sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Uma visão, uma estratégia, um plano – As ilusões dos salvadores do capitalismo

A finalidade do capital não é satisfazer necessidades, mas sim produzir lucros. O capital só produz o que pode ser produzido com lucro e na medida em que este pode ser obtido. Marx, O Capital

Daniel Vaz de Carvalho*

1 - Que visão e estratégia

O governo efetuou a Apresentação do "Plano de Recuperação e Resiliência" à União Europeia, que compreende os apoios da UE num total para Portugal de 57 900 M€ de subvenções (cerca de 6 400 M€ por ano em nove anos) e 15 700 M€ de empréstimos.

O Plano, inclui 12 900 M€ para: Resiliência (apoios sociais, qualificação e inovação, infraestruturas, coesão territorial) 7 200 M€; Transição climática (descarbonização dos transportes e indústria, eficiência energética, economia circular, produção de hidrogénio) 2 700 M€; Transição digital (escolas, empresas, administração pública) 3 000 M€. A estas verbas acresce o PT 2020 com 12 800 M€; o Quadro Financeiro Plurianual e uma verba para desenvolvimento rural e transição justa, dando um total de 57 900 M€.

A utilização destas verbas apoia-se no documento "Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica 2020-2030)" , elaborado pelo sr. António Costa e Silva por solicitação do PS. Pouco destaque mereceu da parte dos media, que dedicam o seu tempo a discutir pessoas e não políticas e a criticar com toda a "imparcialidade" as consequências do que antes defendiam como "não há alternativa".

A "visão" definida no documento, consiste em recuperar a economia e proteger o emprego no curto prazo, tornar a economia mais sustentável social, ambiental e economicamente, mais eficiente na gestão dos recursos, mais digitalizada, mais inovadora, mais capaz de competir à escala europeia e global. (68)

É apresentada uma exaustiva listagem de programas a realizar, desde a produção de bens de equipamento, fabricação de máquinas, biotecnologias, produção de medicamentos e dispositivos médicos, capacitação dos centros tecnológicos e de investigação aplicada, um plano de investimento para valorizar os recursos minerais estratégicos, alavancar os setores tradicionais, ordenar o Território, agricultura ecológica e local, governança florestal, escolas e universidades, reabilitação de edifícios, atração de turistas, etc. Não esquecendo, que "o mar é um ativo estratégico do país", embora até agora não parece terem tido êxito a explicar isso em Bruxelas...

São também listados e descritos um conjunto de clusters: de engenharia de produtos e sistemas complexos, das indústrias militares, das energias renováveis e do hidrogénio verde, da "bioeconomia sustentável", do lítio, do nióbio, do tântalo e das terras raras; do mar; e ainda "clusters tecnológicos regionais, (98, 99) etc.

Há de facto, programas para tudo ou quase tudo. Neste aspeto o documento parece ser mais um breviário, conduzido pelos mistérios da transição digital e das alterações climáticas, centrado na "descarbonização" e na" transição digital", "na maior eficiência na gestão da energia e dos recursos, adotando modelos de economia circular, estabelecendo simbioses industriais" (43) na eletrificação crescente da frota automóvel, maior uso de transportes públicos e de bicicletas". (56)

Quanto a estratégia, o documento está longe de a apresentar, sendo antes uma listagem de intenções. Uma estratégia, define os processos, os meios e as formas da sua intervenção para atingir os objetivos fixados.

Também não se vislumbra um plano. Um plano, implica a elaboração de projetos com objetivos específicos determinando as várias fases do seu desenvolvimento no tempo, detalhe dos meios necessários, incluindo organogramas. Quem os faz? Quem os põe em prática e como? Quais as prioridades?

Como nos habituaram desde a entrada para a CEE/UE, com a adesão ao euro, com a troika e as "reformas estruturais", recorre-se à terminologia dos "desafios", "apostas", "oportunidades". Pretende-se resolver os problemas existentes com as políticas definidas pela UE – que em grande parte lhe deram origem – mantidas num conjunto de frases feitas como "as empresas no centro da economia", alterações climáticas, economia circular, descarbonização.

