Thierry Meyssan*
A França, e vários outros países europeus em menor escala, é atravessada por um debate sobre «o islamo-gauchismo»; personalidades de esquerda que apoiam o islão político apesar do exemplo do Daesh (E.I.). Contrariamente ao que se poderá crer, não se trata de uma táctica eleitoral momentânea, mas da consequência de uma estratégia da guerra fria, reavivada pela Administração Biden.
Nos séculos XVI e XVII, os Europeus distinguiam a «esfera pública» visível para todos, da «esfera privada» mais íntima. No entanto, no século XVIII, a Revolução Francesa deu uma definição diferente a estas duas expressões: a «esfera privada» passou a ser o domínio do trabalho, da família e da religião, enquanto a «esfera pública» o da política e da nação. Desde logo, se militantes políticos encontram nas religiões a força para o seu activismo, parece incongruente que apoiem religiões particulares.
Ora, esta visão é agora minada pelo apoio dado por algumas personalidades e grupos políticos a movimentos «islamistas». Por islamismo, não designo nada que tenha a ver com a religião muçulmana, mas uma ideologia política que instrumentaliza essa religião. Tendo Maomé sido simultaneamente um profeta, um líder político e um chefe militar, a sua herança é fácil de manipular.
O islão político
Na prática, o islão político
consiste na mobilização de multidões invocando a religião muçulmana. Isso pode
ser feito com meios muito diferentes e objectivos opostos, segundo a concepção
que se tem desta religião. O facto de recorrer a argumentos religiosos para
fazer política permite obter um senso de sacrifício sem limites que pode
rapidamente se transformar
No século XX, os Britânicos pediram ao mufti de Al-Azhar para consagrar uma versão única do Corão a fim de combater a seita do Mahdi no Sudão. Nessa altura, havia umas quarenta versões diferentes. Eles pediram igualmente a Hassan al-Banna para criar uma sociedade secreta, a Confraria dos Irmãos Muçulmanos, decalcada do modelo da Grande Loja Unida de Inglaterra, para dispor de um meio de pressão sobre o Poder egípcio. Durante a Guerra Fria, a CIA colocou dois dos seus agentes, Sayyed Qtob e Saïd Ramadan, nesta sociedade secreta sunita para aí teorizar a jiade.
Outras escolas contemporâneas do islão político desenvolveram-se primeiro no seio do Sufismo contra os Impérios Russo e Chinês, depois com Rouhollah Khomeini no seio do Xiismo contra o Império Britânico. Se a escola Sufi fez aliança com a Confraria dos Irmãos Muçulmanos em torno do Presidente Recep Tayyip Erdoğan, a escola Xiita, pelo contrário, fez um acordo recíproco de não-ingerência com eles. No entanto, todos se bateram juntos contra os Russos e sob as ordens da OTAN durante a guerra na Bósnia-Herzegovina. À época, eles julgavam partilhar a mesma ideologia, mas hoje todos acreditam que isso não era e continua a não ser o caso.
Os Franceses fazem remontar o apoio de pensadores de esquerda ao islamismo ao exílio do Aiatola Khomeini na região parisiense (1978-9). À época, Jean-Paul Sartre e Michel Foucault encontraram-se com ele e deram-lhe o seu apoio. Eles tinham compreendido perfeitamente a sua luta contra o imperialismo ocidental, enquanto Zbigniew Brzeziński (o Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Jimmy Carter) o considerava, erradamente, como superficial.
Mas aquilo de que tratamos hoje é de uma natureza completamente diferente: os pensadores de esquerda atribuem aos muçulmanos no seu conjunto a mesma função de vanguarda popular que ao proletariado do século XIX. O que é uma estupidez. Com efeito:
-- os muçulmanos são
oriundos de todas as classes sociais ;
-- o islão é
absolutamente compatível com o capitalismo mais desenfreado.
