sexta-feira, 2 de abril de 2021

Cabo Delgado: "Sempre que há uma intervenção externa a situação complica-se"

Moçambique corre o risco de se transformar num "segundo Mali" ou mesmo numa "segunda Somália", afirma o investigador moçambicano Salvador Forquilha, em entrevista à DW África.

Salvador Forquilha, investigador do Instituto de Estudos Sociais e Económicos, IESE, uma organização de pesquisa independente com sede em Maputo, refere que o conflito em Cabo Delgado entrou numa nova fase.

Uma intervenção militar estrangeira estaria a ser equacionada, mas não resolveria os problemas em Cabo Delgado, afirma o investigador, em entrevista à DW África.

DW África: Afirma que o conflito em Cabo Delgado entrou numa nova fase. Que nova fase é esta?

Salvador Forquilha (SF): De facto, o conflito agora entrou numa fase nova. Parece que se trata de uma fase em que nós temos uma ameaça muito direta, tendo em conta os últimos acontecimentos na zona, nomeadamente os últimos ataques a Palma, em que a pressão para a entrada de novos atores no conflito está a tornar-se cada vez mais evidente.

DW África: E acha que uma intervenção militar estrangeira resolveria os problemas de Cabo Delgado?

SF: Eu penso que não, penso que não resolveria o problema. Penso que o apelo à entrada de estrangeiros revela uma maneira distorcida de ver as coisas. Parece-me mesmo que uma intervenção militar estrangeira pode piorar o problema. Caso haja uma intervenção militar externa, isso pode acelerar o processo de construção de uma narrativa, que poderia ser facilmente mobilizada pelos 'jihadistas', no sentido de acusar o Governo de 'estar ao serviço de interesses estrangeiros'. Portanto, não me parece que a intervenção de estrangeiros possa ajudar a resolver o problema.

DW África: Em Cabo Delgado estão em causa interesses económicos de França, nomeadamente da Total, e um comentarista, o historiador francês Michel Cahen, disse que se corre o risco de a França, intervindo, transformar Moçambique num segundo Mali. Concorda?

SF: Penso que sim. De qualquer forma, não estaria muito longe disso. Mali é um exemplo, mas olhando para o que acontece em outros lugares, como a Somália, por exemplo, diria que sempre que há uma intervenção externa a situação complica-se mais ainda.

DW África: Concorda com a estratégia do Governo moçambicano de contratar mercenários estrangeiros?

SF: Não. Definitivamente também não concordo com os mercenários. Em primeiro lugar, os mercenários contribuem para enfraquecer a soberania do país. Isso é um grande problema. Seria muito mais racional direcionar os recursos que se gastam com os mercenários para reforçar a capacidade das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique.

DW África: O que é que pensa sobre o envio, já nas próximas semanas, de 60 militares das forças especiais de Portugal, que deverão dar formação às forças armadas moçambicanas, no âmbito do acordo bilateral entre os dois países?

SF: Qualquer que seja a ajuda no sentido de reforçar a capacidade das forças armadas, esse apoio é bem-vindo, mas parece-me mais uma medida paliativa do que propriamente uma medida acertada para a solução do problema. Isso revela uma coisa: o nosso país está a correr atrás do prejuízo. O esforço que o país está agora a empreender para resolver o problema parece-me um pouco tardio. Esse esforço deveria ter sido feito há muito mais tempo; no início mesmo, quando se pensava que o que estava a acontecer em Cabo Delgado era apenas uma perturbação da ordem pública ou uma questão de banditismo. Era essa a altura mais apropriada para intervir energicamente. Mas isso não se fez. Demoraram. Atrasaram-se bastante.

DW África: O Presidente Filipe Nyusi quebrou o silêncio, defendendo que a desestabilização do norte do país visa alimentar interesses de inimigos instalados fora do país. Acha  que o Presidente tem estado à altura da gravidade da situação?

SF: Eu penso que a situação é tão grave, tão grave, que exigiria muito mais do Presidente. Até aqui, ele não teve uma intervenção enérgica e forte, suscetível de convencer os moçambicanos de que o Governo está, de facto, no terreno à procura de uma solução.

António Cascais | Deutsche Welle

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