Claro que "o homem sonha, a obra acontece", mas é preciso não tomar os desejos por realidades. Querer "Portugal como plataforma tecnológica e logística integrada, transformar o país numa espécie de laboratório para testar soluções tecnológicas avançadas para o Século XXI, atraindo investimento externo (28), transformar Portugal numa "fábrica da Europa" (85) ou criar, em Lisboa, a Praça Financeira do Mar (102) ou "Portugal como Centro Europeu de Engenharia", cai-se no reino da fantasia. (83)

Porém, tudo vai parar ao velho e falhado (até considerando a componente importada das exportações) "exportar mais": "contrariar as limitações do mercado interno, apostando na criação de economias de escala, resolvendo o problema da fraca presença de empresas de dimensão média e grande. (14)

Para a "reconversão industrial" ser "profunda e consistente" conta-se uma espécie de "soberania industrial europeia" , definindo regras de acesso ao mercado europeu em função do desempenho ambiental dos produtos. (103) Um fantasioso protecionismo que choca com as regras da OMC e sobretudo com interesses de exportação da Alemanha.




2 - Que políticas

Para além de se cumprirem as regras da UE não está definida uma política. Para isso seria necessário definir os princípios e orientações gerais, base e guia da planificação das atividades e tomada e decisões. Nada disto encontramos, nem admira, o que se pretende é que mude alguma coisa para ficar tudo na mesma. Ou seja: convencer a oligarquia que o que se fizer é para seu bem.

Contudo, não se sabe qual a política a seguir: "é importante não nos atermos a tabus e dizer claramente que precisamos de uma nova síntese criativa entre as diferentes teorias económicas. Temos que abandonar a ortodoxia de direita e de esquerda e os modelos dogmáticos." (65) A extrema-direita também o diz...

Recusa-se o keynesianismo dizendo que não é repetível, sem explicar porquê, e insiste-se num modelo novo e num renascimento da teoria económica e da teoria política (?!). É espantoso como com tantos programas não se tenha começado por definir os seus fundamentos: a economia política em que se baseiam. Talvez tenhamos um vislumbre, visto que se recusam "as visões liberais extremistas que conduziram o país à perda de grande parte da sua indústria (...) e a um certo culto de desprezo pelos recursos nacionais." (91)

Isto significa que pelo menos se aceitam visões liberais "moderadas"... "Um Estado com nova natureza, mais interventivo (...) para acorrer à capitalização das empresas, favorecendo a criação de condições para a reconversão das empresas e a reindustrialização do país (59) encontrando "um equilíbrio virtuoso entre Estado e Mercado" (60). Mas então onde fica a "concorrência livre e não falseada" que a UE determina? Digamos que se navega na terra do nunca...

Pretende-se, claro, reduzir as desigualdades, caso contrário teremos "um exército crescente de desempregados e crescente instabilidade social". (61) O que seria, sem dúvida, um problema para os lucros do capital.

Estamos, pois, na esfera do "repensar" a teoria económica e o Estado. Mas qual o papel do Estado numa UE controladora e federalista? Com que soberania para interferir na economia? Exemplo: a não nacionalização do Novo Banco. Assim, por muita erudição que se exiba acaba-se por não ir além de verdades do sr. Lapalisse que de tão genéricas nada significam, como Durkheim salientou em sociologia, e é também disto que se trata.

A oligarquia pode portanto ficar descansada, pois apenas no "curto prazo" "o Estado terá um papel decisivo no relançamento da economia e proteção do emprego, impedindo a estagnação das atividades económicas e dos serviços, e ajudando na capitalização de empresas e de famílias em dificuldades." No médio/longo prazo o setor privado assumirá um papel crucial como motor de mudança e de investimento, cabendo ao Estado a definição de políticas e investimento público, (124) além de "estímulos e subsídios para apoiar a nossa indústria na transição para a sua digitalização e para uma produção baixa em carbono e circular." (126) Tudo isto sob vigilância da CE que "procede à avaliação da compatibilidade desses auxílios." (137)

Não é preciso "reinventar" nenhuma teoria sobre o Estado e a economia: trata-se de "colocar as empresas (eufemismo para capitalistas) no centro da recuperação da economia, transformando-as no motor real do crescimento e da criação de riqueza, criando condições para o aumento da sua competitividade, não através dos baixos salários, mas da inovação tecnológica; ajudando-as também na capacidade de se internacionalizarem e evitarem uma excessiva dependência do mercado interno." (13)

Estas "boas intenções" fazem por ignorar o que se passa na "concertação social" com as confederações patronais contra os aumentos de salário mínimo e alteração de leis laborais. É a conversa habitual sempre que se trata de meter dinheiro nos bolsos capitalistas, porque até para funções de serviço público se prevê fazerem-se leilões e entregá-los às empresas privadas. (127) Ficaria a porta aberta para a privatização da água e não só.