Na realidade, eles veêm os muçulmanos de forma diferente, dependendo se são sunitas ou xiitas. Os primeiros seriam progressistas, enquanto os segundos seriam reacionários. Eles apoiaram no Egipto o irmão muçulmano pró-EUA Mohamed Morsi, mas atacam o nacionalista Mahmoud Ahmadinejad no Irão. Ora, o Presidente Morsi jamais procurou melhorar as condições de vida dos mais pobres, enquanto o Presidente Ahmadinejad o fez com sucesso até ao fim dos seus mandatos. Da mesma forma, Mohamed Morsi só se tornou presidente ameaçando de morte os magistrados do Conselho Eleitoral e suas famílias [1], enquanto Mahmoud Ahmadinejad foi eleito democraticamente. Deve-se constatar que os islâmicos esquerdistas não se guiam em relação à acção interna das pessoas que apoiam, mas pela sua política externa. Eles aprovam o islão político que é pró-EUA e denunciam o islão político anti-imperialista.
O islamo-esquerdismo só existe, à excepção da Tunísia, nos países ocidentais. O opositor no exílio Moncef Marzouki dá o seu apoio à Confraria dos Irmãos Muçulmanos e torna-se o primeiro Presidente da República da Primavera Árabe. Ele servirá de cortina aos Irmãos do Ennahdha e é afastado do Poder nas eleições presidenciais de 2014.
A estratégia da NED: aliança de certos trotskistas com certos islamistas
A apoio de personalidades de esquerda à Confraria dos Irmãos Muçulmanos e à Ordem dos Naqshbandi foi organizada pela National Endowment for Democracy (NED) no quadro da Guerra Fria, a partir de 1983. O Presidente Ronald Reagan acabava de juntar a si um grupo de trotskistas judeus e nova-iorquinos para lutar contra a URSS. Em virtude do conflito que opunha o pró-Britânico Trotski [2] e Staline, estes discípulos juntaram-se aos serviços secretos dos « Cinco Olhos » (Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Reino Unido). Entre outras, fundaram a NED. No contexto de escândalos envolvendo a CIA, eles pensaram concretizar certas partes das suas operações por via legal. Recrutaram personalidades trotskistas de uma parte do mundo para se juntarem ao seu combate, particularmente nos dois teatros de operação da época : o Afeganistão e o Líbano.
Para o seu combate anti-soviético no Afeganistão, a NED recruta o « french doctor » (médico francês) Bernard Kouchner. Este é um antigo membro da União dos Estudantes Comunistas que deixou essa organização durante a purga contra os trotskistas. O jovem tratará no Paquistão os anti-comunistas afegãos e os mujahedins árabes de Osama bin Laden. À época, estes últimos são aplaudidos no Ocidente como «combatentes da Liberdade».
Simultaneamente, durante a guerra
civil libanesa, a NED sofre para recrutar. Finalmente, ela escolheu os
secessionistas do Partido Comunista Sírio, Riyad Al-Turk, Georges Sabra e
Michel Kilo. Os três homens assinam um manifesto que equipara os Irmãos
Muçulmanos a um novo proletariado e advoga por uma intervenção militar
norte-americana no Médio-Oriente. Para a Síria, é um apoio claro ao putsch dos
Irmãos Muçulmanos
A guerra na Bósnia-Herzegovina é a ocasião para a NED recrutar o ensaísta Bernard-Henri Lévy. Este tornar-se-á o conselheiro mediático do Presidente Alija Izetbegović. Na mesma altura, este toma o neoconservador Richard Perle como conselhe iro político e Osama bin Laden como conselheiro militar.
No contexto da Guerra Fria, todas as personagens citadas acima provavelmente acreditaram, genuinamente, que estavam a agir no melhor sentido. Mas uma vez a URSS dissolvida, alguns deles continuaram o seu percurso nesta via nauseabunda.
