quinta-feira, 25 de março de 2021

Portugal | Quem de entre nós está a ficar chalupa?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

Os três mil manifestantes que circularam sábado passado na baixa de Lisboa sem máscara, sem respeito pelo distanciamento social, sem respeito pelas normas securitárias impostas pelo Estado para combate à covid-19, foram geralmente tratados com alguma sobranceria pela comunicação social respeitável e com inúmeros insultos por multidões de "postadores" das redes sociais.

"Chalupas" foi o nome mais simpático que vi escrito no Facebook sobre essa gente. Porém, lendo o que está escrito nos jornais, vendo o que foi dito na televisão, acho que falta saber muito mais sobre estas pessoas e sobre as razões que as mobilizam.

Também acho que esses manifestantes (ou, para ser mais rigoroso, parte deles) estão errados em muitos ângulos da argumentação que apresentam, sobretudo quando tentam comprovar "cientificamente" uma suposta invenção conspirativa dos malefícios do vírus da covid-19, pensada não sei por que máfia desconhecida para tramar a vida à humanidade.

Concordo que muitos dos que foram entrevistados disseram coisas que desafiaram o mais elementar bom senso e que revelam uma ignorância muito pura e muito espantosa.

Subscrevo que alguns dos cartazes empunhados proclamavam afirmações patetas ou de individualismo egoísta, que geraram natural indignação em quem sente que só um esforço coletivo nos pode tirar desta situação.

Admito até que o exemplo daquela multidão possa ser mau para a intenção das autoridades de ir fazendo um desconfinamento cauteloso, pois pode motivar mais gente a desistir do cumprimento de uma série de limitações.

Mas falta ver o outro lado da questão.

Quantas destas pessoas não estão, simplesmente, desesperadas pelo que se passou nas suas vidas ao longo do último ano?

Quantas não estão esgotadas, seja por razões emocionais ou psicológicas, seja pela degradação financeira ou laboral?

Quantas não estão, racional e legitimamente, à procura de soluções alternativas às que a sociedade lhes tem dado e que, sistematicamente, em vez de lhes resolver os problemas, parecem agravá-los cada vez mais?

Estamos a gerir sucessivos confinamentos há um ano; as excecionais declarações de Estado de Emergência transformaram-se numa banalidade; a exigência de redução de circulação de pessoas oprime-nos meses e meses a fio; o fecho por largos períodos de tempo dos restaurantes, lojas, locais de diversão, salas de espetáculo, cinema, livrarias, isola-nos num casulo depressivo; o teletrabalho (para quem o tem) atira-nos sem possibilidade de fuga para uma vida aprisionada no domicílio; a ida para os locais de trabalho (para quem tem de ir) tornou-se assustadora e penosa.

Nos períodos mais graves da pandemia os noticiários encheram-se de especialistas que se contradiziam, desde o início, até sobre a simples questão da utilidade da colocação de máscaras na rua.

Mas houve muito mais: avançaram-se previsões "científicas" sobre a evolução do contágio totalmente erradas; deram-se como provadas origens virais que, afinal, eram mentira; prometeram-se vacinas que não vieram em tempo útil; revelaram-se contraindicações nas vacinas disponíveis que desorientaram ainda mais o processo.

Acreditar cegamente na ciência e nas farmacêuticas tornou-se bem difícil, mesmo para os crentes mais fervorosos.

A luta política/económica, entretanto, envenenou ainda mais o ambiente: desde os disparates da União Europeia até à guerra saúde pública/saúde privada, tudo aconteceu de indigno nos bastidores dos vários poderes e poderzinhos deste planeta.

E o receio de que, mesmo depois da imunidade de grupo ter sido atingida com o processo da vacinação, não sejam levantadas as limitações à nossa liberdade individual e coletiva, através da imposição falaciosa de renovados argumentos de defesa da saúde pública, não me parece ser, de modo algum, um pensamento tonto.

Todo este ano bizarro é uma maluqueira e está a dar connosco em doidos. Por isso acho injusto chamarmos nomes aos manifestantes de sábado sem, antes, olharmos para nós próprios.

Por exemplo: Quem é, afinal, chalupa? Quem sai à rua para protestar, mesmo para reivindicar disparates; ou quem se deixa aprisionar e, mansamente, fica em casa calado?

*Jornalista

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