quarta-feira, 19 de maio de 2021

Portugal | A arrogância é surda

Duarte Caldeira | AbrilAbril | opinião

O Governo possui uma base para implementar o Sistema de Gestão Integrada de Incêndios Rurais. Quando o choque com a realidade se tornar imperativo, lembraremos alertas feitos e não devidamente ouvidos.

o passado dia 6 de maio, a Assembleia da República aprovou por maioria, com os votos a favor do PS e as abstenções do PSD, IL e das duas deputadas não inscritas, uma proposta de lei do Governo que «estabelece o Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR) no território Continental e define as suas regras de funcionamento».

Esta proposta de diploma visa conceder ao Governo a «autorização legislativa para o estabelecimento de disposições destinadas a assegurar o funcionamento das redes de defesa contra incêndios rurais, a prevenção e segurança de pessoas, animais e bens em situação de perigo elevado de incêndios rural e a responsabilização pelo incumprimento dos deveres relativos à prevenção de incêndios rurais».

À proposta de lei foi anexo o designado «Decreto Lei Autorizado», no qual o Governo detalha o funcionamento do SGIFR.

No preâmbulo da proposta de lei refere-se que esta visa «definir os modelos de articulação interministerial, delimitando as competências e âmbitos de atuação de cada entidade no SGIFR, eliminando redundâncias e apostando num modelo de maior responsabilização dos diversos agentes no processo de tomada de decisão, em harmonia com a cadeia de processo do PNGIFR».

Não é difícil aderir, em tese, a este conjunto de intenções e considerá-las ajustadas.

O problema está na escolha dos instrumentos utilizados para a sua concretização, nomeadamente quanto aos programas e projetos incluídos no designado Programa Nacional de Ação e os generosos recursos financeiros que lhes estão alocados, na sua maioria oriundos do designado Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

O Parlamento decidiu restabelecer o funcionamento, por um período de 60 dias, do Observatório Técnico Independente (OTI) «para análise, acompanhamento e avaliação dos incêndios florestais e rurais que ocorram no território nacional». Recorda-se que o mandato do Observatório tinha cessado em 31 de dezembro do ano transato. Supõe-se que a intenção do Parlamento é dispor de uma análise integrada e conclusiva do modelo e do desenho final adotado pelo Governo, para responder à ameaça que os incêndios florestais representam para o País, em correlação com todas as variáveis que lhes estão associadas, no ponto de vista do ordenamento do território, da transformação da paisagem e das alterações climáticas.

Sabe-se que, na fase que antecedeu a produção do modelo de sistema que a proposta de lei agora aprovada consubstancia, o Governo primou por ignorar os múltiplos pareceres e recomendações elaborados pelo Observatório. Acresce que do período de discussão pública dos diplomas estruturantes do sistema, muito pouco foi inserido na versão final dos mesmos, prevalecendo no essencial a versão original.

Chegados aqui, resta então esperar pela apertada missão que foi confiada ao Observatório para, em 60 dias, avaliar o longo processo de quatro anos (pós-incêndios de 2017) que conduziu ao sistema agora consagrado.

Naturalmente que a última palavra será sempre dos governantes e dos deputados da AR, mandatados pelos portugueses para decidir politicamente quanto às medidas mais apropriadas para salvaguarda dos interesses do País e dos portugueses. Mas é desejável que o processo de legítima decisão política seja alicerçado no melhor conhecimento disponível, uma vez que tanto a arrogância intelectual de alguns como o «achismo» bem-intencionado de outros têm gerado maus resultados em muitos domínios da vida do País.

Neste momento o Governo possui a base jurídica e instrumental para implementar o Sistema de Gestão Integrada de Incêndios Rurais. Resta monitorizar e acompanhar o processo de concretização do mesmo, avaliar os impactos das medidas, das ações e dos recursos associados, na sempre complexa passagem de modelos concebidos por consultoras contratadas e o choque das suas formulações com a realidade das pessoas e dos territórios.

Atentos e vigilantes, sempre que o choque com a referida realidade se tornar imperativo, não deixaremos de lembrar o que em devido tempo foi alertado e proposto, sem ter sido devidamente ouvido.

*O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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