o secretário de comércio dos EUA, Wilbur
Ross, estão entre os nomes destacados que o ICIJ vinculou a empresas de
fachada. Alguns, como a Rainha
Elizabeth II, alegam que nem sabiam terem investido no exterior.
Políticos, como o
ex-primeiro-ministro da Islândia, Sigmundur David Gunnlaugsson, e o
ex-presidente do senado da Nigéria, Bukola Saraki, ocultaram investimentos e
casas luxuosas com a ajuda das empresas de fachada. Seus filhos fizeram o
mesmo. Entre alguns que se destacam, estão o filho e a filha do
ex-primeiro-ministro do Paquistão, Nawaz Sharif, e Isabel dos Santos, a
bilionária filha do ex-presidente angolano, José Eduardo dos Santos.
Senhores do tráfico de drogas e
de armas, ladrões de banco, chefões da máfia, rainhas e corruptos também
usam empresas de fachada para ocultar suas identidades e, junto com isso,
dinheiro, bens e atividades ilícitas.
Possuir uma empresa de fachada é
ilegal?
A resposta simples é não. A
resposta longa e profunda é que depende de como ela é usada e de onde a empresa
de fachada é criada ou incorporada. Esconder ativos roubados no exterior é
claramente ilegal, mas comprar um iate de luxo com uma empresa de fachada pode
não ser. (Olá, Paul
Allen — da Microsoft — e Príncipe saudita Mohammed bin Salman Al
Saud!). Advogados e contadores são ótimos em propor formas tecnicamente legais
de gastar ou esconder dinheiro no exterior.
Como as empresas se beneficiam
dos Paraísos Fiscais?
Por exemplo: uma grande empresa
farmacêutica pode abrir uma nova organização nas Bermudas ou na Holanda e
“vender” a essa entidade a patente de um medicamento lucrativo. A empresa-mãe
pode então pagar uma grande taxa de licenciamento à empresa offshore, o que por
sua vez permite que ela registre lucros menores em casa — e pague menos
impostos. As empresas farmacêuticas evadem bilhões de dólares em impostos dessa
forma, de acordo com a Oxfam.
Todos os anos, as empresas
escapam de pagar mais de 500 bilhões de dólares em impostos usando métodos como
esses. Alguns nem chegam a pagar impostos em seus países de origem.
Entre a grandes corporações que
evadem impostos estão a Apple, a Johnson&Johnson e o Skype.
As corporações costumam dizer que
empresas de fachada incentivam o investimento estrangeiro e fazem negócios que
não seriam possíveis de outra forma. Muitos dizem que eles também incorporam
offshore para evitar o pagamento de impostos duplicado para o mesmo lote de
dinheiro. Especialistas dizem que essas defesas são exageradas e até míticas.
Para saber mais, assista nosso
repórter Simon Bowers numa palestra do TED falando de como
descobrir os segredos fiscais da Nike e da Apple nos Paradise Papers.
O que as empresas querem dizer
quando afirmam que
pagam os impostos devidos, onde são devidos?
Os especialistas chamam isso de
“mantra fiscal”. Ele permite que as corporações pareçam ser bons cidadãos
corporativos, mas não contradiz o fato de que muitas dessas empresas usam
brechas (algumas das quais são posteriormente consideradas ilegais) para evitar
o pagamento de impostos.
Como é possível abrir uma empresa
de fachada?
Na maioria dos casos, é tão
simples quanto enviar
um e-mail ou fazer um telefonema. Você nem precisa sair de casa. Em grande
parte dos casos vistos pelo ICIJ, os indivíduos pagam outra pessoa para fazer
isso por eles. Há uma pequena indústria de especialistas offshore — incluindo
Mossack Fonseca (já extinto), Appleby e Asiaciti, como relatamos
anteriormente — ansiosos para fazer aquela ligação ou escrever aquele e-mail em
seu nome (com a cobrança de uma taxa) para criar uma empresa de fachada.
As regras variam de acordo com a
jurisdição, mas, de modo geral, você precisaria fornecer alguma forma de
identificação e responder a perguntas sobre como ganhou seu dinheiro e o
propósito do novo negócio. Os especialistas offshore com frequência omitem
essas perguntas.
