Paulo Baldaia* | Jornal de Notícias | opinião
Nenhuma democracia resiste a uma má administração da justiça e já ninguém pode ter dúvidas sobre a necessidade de fazer uma profunda reforma no sector para que não seja ele, ou a ausência de confiança nele, a funcionar como trampolim final para a afirmação de um caminho de extremismos e intolerância a que continuaremos a chamar democracia, apenas porque a governação continuará a resultar da vontade de uma maioria popular que vote.
Os crimes que José Sócrates possa ter cometido enquanto primeiro-ministro em funções, ou antes disso e depois disso, terão de ser julgados pela justiça, mas a forma prepotente como exerceu o cargo e que agora repete procurando impor a sua verdade também já fizeram muito para desacreditar a democracia, desacreditando a justiça. Uma justiça que funciona como se apostássemos numa roleta, no preto sai juiz 1 e no vermelho juiz 2, no primeiro perdemos e no segundo ganhamos, já é suficiente mau porque é suposto que funcione o primado da lei. Pior mesmo é a ideia de que a roleta pode estar a ser manipulada para sair o resultado à vontade do freguês.
Numa democracia funciona a separação de poderes e todos defendemos que "à justiça deve estar entregue o que é da justiça", mas não é aceitável que os poderes legislativo e executivo se demitam de funções, querendo convencer-nos que o fazem para defender a democracia. Os prazos definidos para a prescrição dos diferentes crimes, os períodos de contagem desses prazos, a existência de mega-processos que se perdem no tempo, a existência de um Tribunal Central de Instrução Criminal que apenas tem dois juízes são apenas algumas das concepções defeituosas da justiça que compete ao poder legislativo resolver. A falta de meios humanos, materiais e financeiros com que vivem as instituições que devem prevenir ou investigar a corrupção é trabalho para o poder executivo.
O problema de fundo, ainda assim, é o corporativismo que a justiça traz colado na pele desde o tempo da outra senhora. Se no Estado Novo, a regra era fazer o que determinava o poder político, no actual regime tem sido o de percorrer um caminho em que tudo acaba na mesma. Com salários que já superam o do primeiro-ministro e avaliações que são sistematicamente as mais elevadas, mesmo quando a incompetência está à vista de todos, a guerra entre juízes ou entre juízes e procuradores, por causa da Operação Marquês, é só mais um aviso para que se ponha mão no estado da justiça. Nenhum partido pode fugir à sua responsabilidade, nem ninguém se pode desculpar com a impossibilidade de legislar a quente.
Nenhum partido pode fugir à sua responsabilidade, nem ninguém se pode desculpar com a impossibilidade de legislar a quente. Ontem já era tarde. Entendam-se sobre um controle efectivo das diferentes corporações, assumam que a auto-avaliação não funciona. Mas assumam igualmente que o ónus da prova tem que evoluir para lá do ponto em que se encontra na justiça portuguesa, em que os criminosos andam sempre um passo à frente de quem investiga e de quem julga. Também é chegado o momento de aceitar que quem enriquece sem justificação, ou quem oculta esse enriquecimento para não poder ser escrutinado no exercício de funções públicas, deve ficar obrigado a demonstrar com clareza a origem da sua fortuna.
*Jornalista
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