quarta-feira, 28 de julho de 2021

Portugal | Otelo é pior do que Spínola?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

Otelo Saraiva de Carvalho, major, comanda a 25 de abril de 1974 as operações militares que derrubam o Estado Novo. Na sequência é nomeado comandante da Região Militar de Lisboa e comandante do COPCON.

Nesse mesmo dia, António de Spínola, general, recebe do Movimento dos Capitães a presidência da Junta de Salvação Nacional, que acumula com a Presidência da República até 28 de setembro, quando tenta um levantamento da direita portuguesa contra a esquerda.

Há aqui um paralelo e uma divergência.

Entre maio de 1975 e abril de 1977 a rede bombista de direita promove 566 ações violentas no país. Esses terroristas matam mais de uma dezena de pessoas.

Entre 1980 e 1987 as FP25, de extrema-esquerda, fazem pouco mais de uma centena de atentados e assaltos armados, dos quais resultam 17 mortes, incluindo quatro membros da própria organização terrorista.

Há aqui um paralelo e uma divergência.

Em 21 de dezembro de 1991, o Presidente da República Mário Soares e o primeiro-ministro Cavaco Silva assinam um indulto a Ramiro Moreira, a cara mais conhecida da rede bombista, que nunca chegara a cumprir a pena de prisão de 20 anos a que fora condenado.

Em 1 de março de 1996 a Assembleia da República, por sugestão do Presidente da República, Mário Soares, amnistia do crime de terrorismo os elementos das FP25, incluindo os que tivessem eventual envolvimento de Otelo Saraiva de Carvalho, que já fora condenado por alguns deles e cumprira, até então, cinco anos de cadeia. Dez crimes de sangue, porém, não são perdoados e seguem para julgamento. Em 2003 Otelo Saraiva de Carvalho é definitivamente absolvido desses crimes.

Há aqui um paralelo e uma divergência.

No depoimento que deu à Judiciária e que serviu para o condenar, Ramiro Moreira explicita e detalha dois encontros para planear atentados que manteve com Alpoim Calvão, que comandava o setor operacional do MDLP, uma organização presidida por António de Spínola. Embora se atribuam, judiciariamente, vários dos atentados da rede bombista quer ao MDLP quer ao ELP (outra organização de extrema-direita), a ligação, material ou moral, de Spínola a estas operações nunca foi seriamente investigada nem ele teve alguma vez de responder a qualquer autoridade por essa suspeita. O próprio MDLP nunca foi alvo de investigação profunda e continuada.

Os depoimentos dos três primeiros capturados das FP25 pela Judiciária, numa operação policial fortuita, servem imediatamente para tornar Otelo Saraiva de Carvalho suspeito de, pelo menos, ser o inspirador dos crimes dessa organização. Em 1984, três meses depois das declarações nesse sentido feitas por essas pessoas, Otelo estava já entre os 40 detidos por alegado envolvimento em terrorismo.

Há aqui um paralelo e uma divergência.

Em 1981 António de Spínola foi promovido a marechal. A 13 de fevereiro de 1987 recebeu a Grã-Cruz da Antiga e Muito Nobre Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Morre em 13 de agosto de 1996 e o governo decreta dois dias de luto nacional.

A 25 de novembro de 1983 Otelo Saraiva de Carvalho foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Foi promovido a coronel a 2 de abril de 2009, com antiguidade a 19 de maio de 1986. Morreu no domingo passado. Não foi decretado luto nacional.

Há aqui um paralelo e uma divergência.

O paralelo é que à direita e à esquerda há, após o 25 de Abril, crimes horríveis cometidos com cobertura política.

A divergência é que à direita se esconde, se esquece e se perdoa esse passado. À esquerda exige-se a rememoração constante e a punição eterna.

É irónico, até porque foi a esquerda que trouxe a liberdade a este país e o livrou dos crimes do fascismo da direita, muito mais numerosos, mais hediondos e mais continuados no tempo do que os crimes cometidos politicamente em democracia.

O filósofo alemão Walter Benjamin defendeu um dia que se deveria passar a escrever a história a contrapelo, ou seja, do ponto de vista dos vencidos - contra a tradição conformada do historicismo clássico em que os relatos, invariavelmente, entram em empatia com o vencedor. Aqui a palavra "vencedor" usada por Walter Benjamin não se refere aos líderes vitoriosos das batalhas ou das guerras da humanidade, mas à "guerra de classes", na sua visão marxista, na qual um dos campos, o da classe dirigente, vence sempre o campo das classes oprimidas.

É essa história, escrita pela classe dirigente dominadora nestes dias de reação à morte de Otelo Saraiva de Carvalho, que está a ser confecionada, despudoradamente, sobre toda a Revolução dos Cravos.

*Jornalista

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