Assim, Riyad Al-Turk, Georges Sabra e Michel Kilo tornaram-se porta-vozes do Pentágono durante os eventos na Síria. Em nome do seu passado comunista, convenceram a esquerda europeia que se tratava de uma guerra civil e não de um ataque por meio de jiadistas internacionais. Eles conseguiram até fazê-los acreditar que a Frente Al-Nusra (braço da Alcaida na Síria) era uma organização revolucionária síria.
Ou ainda Bernard-Henri Lévy, o qual, depois de defender Guantanamo, se tornou o porta-voz dos jiadistas líbios. Ele apresentou a Jamahiriya Árabe Líbia —um regime inspirado nos socialistas utópicos franceses do século XIX— como uma ditadura. Ele apoiou o bombardeamento de Trípoli pela OTAN e a nomeação de um dos chefes históricos da Alcaida, Abdelhakim Belhaj, como Governador militar de Trípoli. Finalmente, até ajudou na recepção oficial deste no Ministério dos Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores-br) da França em Paris.
A teorização do islamo-gauchismo
Se o islasmo-gauchismo é antes de mais uma prática dos Serviços Secretos ocidentais, acabou por se tornar uma teoria política, em 1994, por obra de Chris Harman. Este ideólogo trotskista britânico é um militante do Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores). Em 1994, ele publicou no Socialism International um artigo intitulado « The prophet and the proletariat » (O profeta e o proletariado). Aí, ele tenta demonstrar que os muçulmanos não são nem fascistas, nem progressistas, mas que formam o novo proletariado.
Os trotskistas de Reagan, como Claude Harman, aderiram todos à teoria de Ygael Gluckstein (dito «Tony Cliff») da «revolução permanente desviada», segundo a qual todos os Estados ditos «comunistas» (China, Coreia do Norte, Cuba) são na realidade estalinistas. Esta maneira de ver permite-lhes simultaneamente fazer campanha pela revolução mundial e atacar os adversários dos Estados Unidos. Eles acabaram expulsos da Quarta Internacional. Não se trata aqui, portanto, de igualar todos os trotskistas à sua deriva.
Perante estes elementos, o islamo-esquerdismo não se explica tanto por ser uma corrida aos votos dos muçulmanos imigrados na Europa mas mais pela inversão de valores desde a dissolução da União Soviética. O desaparecimento dos partidos comunistas deixou o campo livre a uma esquerda atlantista. Esta espontaneamente escolheu a direcção ideológica dos seus aliados EUA. Ela assumiu-a a ponto de participar nos seus golpes sujos, nomeadamente à sua instrumentalização do islão político sunita.
Agora, a lógica dos Serviços Secretos, como a das ideologias, é subvertida pelo despertar (woke) do puritanismo norte-americano. Estes últimos encontram nos Irmãos Muçulmanos a mesma busca pela Pureza que os anima. Vários dos actuais membros da Administração Biden participaram, em 13 de Junho de 2013, na reunião do Conselho de Segurança Nacional para a qual um delegado oficial da Confraria, o Xeque Abdullah Bin Bayyah, fora convidado. Existe agora, portanto, um real perigo de ver o islamismo-gauchismo instalar-se a longo prazo nos partidos políticos, tanto mais porque os Ocidentais ainda não assimilaram que todos os chefes da Alcaida e do Daesh (E.I.) são, ou foram, membros da Confraria dos Irmãos Muçulmanos.
Thierry Meyssan* | Voltairenet.org | Tradução Alva
*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).
Notas:
[1] “A Comissão Eleitoral das presidenciais Egípcias cede à chantagem da Irmandade Muçulmana”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 26 de Abril de 2016.
[2] Jamais foi demonstrado que Trotski tenha sido um agente da Coroa, mas que a sua secretária era, essa, uma agente britânica. No entanto Léon Trotsky decapitou a Marinha russa, da qual mandou assassinar quase todos os oficiais para enormíssima satisfação do Reino Unido.
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