# Publicado em português do Brasil
CJ Polychroniou | Carta Maior
Desde 2019, o Brasil se encontra
em um de seus períodos mais difíceis desde o fim da ditadura militar em 1985,
graças às políticas desumanas do regime de Jair Bolsonaro que guardam paralelo
com aquelas do governo Donald Trump. O presidente Bolsonaro é um apologista da
brutal ditadura militar que governou o Brasil de
Noam Chomsky acompanha de perto a política brasileira e latino-americana há
muitas décadas, e até visitou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na
prisão em 2018. Nesta entrevista, ele discute os fatores que levaram Bolsonaro
ao poder, disseca suas políticas e as compara ao regime de Trump, e avalia o
que o futuro pode reservar para a conturbada nação.
CJ Polychroniou: Jair Bolsonaro - um apologista da tortura e ditadura e parte
da tendência global ao autoritarismo que nos trouxe Donald Trump - foi
empossado como presidente do Brasil em 1º de janeiro de 2019. Desde aquele dia,
seu governo promove uma agenda com consequências desastrosas para a democracia
e o meio ambiente. Quero começar perguntando sobre as condições no Brasil que
levaram o Bolsonaro ao poder, um desenvolvimento que coincidiu com o fim da
“maré rosa” que se espalhou pela América Latina no início dos anos 2000.
Noam Chomsky: Muita coisa é incerta e a documentação é pequena, mas a forma
como parece para mim é basicamente assim.
Com a queda dos preços das commodities alguns anos após Lula da Silva deixar o
cargo em
As acusações contra Lula foram retiradas pelos tribunais depois de serem
completamente desacreditadas pela exposição de Glenn Greenwald das atividades
nocivas da promotoria em conivência com o investigador “anticorrupção” (Lava
Jato) Sergio Moro. Antes das denúncias, Moro havia sido nomeado Ministro da
Justiça e Segurança Pública por Bolsonaro, talvez uma recompensa por suas
contribuições para sua eleição. Moro praticamente desapareceu de vista com o
colapso de sua imagem como o intrépido cavaleiro branco que salvaria o Brasil
da corrupção - enquanto, provavelmente não por coincidência, destruía grandes
empresas brasileiras que eram concorrentes de corporações norte-americanas (que
não são exatamente famosas por sua pureza).
Embora os alvos de Moro fossem seletivos, muito do que ele revelou é crível - e
não é difícil de encontrar na América Latina, onde a corrupção é praticamente
um modo de vida nos mundos político e econômico. Pode-se, no entanto, debater
se o nível de corrupção lá existente não é comum a todo o Ocidente, onde
grandes instituições financeiras foram multadas em dezenas de bilhões de
dólares, geralmente em acordos que evitam responsabilidade individual. Uma
indicação de qual poderia ser a escala foi dada pela londrina Economist, que
encontrou mais de 2.000 condenações corporativas de 2000-2014. Isso é apenas a
“América corporativa”, que tem muitas empresas em outros lugares. Além disso, a
noção de “corrupção” está profundamente contaminada pela ideologia. Grande
parte da pior corrupção é “legal”, já que o sistema legal é construído sob a
mão pesada do poder privado.
Apesar da própria corrupção de Moro, muito do que ele desenterrou era real e já
existia há muito tempo. Seu principal alvo, o Partido dos Trabalhadores de Lula
(PT), ao que parece, não quebrou esse padrão. Em parte por essa razão, o PT
perdeu a oportunidade de introduzir os tipos de mudanças progressivas duradouras
que são extremamente necessárias para minar o domínio das classes dominantes
tradicionais vorazes e profundamente racistas do Brasil.
