Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
É indecifrável a razão que leva milhares de pessoas às arribas da praia do Norte da Nazaré para ver ondas gigantes em plena pandemia. Sendo decifrável, é um desgosto.
Com ondas gigantescas previamente anunciadas para quarta e quinta-feira passadas, uma turba de gente alimenta-me a vontade de exigir a Posídon que despeje a sua ira para que se vejam gregos ou faz questão de intimar o romano Neptuno para que gaste um pouco do seu latim no intuito de lhes incutir juízo final. A questão mede-se mesmo em responsabilidade e essa, percebe-se, está a mil léguas submarinas de distância. Na crista da onda, a pandemia navega, ateada e transmitida, multiplicada em série por uma diversidade de comportamentos que, nesta fase, só podem ser considerados como desviantes. O grande drama destas condutas-desviantes-covid é que, ao contrário do habitual, não colocam apenas em risco o próprio, mas sim toda a comunidade. Daí que não devam ser tratadas como um simples caso de saúde pública, mas antes como atitudes transgressoras, propagadoras e potencialmente criminosas.
As empresas de "outdoors" já tinham reservado espaço para cartazes do PSD, à semelhança do que sucedeu na Festa do Avante, acerca da presença de público no Grande Prémio de Fórmula 1 em Portimão, mas a JSD acanhou-se. Com capacidade para 90 000 pessoas, o autódromo do Algarve recebeu 27 500 e muitas delas, em duas das 11 bancadas, conseguiram o prodígio de se amontoarem umas em cima das outras sem qualquer tipo de distanciamento, desrespeitando todas as regras, arriscando propagar o vírus a uma velocidade furiosa, superior à de Lewis Hamilton. A Direcção-Geral da Saúde (DGS) usou para o desporto de elite o desleixo inversamente proporcional ao zelo com que cuida de manter os espectadores afastados dos estádios de futebol. Com um impacto de 30 milhões de euros na economia, a "DGS dos popós" deu o pior exemplo possível para aqueles que ainda acreditavam que as regras são iguais para todos e para cumprir. O próximo Grande Prémio em Itália, neste fim de semana, vai decorrer à porta fechada. Outras metas.
Depois do Santuário de Fátima com lotação reduzida a olho perante milhares de peregrinos em ajuntamento, após o congresso e jantares-comício do partido de extrema-direita com assento parlamentar onde não foi cumprido o distanciamento social ou o uso generalizado de máscaras, depois de tantas críticas às manifestações anti-racistas que se impunham ou à Festa do Avante - onde foram escrupulosamente cumpridas todas as regras de segurança - o Conselho de Ministros de amanhã ponderará (e bem) novas medidas que podem passar pelo recolhimento obrigatório. Se a cultura, a restauração e a hotelaria, actividades que tanto e tão responsavelmente têm feito para sobreviver a esta pandemia no respeito pela saúde da comunidade, tiverem de encerrar devido às ondas, às velocidades, aos extremismos negacionistas ou à fé e credos em blocos aglomerados, o preço a pagar não terá só reflexo na economia ou na saúde pública. Se assim for, podemos passar a ser oficialmente desconfiados, críticos e maledicentes do concidadão. Quererá dizer que nós, como comunidade, fracassamos.
*Músico e jurista
o autor escreve segundo a antiga ortografia