#Publicado em português do Brasil
Por que execramos as petroleiras e mineradoras, mas poupamos as corporações farmacêuticas? Sua conexão com o crime organizado, seu passado e suas relações com a vacina mostram que sua ética é a do lucro máximo e da exclusão
Maurício Abdalla* | Outras Palavras
Pouca gente confia em atividades econômicas e comerciais realizadas com dinheiro do narcotráfico, das máfias, do tráfico de pessoas e animais silvestres e de diversas formas de atividades ilícitas e violentas, cujo capital, segundo estimativa do Escritório da ONU contra Drogas e Crimes, é da ordem de US$ 2 trilhões, lavados nos setores legais da economia.
Muitos desconfiam da indústria de petróleo por causa de seu papel na deflagração de guerras genocidas, dos subornos e apoio a governos ditatoriais nos países do Terceiro Mundo, financiamento de golpes de Estado, responsabilidade no desequilíbrio climático, financiamento de cientistas negacionistas etc.
Muitos passaram a olhar com desconfiança para as indústrias de mineração, pelos crimes de Mariana e Brumadinho e as diversas maneiras de degradação do meio ambiente e destruição da vida humana que decorem de sua ação.
O capital investido nesses e em outros setores, em cuja origem se misturam dinheiro criminoso e legal, se reproduz pelo fluxo contínuo que vai de atividades ilícitas para lícitas e se materializa na ilicitude (nem sempre ilegal) das atividades industriais que desprezam a vida e a natureza em nome do lucro.
No início do século XXI, analistas da Britain’s National Criminal Intelligence Service apontavam que a indústria de biotecnologia estava abrindo áreas para o futuro investimento criminoso, na busca pela legalização de sua fortuna de origem ilegal (DUFFIELD, Mark. Global governance and the new wars: the merging of development and security. Londres: New York: Zed Books, 2001).
A queda brusca nos valores das ações de quase todos os setores da economia em função da pandemia da covid-19 provocou uma migração de capitais para o setor de fármacos e biotecnologia. Lá encontraram o refúgio promissor, o oásis seguro, a “terra onde emana leite e mel” da economia desmaterializada, para a qual tudo é valor que deve gerar mais valor e nada é concreto, nada tem vida, nada é humano.
Porém, quando o capital oriundo do crime organizado, do tráfico internacional de drogas e das máfias – em uma mistura promíscua de puro valor monetário com o capital que estava investido em ações de outras indústrias, dentre as quais as de petróleo e mineração – migra para o setor de fármacos e biotecnologia (por causa do contexto econômico da pandemia), com a mesma ânsia de lucro que impulsionou as corporações em que antes estavam investidos, parece que uma mágica acontece.
A atividade industrial capitalista, cuja única meta é o lucro, se transforma, de repente, em “a ciência” – que de método e corpo de conhecimentos sobre a natureza se converte em oráculo, em uma entidade fetichizada, com vida própria, independente dos humanos que a praticam. A origem e a razão do capital que se multiplica nessas megacorporações desaparecem e em seu lugar entra o propósito altruísta de instituições cuja meta é salvar a humanidade da pandemia.
Nenhuma desconfiança, nenhuma suspeita. Apenas a ilusão de que a dinâmica perversa do capitalismo e a origem do capital “que jorra sangue por todos os poros” (Marx) converter-se-ão em responsabilidade e respeito à vida humana nas mãos dos gestores das gigantes de biotecnologia. Pois tudo está sacramentado “com o carimbo positivo da ciência que aprova e classifica” (Raul Seixas).
Com um truque de ilusionismo, o sujo se torna limpo, o letal se torna promessa de vida e a irresponsabilidade se torna zelo. Diante dos que mantêm a mesma suspeita e atitude crítica com que analisavam as outras indústrias no capitalismo, muitos “progressistas” se portam como conservadores: desacreditam os críticos. Para eles, o capitalismo, nas mãos das Big Pharma e das gigantes da biotecnologia, purificou-se, redimiu-se, beatificou-se. Desapareceram as classes. Evaporou-se o modo de produção. Ocultou-se aos olhos críticos a concreticidade do capital. Só existe “a ciência”.
In science we trust! Serão hereges todos os que insistirem em ver na ciência fetichizada uma expressão das relações humanas materiais. “Conspiração” é o termo moderno para “bruxaria”.
E eis que o capital trará o que é necessário, mas, ainda assim, produto de um mundo real repleto de contradições, como dádiva divina entregue por meio de seus sacerdotes: a vacina! Um produto abstrato, para o qual não deverá valer a velha crítica à mercadoria.
Estaremos muito ocupados com o desejo de salvar as vidas e acabar com a pandemia para nos lembrar que o capitalismo ainda existe e que, nesse sistema, tudo é mercadoria. E que a mercadoria vale pelo seu valor de troca, que deve desprender-se de toda sua materialidade humana e natural e evaporar-se em puro valor abstrato.
Aceitemos, pois, a mercadoria, pois fomos forçados a precisar dela. Mas que ao menos a paguemos em dinheiro, não em troca de nossa consciência crítica!
Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
*Maurício Abdalla -- Filósofo e doutor em Educação, professor do departamento de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Também é membro da Rede Nacional de Assessores do Centro de Fé e Política Dom Helder Câmara (CEFEP/CNBB) e do Projeto Novos Paradigmas de Desenvolvimento (ABONG/ISER Assessoria).
Sem comentários:
Enviar um comentário