Tudo o que foi desmantelado ou fragilizado pela política de direita, quer-se reverter com bons conselhos sem tocar nos interesses do grande capital, pelo contrário criando-lhes "oportunidades". Assim se recompensam os maus comportamentos, já que os "programas" revelam más situações na indústria, serviços, Administração Pública, justiça, educação, saúde, infraestruturas, etc.

Os epígonos do sistema são hábeis em disfarçar as insuficiências teóricas e práticas. Depois das "novas tecnologias", símbolo de ser evoluído, e da sociedade pós-industrial - a indústria era para os povos atrasados, vieram mais tarde umas réstias de "reindustrialização", sol de pouca dura face ao que a finança e a UE impunham.

Políticas de direita que recusam o seu nome, são apresentadas com a roupagem da nova "pós-modernidade", da "descarbonização", economia circular, digitalização e até das impressoras 3D. A robótica foi em tempos a "primeira prioridade", mas o capital não precisa destes bem intencionados consultores que se esmeram para salvar o capitalismo. Conselhos que o capital só segue se estiver interessado e não pelas ênfases argumentativas.

3 - No mundo das contradições

O documento passa ao lado de uma questão fundamental, a análise das contradições entre objetivos, recursos materiais e humanos e circunstâncias – as que são controláveis pelo país e as que não são.

O problema do desemprego que a "digitalização" criará, sem solução em termos capitalistas, é ignorado. O que se diz, no exaustivo repositório de sectores "a desenvolver e investir" pode ser ouvido nos areópagos da CIP ou debitado pelos gurus do sistema que como lhes compete fazem o responso da religião do capital e do "atlantismo".

Poderia dizer-se que o "Plano" revela uma contradição entre o capitalismo financeiro e industrial. Porém, o capital monopolista está tão imbricado com a finança que essa contradição só é efetiva ao nível das micro, pequenas e médias empresas.

O que o capitalismo fez e faz por esse mundo fora, deveria liquidar qualquer ilusão sobre os seus interesses ecológicos. A realidade é que o capital só adere à "descarbonização", à "economia eco-eficiente", à fantasia do "green mining" (47), se isso lhe der lucro, via "incentivos" do Estado e propaganda sem contraditório para fomentar mercados.

Mais uma vez, o que se pretende é fazer o papel de "bons alunos" da UE. Os investimentos serão de acordo com o que a burocracia da UE já determinou e que o "Plano" procura rigorosamente cumprir, como se as prioridades de Portugal fossem as da Alemanha, Áustria, Holanda, etc.

Contudo, a presidente da CE deixou claro quais os reais objetivos da UE: com o argumento de "eliminar entraves ao mercado único" e a "transição digital e ecológica", pretende-se concretizar a expansão sem entraves do grande capital das principais potências, absorvendo sectores ainda públicos e centralizar ainda mais as decisões nos campos económico, financeiro, social, além do alinhamento imperialista contra a Rússia e a China. Esquecem-se que vivem noutro século, que a UE está tecnológica e produtivamente atrasada, militarmente débil, financeiramente em crise estrutural, socialmente envolvida em contradições que originam graves conflitos sociais.

Mesmo incentivos às empresas privadas podem ser proibidos pela UE. Tudo o que possa limitar as transnacionais é contra o "mercado"... Assim se elimina a defesa da indústria nacional e a enfática "reindustrialização" do "Plano".

Um Plano lida com realidades, o quê, onde, como, quando e quem. A quantificação, mesmo como estimativa, de prazos, custos, recursos necessários não é minimamente abordada, mesmo em termos comparativos com iniciativas idênticas. Quais as prioridades? Tudo se resume a ter fé nos capitalistas e na UE.

Cada programa enunciado implica vários projetos com numerosos intervenientes devidamente qualificados. É necessária a elaboração de procedimentos, formação, auditorias, formação de auditores, sem o qual não é possível garantir eficácia e eficiência. Tudo isto tem custos, leva tempo, necessita de pessoal motivado. Se a ideia é entregar o mais possível aos privados, voltamos ao início, quem e como se controla a sua atividade e as verbas gastas? Nesta solução o interesse do Estado é ultrapassado por "especialistas" de entidades privadas, que defendem prioritariamente interesses privados, algo que pouco preocupa os defensores dos "contribuintes" e do "dinheiro de todos nós". Isto mesmo ficou claro nas audições parlamentares sobre as PPP ou sobre as crises na banca.

