Pedro Tadeu | Diário de Notícias | opinião
O acordo do PSD com o Chega é absolutamente natural e só pode espantar quem pensou que o partido que quer castrar pedófilos e apertar com os ciganos não é uma emanação e uma tentativa de revitalização da direita tradicional e sistémica portuguesa.
O acordo do PSD com o Chega para governar os Açores só surpreende quem acha que o partido de André Ventura, ex-PSD, não pertence à mesma família política do partido de Rui Rio, bem como do CDS, do PPM e da Iniciativa Liberal.
Há diferenças entre esses partidos, que vão do centro até à extrema-direita, e até parecem inconciliáveis, mas há algo bem mais forte de que essas divergências que é capaz de os levar facilmente à união na ação política: a direita é uma irmandade que se une sempre na hora decisiva.
O jornalista de direita, autointitulado liberal, João Miguel Tavares explicou, de forma clara, as razões de PSD, CDS, PPM e Iniciativa Liberal terem decidido incluir o Chega num acordo de viabilização para um novo governo açoriano e porque é que isso se pode e deve repetir na formação de um governo nacional: "se a direita estabelecer uma cerca sanitária à volta do Chega, ela jamais regressará ao poder sem ser à boleia do PS", escreveu ele no jornal Público.
A questão para a direita, portanto, não está em discutir se o Chega é ou não é fascista, se é ou não é neofascista, se é ou não é populista.
A questão para a direita não está em saber se o Chega é autoritário, racista, xenófobo, desumano ou perigosamente estúpido.
A questão para a direita não está em discutir se o Chega é boa ou má companhia para fazer política, se é mais ou menos radical.
A questão para a direita está, apenas, em saber se os deputados do Chega são relevantes em contas que levem os partidos da direita ao poder.
Se uma representação parlamentar do Chega for necessária para os partidos à direita chegarem ao governo, então o Chega passa a ser respeitável e o seu líder receberá os indispensáveis salamaleques institucionais e, até, uma receção calorosa nos gabinetes onde se dividem as escudelas do poder.
Se o Chega não eleger deputados suficientes para influenciar a formação de um governo de direita, então PSD, CDS, IL e PPM tratarão de ostracizar o Chega, acusando o seu líder de malfeitorias cruéis e diversas, afastando-o do convívio palaciano por alegado nojo ideológico - mas isto, apenas, até nova conjuntura política levar ao dito por não dito.
Esta hipocrisia pragmática, à direita, não é nova, está na sua natureza.
A seguir ao 25 de Abril de 1974 e até ao 25 de novembro de 1975, como os ventos não estavam de feição, o PPD de Sá Carneiro pedia o voto ao povo português prometendo dar-lhe uma sociedade socialista.
O PPM até propunha uma monarquia socialista, através de um cartaz com o desenho do Zé Povinho a ser levado numa liteira, carregada por uma multidão de bonecos coroados sob o lema: "um só povo, muitos reis".
O CDS, quando ainda acreditava que a coerência dava votos, não foi nessa onda, mas não hesitou, pouco depois, em ir para o governo com o Partido Socialista para evitar eleições antecipadas que dessem força ao PCP.
A seguir Sá Carneiro reuniu a direita na Aliança Democrática, coligação repetida por Pinto Balsemão e, com variações, por Durão Barroso, Santana Lopes e Passos Coelho.
Ao todo, a direita coligada, sem contar com os 10 anos de Cavaco Silva, soube entender-se para governar este país durante 11 anos e três meses.
E, no meio, o PSD até governou com o PS de Mário Soares durante dois anos e meio e, por isso, desde que há governos constitucionais (1976), a direita esteve no poder executivo do Portugal democrático exatamente metade dos 44 anos que, entretanto, passaram.
Em contraste, a esquerda, apesar de somar várias vezes maioria parlamentar, nunca se coligou - mesmo a "geringonça" não passou de um apoio parlamentar a um governo minoritário socialista e nenhum militante do PCP ou do Bloco de Esquerda foi ministro, secretário de Estado ou meramente assessor.
O esforço para impedir a reentrada da direita de Passos Coelho e Paulo Portas no governo, apesar da situação desesperada do país, foi penoso para a esquerda, arrancado a ferros e cheio de pruridos. Afinal, deste lado, a irmandade tem uma longa tradição fratricida.
Em contrapartida a direita portuguesa, sempre que aritmeticamente é possível, assina todo o tipo de pactos para ter acesso ao governo.
Tudo se resolve à direita quando se trata de impedir PCP e Bloco de Esquerda de terem uma palavra a dizer sobre o futuro do país.
Tudo se resolve à direita para impedir a aproximação do PS aos partidos à sua esquerda.
Tudo se resolve à direita quando se trata de dominar a máquina da governação e de garantir acesso à distribuição das suas benesses.
Os 54 subscritores do abaixo assinado "A clareza que defendemos", pessoas de direita que se dizem contra a "amálgama" do "espaço não-socialista" com "os movimentos nacional-populista", bem podem tentar provar que não é assim , mas a história, que tanto citam, e a singela reflexão de João Miguel Tavares provam exatamente o contrário.
Elas podem reclamar-se da social-democracia capitalista, do liberalismo económico e de costumes, da cristandade conservadora e caridosa, da monarquia saudosista e anacrónica, da autoridade nacionalista e reacionária, mas para concretizar o assalto ao poder a união entre as direitas está tacitamente implícita no seu combate político - as diferenças ideológicas de superfície esbatem-se pela aliança que a consciência de classe lhes dá.
Todos os sapos ideológicos à direita, está provado, são alegremente deglutidos. Este repasto, que Rui Rio acabou de comer, é, portanto, uma ementa banal.
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