Os programas de Lula foram concebidos de forma a não infringir gravemente o
poder da elite, mas, assim mesmo, não foram tolerados nesses círculos. A falha
deles era que eles eram orientados para as necessidades daqueles que sofrem
amargamente nesta sociedade altamente desigual. O caráter básico dos programas
de Lula foi capturado em um estudo do Banco Mundial de 2016 sobre o Brasil, que
descreveu seu tempo no cargo como uma “década de ouro” na história do Brasil. O
Banco elogiou o “sucesso de Lula na redução da pobreza e da desigualdade e sua
capacidade de criar empregos. Políticas inovadoras e eficazes para reduzir a
pobreza e garantir a inclusão de grupos anteriormente excluídos tiraram milhões
de pessoas da pobreza. ” Além disso, afirmou o Banco Mundial:
“O Brasil também vem assumindo responsabilidades globais. Tem obtido sucesso na
busca da prosperidade econômica, ao mesmo tempo em que protege seu patrimônio
natural único. O Brasil se tornou um dos mais importantes novos doadores
emergentes, com extensos compromissos, especialmente na África Subsaariana, e
um ator importante nas negociações internacionais sobre o clima. A trajetória
de desenvolvimento do Brasil na última década mostrou que o crescimento com
prosperidade compartilhada, mas equilibrado e com respeito ao meio ambiente, é
possível. Os brasileiros têm muito orgulho dessas conquistas reconhecidas
internacionalmente. ”
Alguns brasileiros. Não aqueles que consideram que têm direito de exercer o
poder em seus próprios interesses.
O Brasil se tornou uma voz eficaz para o Sul Global nos assuntos
internacionais, o que não era bem-vindo aos olhos dos líderes ocidentais, e
particularmente irritante para o governo Obama-Biden-Clinton quando o ministro
das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, esteve perto de negociar um
acordo sobre programas nucleares, minando a intenção de Washington de comandar
o show em seus próprios termos.
O relatório do Banco também concluiu que, com políticas adequadas, a “década de
ouro” poderia ter persistido após o colapso dos preços das commodities. Isso
não aconteceria, no entanto, à medida que o golpe brando prosseguia. Alguns
analistas sugeriram que uma virada crucial foi quando Dilma anunciou que os
lucros das reservas de petróleo offshore recém-descobertas seriam direcionados
à educação e ao bem-estar, em vez das mãos ansiosas de investidores
internacionais.
O PT não conseguiu fincar raízes sociais, a tal ponto que os beneficiários das
suas políticas muitas vezes desconheciam a sua origem, atribuindo os benefícios
a Deus ou à sorte. A corrupção, o fracasso da mobilização e a falta de reformas
estruturais contribuíram para a vitória eleitoral de Bolsonaro.
A vitória de Bolsonaro foi recebida com entusiasmo pelo capital e finanças
internacionais. Eles ficaram particularmente impressionados com o czar
econômico do Bolsonaro, o ultra-leal economista de Chicago Paulo Guedes. Seu
programa era muito simples: em suas palavras, “Privatize Tudo”, uma bonança
para os investidores estrangeiros. Eles ficaram, no entanto, desiludidos com o
colapso do Brasil durante os anos do Bolsonaro e as promessas de Guedes não
foram cumpridas.
CJ Polychroniou: Vamos falar agora especificamente sobre algumas das políticas
do Bolsonaro, que foram denunciadas por ativistas, economistas e organizações
como a Human Rights Watch, bem como por líderes indígenas. E como você
compararia suas políticas às de Donald Trump?
Noam Chomsky: A analogia é adequada. Trump era o modelo revelado de Bolsonaro,
embora não o único. Ao votar pelo impeachment de Dilma, ele o dedicou ao
torturador da ex-presidente durante a ditadura militar. Esse é um nível de
depravação que nem mesmo seu herói Trump atingiu. Sua admiração pela ditadura
também é revelada, embora ele tenha algumas críticas aos militares. Sua
principal reclamação é que eles foram muito brandos. Eles deveriam ter matado
30.000 pessoas, como os militares fizeram na Argentina ao lado. Ele também
criticou o comportamento dos militares nos primeiros anos. Eles deveriam ter
imitado a cavalaria dos Estados Unidos, que virtualmente eliminou a população
nativa. Em vez disso, os militares brasileiros deixaram vestígios na Amazônia.
Mas Bolsonaro deixou bem claro que pretende superar esse problema.