Fala-se numa administração pública mais qualificada, mais eficiente e em serviços públicos de qualidade, apostando na inovação e na modernização administrativa. (133). Como compatibilizar estes desejos com os salários congelados há 10 anos, a falta de recursos humanos, a desmotivação por baixos salários inclusivamente para os quadros, formas de gestão ineficientes.

No fundo trata-se de dar dinheiro ao grande capital: direta ou indiretamente tudo lá irá parar. Esta tentativa de reformar o capitalismo ignora como o sistema funciona. A maximização do lucro monopolista e as regras da UE não são conciliáveis nem com as necessidades sociais nem com as intenções dos "programas". O sistema oligárquico existente não se altera com prédicas e apelos.

Os que se esmeravam a arengar sobre o "deitar dinheiro para cima dos problemas", quando se tratava do social, entusiasmam-se com os dinheiros da UE. Lembremos o dinheiro do quantitative easing dado sem condições à Banca comercial, atingindo no final de 2018 um total de 2,6 milhões de milhões de euros, retomado no final de 2019, pois os problemas financeiros persistiam...

Agora, a "solidariedade europeia" vem condicionada à aprovação de Bruxelas cuja burocracia "sabe melhor o que convém para os portugueses" (frase e prática do salazarismo). O intervencionismo do Estado é limitado pela vigilância de Bruxelas e Francoforte, a obtenção de moeda pelos Estados permanece nas mãos da finança. Por fim, a conta do serviço de dívida não cessará de crescer, porque as "regras" estão apenas "suspensas".

4 - Como conclusão

A ilusão dos pretensos salvadores do capitalismo é quererem ultrapassar as contradições e outras consequências resultantes das leis do seu funcionamento, com procedimentos que se baseiam nessas mesmas leis. Inútil: é impossível superar questões teóricas com processos técnicos. Por mais apurada que seja a tecnologia, não é possível ultrapassar o zero absoluto, a velocidade da luz ou ter máquinas com rendimentos iguais ou superiores a 100%.

O desenvolvimento económico e social deve ser analisado como um processo. Em termos de processos temos de distinguir entre o simples e o complexo, o fácil e o difícil. O processo de desenvolvimento é fundamentalmente simples, mas difícil. Difícil porque a UE é uma estrutura do imperialismo que se pretende global e a oligarquia transnacional faz por dominar os processos democráticos. Contra isto há que opor o esclarecimento e a vontade popular.

Ao dizer-se não se ser nem de esquerda nem de direita, pretende-se somente desmobilizar a esquerda e viabilizar políticas de direita. O "Plano" apresentado não vai além do neoliberal "pinga para baixo" (trickle down) pelo qual as desigualdades cresceram exponencialmente.

A alternativa a estas políticas está inscrita na Constituição através do planeamento económico democrático, que o "Plano" ignora, pretensamente substituído por um Banco de Fomento, segundo os "bons exemplos" da Espanha, França, Itália que em 2019 estavam em estagnação económica há 10 ou 15 anos, 20 no caso da Itália...

O planeamento só é efetivo se os sectores básicos e estratégicos forem controlados pelo Estado, caso contrário tem o mesmo papel que um "mapa de estradas" que o capital seguirá se e por onde mais lhe interessar.

A base inicial do planeamento é simples: basta olhar para os défices da BC, aí estão refletidos os défices dos vários sectores produtivos e tecnológicos, como já o referia Álvaro Cunhal. Em 2019, o défice da BC de bens atingiu 20 mil milhões de euros – mais de três vezes a média anual de subvenções da UE! – 80% daquele total com a Zona Euro. Mas tal é escamoteado no "Plano" com o sofisma das "empresas no centro da economia". Por isso, "nem esquerda nem direita", já que para a esquerda no centro da economia só podem estar as pessoas e o seu futuro no seu país.

Este seria um Plano de desenvolvimento orientado, não para a maximização do lucro monopolista, mas para a maximização das necessidades sociais e, pode dizer-se, visando um processo de transformações socialistas.

27/Outubro/2020

Nota: Entre parêntesis as páginas do documento referido

Sobre a "descarbonização" ver:

  Acerca da emergência climática

  Acerca do chamado "aquecimento global"
Sobre o planeamento ver:

  Equilíbrio competitivo ou planeamento económico?

  Acerca do planeamento democrático do desenvolvimento: Lenine, Keynes e Hayek

*Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ 

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