domingo, 25 de julho de 2021

Portugal | Moles e amanteigados

Joana Amaral Dias* | Diário de Notícias

Sabia que, doravante, o Ministério Público pode vasculhar os seus emails sem a autorização de um juiz? PS, BE e PAN aprovaram uma alteração legislativa que permite apreender comunicações electrónicas, no âmbito de investigações ao cibercrime, sem ordem de um juiz de instrução criminal. De novo, como aconteceu com a abusiva e perversamente intitulada Carta dos Direitos Humanos na Era Digital (lei que oficializa a censura em Portugal), desta vez a coisa também resulta da transposição de uma directiva europeia.

A Comissão Nacional de Proteção de Dados já tinha dado parecer negativo a esta barbaridade, definindo-a como "uma manifesta degradação do nível de protecção dos cidadãos", "restrições adicionais e não fundamentadas aos direitos, liberdades e garantias à inviolabilidade das comunicações e à proteção de dados pessoais", desprotegendo excessivamente as pessoas, inclusivamente as que apenas "tenham incidentalmente interagido com suspeitos", meros suspeitos. Haja quem o diga a pleno pulmão, embora este monstro não seja absolutamente consensual entre a suposta esquerda, outrora defensora da democracia. Ufa. Há censura, devassa da vida privada, um estado policial mas, entre socialistas, bloquistas e animalistas, pelos vistos, há um deputado que apela a Marcelo que envie este diploma para o Tribunal Constitucional. E, nem de propósito, esse parlamentar chama-se José Magalhães, o pai da tal Cartinha do Novo Lápis Azul.

Mas estas leis ferozes e obtusas serão excepções? Também a grotesca partilha de dados pessoais com as embaixadas estrangeiras pela Câmara Municipal de Lisboa, a directiva da e-privacidade e todo um cataclismo que está a acontecer nos "direitos digitais" serão singularidades ou mora aqui um perigoso padrão? Como é que a violação das comunicações privadas sem autorização de um juiz se compatibiliza com o Regulamento Geral de Proteção de Dados? Aparentemente, uma das prioridades da Comissão Europeia é a preparação para a era digital que passa por uma revolução jurídico-legislativa. A intenção declarada e manifesta é colocar a transição digital ao serviço das populações e das empresas. Porém, este colosso que inclui diplomas como o futuro Regulamento sobre Inteligência Artificial (disciplina os diferentes usos das tecnologias), o Regulamento sobre os Mercados Digitais (estabelece regras às plataformas digitais); o Regulamento sobre os Serviços Digitais; o Regulamento dos Dados, etc, passando pela identidade digital europeia, usa a capa e a desculpa de modernizar a economia ou de fomentar oportunidades só que é um autêntico Cavalo de Tróia que, na sua essência, serve antes para cercear, controlar e talvez até admoestar os cidadãos. Eis a velha tara da pulsão de domínio agora tornada possível, aqui está a obsessão materializada pelo enorme poderio tecnológico deste século XXI - saber tudo o que o cidadão comum consome, diz, escolhe, frequenta e não "apenas" para finalidades comerciais. Saber mais do que ele próprio. Prever. Ser mais ele do que ele mesmo. Ou seja, no fim, desapossá-lo do seu residual e remanescente livre arbítrio e auto-determinação. Vigiar e punir, lembram-se? Só não se imaginava é que fosse com a complacência de quase metade e a conivência dos restantes 50%. Faca quente em manteiga no Verão.

*Psicóloga clínica. -- Escreve de acordo com a antiga ortografia

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