Como Trump, os compromissos políticos mais importantes de Bolsonaro, de longe,
são destruir as perspectivas de vida humana organizada no interesse de lucros
de curto prazo para seus amigos - no caso dele, mineração, agronegócio e
extração ilegal de madeira que aceleraram fortemente a destruição das florestas
amazônicas. Os cientistas previram, antes do Bolsonaro, que em algumas décadas
a Amazônia passaria de um dos maiores sumidouros de carbono do mundo a uma
fonte de carbono, à medida que faz a transição da floresta tropical para a
savana. Graças ao Bolsonaro, esse ponto já pode estar se aproximando. Para o
Brasil, os efeitos serão devastadores. As chuvas diminuirão drasticamente, com
grande parte das ricas terras agrícolas se transformando
Como em todo o mundo, os indígenas no Brasil estão na vanguarda há anos na
tentativa de proteger a sociedade humana das depredações da "civilização
avançada". Mas o tempo está se esgotando, e se os Trumps e os Bolsonaros
do mundo tiverem rédea solta, as chances de sobrevivência decente são mínimas.
Novamente, como no caso de Trump, a malevolência de Bolsonaro não se esgota em
seu compromisso de destruir a sociedade humana organizada - junto com as
inúmeras espécies que estamos rapidamente levando à extinção. Como Trump, ele
pode reivindicar responsabilidade pessoal por dezenas (senão centenas) de
milhares de mortes por COVID, para mencionar uma importante influência sua no
bem-estar de seu país. Os assassinatos policiais, principalmente com vítimas
negras, há muito tempo são uma praga, aumentando sob o governo de Bolsonaro. Um
recente incidente particularmente chocante de ataque militar a uma favela do
Rio chegou às manchetes internacionais.
Muito fácil de continuar.
CJ Polychroniou: Qual é a probabilidade de que Bolsonaro enfrente acusações em
Haia pela Amazônia?
Noam Chomsky: Praticamente nenhuma. Suas contribuições para o suicídio global
podem ser particularmente severas, mas assim que a porta for aberta … Quem vai
permitir isso?
CJ Polychroniou: Os brasileiros foram às ruas recentemente exigindo a remoção
de Bolsonaro pelo modo como lidou com a pandemia. Na verdade, parece que a
opinião pública finalmente se voltou esmagadoramente contra Bolsonaro, e
espera-se que Lula o derrote nas eleições de 2022. No entanto, de uma forma
nada surpreendente, e uma reminiscência de seu ídolo Trump, Bolsonaro anunciou
há poucos dias que ele pode não aceitar os resultados da eleição de 2022 sob o
sistema de votação atual. Qual a probabilidade de que os generais, nos quais
Bolsonaro confiou desde o primeiro dia em que assumiu o poder, mantenham o
curso e apoiem sua tentativa de permanecer no poder, mesmo que perca as
eleições presidenciais do próximo ano?
Noam Chomsky: Desde 2018, Bolsonaro afirma que a única maneira de ser derrotado
em uma eleição é por meio de fraude. Ele até alegou (é claro, sem provas) que
Dilma na verdade perdeu a eleição de 2014, que venceu com folga por mais de 3
milhões de votos, principalmente em linhas de classe marcadas, para os padrões
históricos uma margem estreita. Ele agora intensificou a retórica, acusando
preventivamente a eleição de 2022 de tentativa de fraude por parte de seus
inimigos políticos e dizendo a uma multidão de apoiadores há algumas semanas
que, “as eleições no próximo ano serão limpas. Ou temos eleições limpas no Brasil
ou não temos eleições ”(Jornal do Brasil, 7-08-21).
Não é exatamente estranho.
Neste momento, Lula está bem à frente nas pesquisas, assim como em 2018, quando
foram tomadas medidas para barrar sua candidatura. Existem preocupações
legítimas de uma recorrência.
As investigações parlamentares sobre o manejo devastador da pandemia pelo
governo de Bolsonaro estão agora chegando aos militares. Os três ramos das
forças armadas divulgaram recentemente um comunicado declarando que nenhum
inquérito que conteste a honra dos militares será tolerado.
Há relatos de medidas que podem ser uma preparação para um golpe militar,
talvez inspirado no golpe de 1964 que instalou o primeiro dos perversos
“Estados de Segurança Nacional” que aterrorizaram o hemisfério por 20 anos.
O pretexto para derrubar o governo moderadamente reformista de Goulart em 1964
foi o apelo ritual para salvar o país do “comunismo”. Algo semelhante poderia
ser inventado hoje.