Após a investigação
dos Panama Papers, por exemplo, advogados do mundo inteiro se esforçaram
para tentar descobrir a identidade de seus próprios clientes.
Alguns repórteres chegaram ao
ponto de criar uma empresa de fachada para si próprios. Ouça Planet Money da
NPR fazer isso, aqui.
Os parceiros do ICIJ na Univision’s Fusion abriram uma empresa de
fachada em Delaware … para um gato.
Quem mais colabora com o
funcionamento das empresas de fachada?
Consultores, gestores de fortunas
e advogados tributários, que aconselham sobre a melhor forma de evadir impostos
e esconder dinheiro das autoridades. Também, contadores — que assinam as
auditorias das empresas de fachada.
Quanto custa abrir uma empresa de
fachada?
Os custos dependem de onde será
criada a sua empresa de fachada e de quem vai ajudar você a fazer isso. Alguns
advogados, incluindo Mossack Fonseca, do Panama Papers, cobravam US$ 350 para
constituir uma empresa. Outros escritórios de advocacia, incluindo o Appleby,
do Paradise Papers, cobravam uma taxa fixa de quase 2 mil dólares em um paraíso
fiscal popular, a Ilha de Man, e US$ 2.700 nas Bermudas.
Quais são os diferentes tipos de
empresas de fachada?
As empresas de fachada,
corporações ou “entidades” existem de diversas maneiras. Embora as empresas e
corporações sejam a ferramenta offshore mais comum (em Delaware, Ilhas Virgens
Britânicas, Bahamas e Niue), outras entidades offshore incluem trustes (Jersey)
e fundações (Panamá). Cada um tem uma regra diferente, de acordo com as leis
internas de um paraíso fiscal. Trustes são
particularmente abertos a abusos porque usam princípios jurídicos antigos para
evitar declarar ou definir um proprietário. Os trustes dividem a possível
propriedade em três: o proprietário legal dos bens, a pessoa que controla os
bens e a pessoa que pode usufruir ou usar os bens.
Continua confuso? Esse é o ponto.
Estruturas complexas confundem autoridades fiscais, policiais e jornalistas
investigativos. Segue um exemplo de uma estrutura complexa configurada para
laboratórios Abbott a partir de nossa investigação de Lux Leaks:
O que é um diretor nomeado e o
que eles fazem?
Um diretor nomeado pode ser uma
pessoa ou empresa paga para aparecer nos documentos oficiais. As empresas de
fachada podem usar nomeados, também conhecidos como “manequins”,
em vez do verdadeiro proprietário (ou proprietários) da empresa como diretores,
para evitar divulgação pública. Os indicados executam tarefas administrativas,
incluindo a assinatura de atas de reuniões da empresa, mas não têm poder real
ou legal ou controle sobre a empresa de fachada. Um exemplo recente de empresa
nomeada dummy foi o uso da Regula pelo
Deutsche Bank.
Qual a diferença entre evitar
impostos (“tax avoidance”) e a evasão de impostos?
De acordo com as definições
tradicionais, a evasão fiscal é ilegal (um crime), mas o ato de evitar impostos
(“tax avoidance”) usa brechas legais para reduzir ou evitar o pagamento de
impostos. Cada vez mais, os especialistas argumentam que a distinção
é confusa; muito (mas não tudo) do que é chamado de “tax avoidance” poderia
ser criminalizado ou anulado se houvesse uma contestação no tribunal, mas
grande parte disso permanece em segredo. Essa área cinzenta levou ao termo “tax
avoision” (algo como “evitação” fiscal, em português).
O que é um proprietário
beneficiário?
A pessoa ou empresa que, em
última instância, possui a empresa de fachada, não importa quantos diretores
nomeados ou empresas subsidiárias sejam colocados entre ela e a empresa de
fachada.
Como o governo do meu país pode
descobrir se sou proprietário de uma empresa de fachada?