Como Washington reagiria? Há os precedentes que sugerem uma resposta. Um é
1964. O golpe militar, que derrubou o governo parlamentar, foi elogiado pelo
Embaixador de Kennedy-Johnson no Brasil, Lincoln Gordon, como “a vitória mais
decisiva para a liberdade em meados do século XX”. Como discuto no Ano 501, foi uma
“rebelião democrática” que ajudaria a “conter os excessos da esquerda” e
deveria “criar um clima muito melhor para o investimento privado” nas mãos das
“forças democráticas” agora no comando. Após 21 anos de governo, o estudioso da
América Latina Stephen Rabe comenta em The Most Dangerous Area in the World,
as "forças democráticas" deixaram o país "na mesma categoria dos
países menos desenvolvidos da África ou da Ásia no que diz respeito aos índices
de bem-estar social" (desnutrição, mortalidade infantil, etc.), com
condições de desigualdade e sofrimento raramente encontradas em outros lugares,
mas um grande sucesso para investidores estrangeiros e privilégio interno.
Isso deixando de lado o “uso sistemático de tortura” e outros crimes de Estado
documentados pela Comissão da Verdade, comandada pela Igreja, durante os
últimos dias da ditadura.
Devemos lembrar também que a reação [dos EUA] ao golpe no Brasil - e possível
envolvimento nele - não foi exceção. Ao contrário, era a norma depois de 1962,
quando JFK mudou a missão dos militares latino-americanos de uma “defesa
hemisférica” anacrônica para uma “segurança interna” muito viva. Os resultados
previsíveis foram descritos por Charles Maechling, que liderou a
contrainsurgência dos Estados Unidos e o planejamento da defesa interna de
Aqueles que acreditam inocentemente que as coisas tenham mudado, podem recorrer
à reação Obama-Clinton ao golpe militar em Honduras em 2009, derrubando o
governo moderadamente reformista de Zelaya. Seu apoio ao golpe, quase sozinho,
ajudou a transformar Honduras em uma das capitais do assassinato do mundo,
estimulando uma enxurrada de refugiados aterrorizados, agora cruel e
ilegalmente rejeitados na fronteira com os Estados Unidos, se conseguirem
chegar tão longe através das barreiras impostas por clientes dos EUA.
O histórico rico e feio pode sugerir algo sobre a possível reação de Washington
às ações dos militares brasileiros para “salvar o país do comunismo”.
CJ Polychroniou: Os peruanos elegeram como presidente no mês passado Pedro
Castillo, professor e líder sindical, mas a oponente de extrema direita Keiko
Fujimori e seus partidários se recusam a aceitar o resultado clamando por
fraude, alegações rejeitadas por observadores internacionais e, ao mesmo tempo,
a União Europeia e os Estados Unidos elogiaram a condução da eleição. Mas em
lugares como Chile e Colômbia, a direita também está sob pressão de cidadãos
fartos do neoliberalismo. Será que outra “maré rosa” está se formando na
América do Sul?
Noam Chomsky: No Chile, uma notável revolta popular busca libertar finalmente o
país das garras da ditadura de Pinochet, um empreendimento criminoso apoiado
ainda mais fortemente que o normal pelos Estados Unidos, com particular
entusiasmo pelos “libertários” que então se voltaram para o lançamento do
ataque neoliberal global dos últimos 40 anos. A Colômbia está sendo submetida a
mais uma renovação do estado e da violência paramilitar escalada por Kennedy em
1962, quando sua missão militar na Colômbia, liderada pelo general da marinha William
Yarborough, recomendou "sabotagem paramilitar e / ou atividades
terroristas contra defensores conhecidos do comunismo", que “deveriam ser
apoiadas pelos Estados Unidos” - como têm sido por muitos anos horríveis, com o
recente Plano Colômbia de Clinton.
Há turbulência e incerteza em todo o hemisfério, incluindo no “colosso do
Norte”. O que acontecer aqui terá, como sempre, um impacto enorme.
*Publicado originalmente em 'Thuthout' | Tradução de César Locatelli
Na imagem: O presidente Jair Bolsonaro fala durante a cerimônia de lançamento da plataforma Participa Brasil, no Palácio do Planalto, em Brasília, Brasil, em 8 de fevereiro de 2020. (Andre Borges/NurPhoto via Getty Images
Sem comentários:
Enviar um comentário