Depende de onde você mora. Como
regra geral, manter segredos offshore não é mais tão fácil como antes. Muitos
governos, incluindo os Estados Unidos, podem receber informações
automaticamente de paraísos fiscais e outros países sobre contas bancárias
estrangeiras de seus próprios cidadãos. Outros países, especialmente os países
em desenvolvimento, devem fazer solicitações individuais aos paraísos fiscais
para obter informações. Muitas jurisdições, incluindo o estado americano de
Delaware, se recusam a fazer registros públicos onde constem os proprietários
beneficiários de empresas de fachada.
O que é uma “ação ao portador” e
o que ela faz?
Uma ação ao portador permite que
quem detém o documento físico (a “ação”) seja o seu proprietário legal, o que
pode tornar alguém proprietário de uma empresa de fachada. A ação ao portador
não é registrada sob nome de nenhuma pessoa, o que significa que a propriedade
nunca é registrada. As ações ao portador foram proibidas em muitos países
porque criminosos usavam essa falta de registro de propriedade para ocultar
crimes e bens.
O que é o preço de transferência?
O preço
de transferência ocorre quando duas empresas do mesmo grupo negociam
entre si. Isso acontece, por exemplo, quando o Facebook Irlanda vende um
serviço ou um ativo para o Facebook EUA. Um erro no preço de transferência é
quando as empresas (supostamente, incluindo o Facebook) evitam ou sonegam
impostos ao inflar ou deflacionar artificialmente o valor dos serviços ou
ativos vendidos internamente.
Quando dinheiro é guardado em
contas offshore?
É impossível saber com certeza
(essa é parte da questão: é segredo). O economista francês Gabriel Zucman
estima que o equivalente a 10% do PIB global seja mantido no exterior
— cerca 5,6 trilhões de dólares. O economista americano James
Henry calcula até US$ 32 trilhões.
Que investigações do ICIJ
expuseram os paraísos fiscais — e aqueles que usufruem deles?
O Panama Papers, publicado pela
primeira vez em 2016, é provavelmente a investigação mais conhecida do ICIJ
sobre paraísos fiscais. Foi a maior colaboração jornalística da história (na
época) e levou à renúncia de líderes mundiais, condenações criminais e mais de
$ 1 bilhão de dólares em dinheiro recuperado. Ele se baseava no trabalho de
nossas investigações anteriores, Offshore Leaks, Swiss Leaks e Lux Leaks. Nós
retornamos com a Paradise
Papers, West Africa Leaks, Mauritius Leaks e, em 2020, com Luanda Leaks.
Por que não há grande repressão
contra as empresas offshore?
Por um simples motivo: alguns dos
países mais poderosos do mundo são grandes beneficiários. O dinheiro offshore
flui através dos territórios ultramarinos do Reino Unido; os estados
norte-americanos de Delaware, Wyoming, Nevada e Dakota do Sul; e pela
Suíça e Holanda.
No entanto, desde que o Panama
Papers foi publicado pela primeira vez, houve uma pressão nos EUA para eliminar
o sigilo corporativo. Alguns especialistas se mantEm otimistas quanto a essa
reforma; no ano passado, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou a Lei
de Transparência Corporativa.
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*Will
Fitzgibbon é um repórter sênior do ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas
Investigativos). Também, é coordenador de parcerias do ICIJ na África e no
Oriente Médio. Will coordenou a investigação Fatal Extraction que examinou o
impacto das mineradoras australianas na África. Ele é um dos jornalistas com
maiores colaborações pan-africanas.
*Ben Hallman é o repórter-chefe do ICIJ e lidera a equipe de reportagens. Anteriormente, foi editor adjunto do The Trace e editor de investigações e repórter do HuffPost. Nos últimos anos, vem investigando fraudes e abusos nas indústrias de execução hipotecária e de hospícios, e as demissões financiadas por empréstimos do Banco Mundial.
*Ben Hallman é o repórter-chefe do ICIJ e lidera a equipe de reportagens. Anteriormente, foi editor adjunto do The Trace e editor de investigações e repórter do HuffPost. Nos últimos anos, vem investigando fraudes e abusos nas indústrias de execução hipotecária e de hospícios, e as demissões financiadas por empréstimos do Banco Mundial.
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